Poeta telúrico, herdeiro da Terra dura e virgem que lhe emprestou o "ventre", Miguel Torga tem nos seus "Bichos" uma obra de teor distinto. Nesta compilação de contos (14, no total), não existe uma distinção entre o humano e o animal, entre o ser racional e o ser que vive do instinto. Personificados ao máximo na sua "animalidade", os animais assumem almas quase humanas e os seres humanos descobrem-se na sua bestialidade. Torga mostra-nos os sentimentos (medos, alegrias, vontades e desejos) de touros (Miúra), insectos (Cega-Rega), cães (Nero) e gatos (Mago), entre outros. Mas também os homens e mulheres que se desumanizaram (Madalena, Jesus, Senhor Nicolau), que perderam a sua capacidade de pensar, de agir conforme a sua índole, têm espaço para "falar" e inserem-se no mesmo molde. Bichos somos todos, afinal, quando a vida chega a um ponto em que deixa de fazer sentido para a razão que conhecemos.
Se este é um livro para crianças, tecido de pequenas histórias de animais que pensam e falam, há muito, muito mais escondido entre as suas páginas. Não é à toa que um corvo revoltado (Vicente ou Torga, se lermos nas entrelinhas), a voar rumo à liberdade, pode causar tanto frisson em pleno Estado Novo.