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Ricardinho fintou o destino até se moldar como fenómeno mundial do futsal

por Lusa
Rodrigo Antunes - Lusa

O internacional português Ricardinho, que se despediu hoje da seleção de futsal, com a qual juntou, em outubro, o título mundial ao europeu, driblou o destino provável de um miúdo de bairro até ser ídolo consensual nas quadras.

Depois de ter conquistado o título mais desejado da carreira, graças à vitória de Portugal sobre a Argentina (2-1), na final do Mundial2021, na Lituânia, o ala, de 36 anos, encerrou um trajeto de quase duas décadas na seleção com 187 jogos, 141 golos e dois grandes troféus.

Essa última dança de Ricardinho, o único a ser considerado seis vezes o melhor jogador do mundo, em 2010 e de 2014 a 2018, pelo portal Futsal Planet, surgiu meio ano após ter sido operado a uma rotura num tendão da perna direita e atravessado uma luta solitária.

Quando o corpo faltou, a mente sobrou ao ‘mágico’, ‘dono’ de quase 40 títulos coletivos, que admite não estar num momento psicológico ideal, depois de ter combatido as suas angústias antes e no decurso do Mundial, com a resiliência aprendida desde infância.

Nascido em 03 de setembro de 1985, Ricardo Filipe da Silva Duarte Braga cresceu em Gondomar, numa família humilde e nem sempre com comida na mesa, mas o amor ao desporto inibiu-o de cair na tentação da droga e do crime, ao contrário de amigos seus.

Aos 13 anos, refeito de um incêndio que consumiu os seus pertences na habitação de Fânzeres e o realojou num bairro social de Valbom, foi descartado durante os treinos de captações da formação do FC Porto, na qual o pai tinha jogado, devido à baixa estatura.

Ricardinho, que se tinha mudado do Estrelas de Fânzeres para o Cerco do Porto, fez uma espécie de luto pelo ‘sonho’ frustrado de ser futebolista em ano e meio, fase em que teve as melhores notas na escola, até ressurgir com a equipa do bairro num torneio de futsal.

O talento incomum levou Carolina Silva, técnica do Gramidense, adversário derrotado na final, a desafiar o rapaz que, em vez de ir longe nos estudos, passava horas a dar toques com a fruta trazida pelo pai, empregado no Mercado Abastecedor do Porto, do trabalho.

Volvidas três épocas, em 2001/02, e já ajustado ao jogo no pavilhão, o esquerdino cruzou o rio Douro na companhia da treinadora e de vários colegas de equipa rumo ao Miramar, onde iniciou pelos juvenis, foi campeão nacional de juniores e se estreou nos seniores.

Em 2003, com 17 anos, o Benfica ofereceu um contrato de 2.250 euros e Ricardinho, que mal conhecia os arredores da sua urbanização, aceitou a custo sair debaixo da ‘asa’ dos pais e deixar a namorada, mesmo perante a tentativa tardia do Freixieiro em demovê-lo.

A convivência na mesma casa dos experientes colegas André Lima e Arnaldo ajudou-o a disfarçar dúvidas durante a adaptação a Lisboa, onde o filho do meio da família Braga se orientava apenas com 250 euros do ordenado mensal, enviando o restante para Valbom.

Dentro das quatro linhas, foi rivalizando com colegas mais calejados, mas travou a fundo com uma fratura da tíbia, após dura entrada de um oponente irado com os seus truques técnicos desconcertantes, antes de regressar e acalentar por horas o desejo de sempre.

Ao subir de produção nos pavilhões nacionais, Fernando Santos, então técnico do futebol do Benfica e atual selecionador nacional, tentou a sua sorte em chamá-lo aos relvados na pré-temporada de 2007/08, assunto que circulou na imprensa e nunca passou à prática.

O futsal continuaria a dar glória a Ricardinho, que juntou quatro campeonatos, três Taças de Portugal e quatro Supertaças e, quando deu por si, volvidas sete épocas, saiu da Luz com os primeiros troféus de campeão europeu de clubes e de melhor jogador do mundo.

No verão de 2010, ingressou com surpresa por três anos nos japoneses do Nagoya, que pagaram a cláusula de rescisão de 250 mil euros ao Benfica, e venceu outras tantas ligas e uma Taça da Ásia, em 2011, enquanto estimulava a modalidade no mercado asiático.

Pelo caminho, logo após ter sentido o tsunami de 2011, quando viajava de táxi para um pavilhão, esteve cedido aos russos do CSKA Moscovo, aguentando seis meses sem títulos, e voltou à Luz, já sem tanta motivação financeira, para ‘selar’ uma ‘dobradinha’.

Ricardinho transcendia a dimensão nacional do futsal e correspondeu ao interesse de longa data dos espanhóis do Inter Movistar, adversário derrotado pelo Benfica na final da UEFA Futsal Cup, em 2009/10, partindo para o período mais dourado do seu palmarés.

Entre 2013 e 2020, conquistou seis campeonatos, três Taças de Espanha, uma Taça do Rei e três Supertaças, além de se ter sagrado bicampeão europeu, em 2016/17 e em 2017/18, em finais com o Sporting, e somado mais cinco prémios de melhor do mundo.

O êxito retumbante no país vizinho permitiu-lhe abstrair de questões pessoais, como a amputação da perna esquerda do pai, agora remetido a uma cadeira de rodas, ou a condenação do irmão mais velho a nove anos de prisão, por furtos e desobediência.

Ricardinho tem essa lição gravada numa tatuagem no braço esquerdo, tal como outros marcos e valores da sua vida, cujo auge desportivo experienciou recentemente com a seleção, pela qual debutou em junho de 2003, numa vitória à Andorra (8-4), em Tavira.

As inéditas conquistas do Euro2018, à quinta tentativa - numa final sobre a Espanha (3-2, após prolongamento) -, e do Mundial2021, à quarta, além dos respetivos galardões de melhor jogador, foram a estocada final numa carreira de superação do embaixador por excelência do futsal nacional, que se tornou ídolo para muitos adeptos e praticantes.

Depois de ter entoado ‘A Portuguesa’ em lágrimas antes da final de Kaunas, o ‘capitão’ e número 10 nacional, de 1,65 metros, abdicou de lutar pela revalidação do título europeu em janeiro de 2022, nos Países Baixos, para concentrar forças no segundo ano com o campeão francês ACCS Paris, despromovido na secretaria ao segundo escalão.
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