Pandemia em regressão é foco de guerra entre críticos e defensores da OMS

por RTP

A descoberta do vírus da Gripe A apertava, há um ano, o Mundo num nó górdio de medo. Tomadas pelo fantasma de uma repetição da mortandade de 1918, as autoridades desencadearam uma resposta que levaria à declaração da primeira pandemia do século XXI e acabaria por impelir os países a comprar milhões de vacinas. Os críticos colocam as farmacêuticas na base da "dramatização". Quem ajudou a tomar decisões assegura que houve cautela a mais.

Nos últimos dias de Abril de 2009, as análises realizadas a uma criança mexicana de La Gloria, perto de Veracruz, na costa do Atlântico, revelavam a presença do vírus H1N1. Edgar Hernández, de cinco anos, passaria a ser conhecido como o "doente zero" da então denominada "gripe suína". A designação seria mais tarde alterada para Gripe A - o vírus combinava estirpes humana, aviária e suína.

Em escassos dias, as autoridades do México mandavam encerrar escolas, universidades, teatros, cinemas e outros espaços públicos. As medidas estendiam-se, gradualmente, às estâncias balneares e aos tesouros arqueológicos das civilizações pré-hispânicas. Em pouco tempo, o êxodo de turistas com máscaras sobre o rosto deixava vazios os hotéis do México. Entretanto surgiam notícias de novos casos diagnosticados nos Estados Unidos. O primeiro sinal de alarme da Organização Mundial de Saúde apareceu a 25 de Abril. A pandemia seria declarada a 11 de Junho.

Edgar Hernández, conta a France Presse, ainda vive em La Gloria, perto da exploração de porcos sobre a qual recaíram as primeiras suspeitas de propagação do vírus. Maria Del Cármen, a mãe da criança, diz à agência que Edgar "quer ser médico, para curar os meninos que venham a ficar doentes como ele". O México, como outros países, reforçou o seu sistema de saúde, dotando hospitais largamente carenciados de novos mecanismos de diagnóstico e equipamentos de respiração assistida. Foram também adquiridas 30 milhões de doses de vacinas para os grupos de risco. Vinte e oito milhões de doses foram administradas, um rácio que não teria paralelo à escala planetária.

"Pressão para exagerar os problemas"

Segundo os números da Organização Mundial de Saúde, a Gripe A H1N1 atravessou, em 12 meses, 213 países e territórios. Num primeiro momento, os especialistas estimavam que até 30 por cento da população terrestre, formada por 6,7 mil milhões de pessoas, fosse atingida pela nova variante do vírus. Christophe Fraser, um epidemiologista do Imperial College de Londres ouvido pela France Presse, acredita que a incidência global da infecção seja, na verdade, de dez a 20 por cento.

Por outro lado, a maioria das pessoas infectadas apresentou uma sintomatologia ligeira, em muitos casos inexistente, que não obrigou a internamentos hospitalares em massa. E os números da mortalidade ficaram muito aquém das expectativas iniciais. Os testes laboratoriais confirmaram pelo menos 17.700 mortes relacionadas com o H1N1. Por comparação, a gripe sazonal mata cerca de 500 mil pessoas por ano. Na pandemia da gripe espanhola de 1918-1919 morreram 50 milhões de pessoas e, em 1957 e 1968, a gripe foi responsável por um a dois milhões de casos mortais.

No auge dos temores, já perto do termo de 2009, os países desenvolvidos haviam adquirido a um punhado de farmacêuticas mais de mil milhões de doses de vacinas contra a Gripe A. A Organização Mundial de Saúde começou por avançar com uma previsão de cinco mil milhões de doses anuais. Até hoje, porém, apenas 200 milhões de pessoas receberam a imunização. Os críticos acusam a OMS de se ter vergado aos interesses da indústria: no primeiro trimestre de 2010, as contas da Novartis, por exemplo, revelavam lucros de 1,1 mil milhões de dólares com a venda de vacinas, ao passo que a GlaxoSmithKline despachara já 130 milhões de doses por mil milhões de euros.

À France Presse, o parlamentar britânico Paul Flynn, que encabeça uma comissão de inquérito do Conselho da Europa, fala de uma estratégia de pressão sobre o conselho de peritos da OMS "para exagerar os problemas, o que significa mais contratos, mais bolsas e mais dinheiro para fazer investigação sobre a gripe": "Foram despendidas somas enormes por muitos países para comprar antivirais e vacinas que nunca foram utilizados e que jamais o seriam".

O problema, explica Paul Flynn, reside agora na credibilidade. "Se, no futuro, houvesse um vírus muito perigoso, já ninguém acreditaria nestes avisos", argumenta.

"Transparência"

Em resposta aos críticos, a OMS afirma pautar-se pela "transparência" e afasta quaisquer ingerências por parte da indústria farmacêutica. Apoiada pelas opiniões de um largo espectro de virologistas, a Organização instituiu uma comissão independente de 29 especialistas para avaliar todas as decisões relacionadas com a Gripe A H1N1. Ouvido pela comissão na passada quarta-feira, John Makenzie, presidente do Comité de Emergência que coadjuvou a OMS até à declaração da pandemia, garantiu que o organismo foi "cauteloso".

"Esperámos muito mais do que devíamos, com antecedência havia não apenas indicações mas também provas epidemiológicas. Mas esperámos até haver uma transmissão sustentada em três regiões para declarar a pandemia", sustentou Makenzie.

O vírus H1N1 está hoje em regressão nas regiões temperadas dos hemisférios Norte e Sul, apresentando uma actividade débil nas zonas tropicais. John Makenzie advoga que a fase de pandemia deve vigorar até que as autoridades sanitárias estabeleçam a evolução da Gripe A durante o Inverno no Hemisfério Sul. Uma posição corroborada pelo professor britânico de virologia John Oxford, que, em declarações à France Presse, assinala que, "infelizmente, o vírus ainda não está morto". Oxford diz mesmo tratar-se de um "super vírus" em evolução permanente, que poderá revelar-se mais mortífero numa eventual segunda vaga de propagação.

"Faz todo o sentido recomendar a vacinação"

Em Portugal, há registo de pelo menos 122 mortes associadas à Gripe A. Dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS) revelam que 73 por cento das infecções atingiram jovens até aos 29 anos de idade, 38 por cento foram verificadas em menores até aos dez anos, 22 por cento entre os dez e os 19 anos e 13 por cento em adultos dos 20 aos 29 anos - 95 por cento das 122 mortes ocorreram em grupos de risco; a obesidade mórbida foi o principal factor associado aos casos mortais.

Perante o "declínio comprovado" da actividade viral, a DGS decidiu suspender as medidas excepcionais decretadas no quadro do Plano de Contingência da Gripe. "Todas as medidas de carácter excepcional que tinham sido activadas deixam de ter indicação, atendendo ao declínio comprovado da actividade viral provocada pela estirpe H1N1. Há aqui um período onde confirmadamente não há circulação do vírus pandémico e não faz sentido continuar a utilizar essas medidas, nomeadamente aquelas que implicavam apoio ou distanciamento social e a desinfecção das mãos com um gel", afirmava Francisco George na passada quarta-feira, em declarações citadas pela agência Lusa.

O responsável acrescentou, no entanto, que "faz todo o sentido recomendar a vacinação", tendo em conta a expectativa de que o H1N1 venha a tornar-se "preponderante como causa principal da gripe no próximo Outono".

No início da semana, a ministra da Saúde, Ana Jorge, garantia que a tutela iria continuar a pôr em prática medidas de prevenção da Gripe A H1N1. "Não estamos numa época de gripe, mas o vírus mantém-se e vai estar vivinho e actuando em várias populações", declarou Ana Jorge.

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