Joe Biden e a Presidência. O sonho do jovem senador do Delaware

por Paulo Alexandre Amaral - RTP

Três vezes pode não ser apenas teimosia. A palavra deve ser outra: ambição, talvez. Persistência, obstinação. A justificação deste derradeiro ensaio para chegar ao cargo mais alto da Casa Branca depois de uma carreira de quase 40 anos no Senado (sete mandatos entre 1973 e 2009) e duas vice-presidências ao lado de Barack Obama pode ser encontrada num dos pilares que sempre ancoraram a vida de Joseph Robinette Biden Jr: Quando fores ao chão, levanta-te.

Joe Biden, um filho da classe média trabalhadora de Scranton, Pensilvânia, gostava de citar o pai. "O meu pai costumava dizer: A medida de um homem não é o número de vezes que é derrubado, mas a rapidez com que se levanta". Um ensinamento que funcionaria para Biden como adágio tanto como presságio.

A vida do candidato democrata está cheia de pedras que se atravessaram no seu caminho, tragédias familiares que ensombraram o seu trajecto político. Primeiro, a perda da primeira mulher, Neilia Hunter, e da filha de um ano num acidente de automóvel escassas semanas depois de se tornar num dos mais jovens senadores dos Estados Unidos. Beau e Hunter, os outros dois filhos, sofreram ferimentos menos graves e sobreviveram (casaria cinco anos depois com a sua actual mulher, Jill Jacobs, de quem teve uma filha em 1981).

Quatro décadas e meia depois, perderia Beau, que não resistiu a um cancro no cérebro, quando se dizia estar iminente o anúncio da candidatura às presidenciais de 2016 e da qual viria a desistir antes mesmo de se apresentar às directas do Partido Democrático. Estes são argumentos que nos dizem de Biden ser um homem determinado mesmo perante a tragédia, um actor político distante da caricatura do Sleepy Joe que a equipa de Donald Trump tenta colar ao antigo senador e ex-vice-presidente, agora nos seus 77 anos. Idade que, em caso de vitória nas eleições desta terça-feira, o tornará no mais velho Presidente dos Estados Unidos.

Emotivo, determinado, dado às gaffes, é ainda no misto destes registos que Joe Biden volta a apresentar-se aos eleitores americanos, parecendo por vezes surgir fora de tom. Mas, do jovem advogado que declarava à primeira mulher que ia chegar ao Senado aos 30 anos – e um dia à Presidência – até à alcunha de Sleepy Joe, o que poderá ter mudado? Talvez nada. Biden nunca terá deixado de ser Biden, o recém-licenciado em Direito que via em Washington um futuro interessante.

Longe de ser o homem adormecido pela idade que a entourage de Trump não se cansa de apontar, a decisão de avançar uma terceira vez para o cargo mais alto da nação já na fase derradeira da vida é apenas o concretizar de uma ambição que procurou logo nos anos 80 e que repetiria numa segunda tentativa, 20 anos depois, em 2008, quando Barack Obama ganhou a nomeação do Partido Democrático e o escolheu para o bilhete democrata, abrindo caminho a uma Presidência que fica para a história como a primeira Administração com um negro a chefiar a Sala Oval.

Oito anos marcados por uma parceria à partida improvável, mas que daria a Biden um papel decisivo na procura de consensos com o GOP – fruto de uma rede de relações que o vice-presidente estabelecera nos corredores do Congresso – sempre que a máquina do governo federal estava às mãos de uma qualquer sabotagem republicana. No seu percurso como senador do Delaware, para onde se mudou ainda jovem com a família, Joe Biden cimentara a imagem de negociador, em particular quando exerceu a chefia do Comité Judiciário e do Comité das Relações Exteriores.

Mas são também os seus 77 anos e essas cinco décadas de actividade nos corredores de Washington que abrem inevitavelmente espaço a contradições e equívocos que conferem ao currículo de Biden uma textura política com os seus matizes. Pormenores que nas contendas eleitorais se tornam alvo de caça para os opositores. Exemplo disso são as alegações de Donald Trump relativamente a uma suposta cumplicidade do agora candidato democrata com os manifestantes que há meses tomam a rua americana num protesto contra o tratamento da população negra às mãos da polícia, em particular desde o homicídio de George Floyd. Alegações que aparentemente são afastadas pelo testemunho do próprio passado de Joe Biden.
"Vocês acham mesmo que eu pareço um socialista radical?"

Ouvidos antigos colegas da universidade, e não podendo dizer-se que as ideias políticas de Biden estivessem desligadas dos movimentos de direitos civis que floresciam no meio académico, a imagem era de que mesmo na juventude, quando é suposto deixar fluir as doutrinas mais revolucionárias, o jovem Biden optara por contornar esse universo – na altura fervia a contestação à Guerra do Vietname – por uma questão de temperamento. Ou antes, por uma questão de prioridades. Apesar de ser oriundo de uma família modesta da classe trabalhadora – o pai, Joe Biden Sr., era um razoavelmente bem-sucedido vendedor de carros –, seria mais a dimensão hedonista da vida académica que centrava os interesses do jovem universitário.


De acordo com os relatos dos amigos desse período, era nesse aspecto dos prazeres da vida académica que estavam centrados os seus interesses. Ao ponto de desleixar os estudos. Bons carros, que alugava graças aos relacionamentos proporcionados pela ocupação de Biden Sr, roupas elegantes e uma figura que os amigos viam entre o charme e a discrição eram na altura todo o arsenal que Joe Biden queria cultivar. Com custos evidentes para o seu registo académico, como as histórias que ficaram do plágio num trabalho do curso de Direito, apesar de a universidade ter aceitado a justificação de Biden de que tudo se devera ao facto de não conhecer devidamente as regras da citação, retirando a queixa que poderia valer-lhe a expulsão. Um percalço que não impediu Biden, já com majors em História e Ciência Política (Universidade de Delaware), de se tornar advogado (Universidade de Syracuse) em 1969 e ser eleito no ano seguinte para o Conselho do Condado de New Castle, Delaware.

Recentemente, Biden não conteve uma intervenção irónica em relação a essa acusação de Trump: “Vocês acham mesmo que eu pareço um socialista radical que tem um fraquinho por arruaceiros [rioters no original]. A sério?”. Os colegas da Universidade de Syracuse confirmam: na altura não, não tinha. E contam o episódio em que um grupo de activistas ocupava o gabinete do reitor da universidade num protesto sentado contra a Guerra do Vietname. Biden, que passava no local com os amigos, desviou-se dos manifestantes, mais preocupado com uma ida até à pizaria mais próxima. Biden – referem os antigos companheiros – era um institucionalista. Em retrospectiva, as suas escolhas foram sempre de uma natureza leal ao sistema, ainda que para mudar esse mesmo sistema.

Em auxílio de Biden chega o ano de 1994, quando, no Comité Judiciário, liderou a defesa de uma legislação leonina de combate ao crime. Lei apontada como fortemente encorajadora de prisões em massa e sentenças demasiado longas, um quadro legal que a esquerda e até a facção mais progressista do Partido Democrata leem como a parte desconfortável do currículo de um Joe Biden que procura por estes dias ocupar o espaço político moderado. Foi porém com outro registo que Biden fez a sua entrada na alta-roda da política americana. Na primeira eleição para o Senado, em 1972, apresentou-se ao eleitorado de Delaware com uma agenda encimada pelas questões ambientais, os direitos civis, a justiça da política fiscal e a assistência médica para a generalidade da população.
"Amtrak Joe"

Pelo meio das batalhas políticas ficam as viagens de comboio entre Wilmington (Delaware) e Washington. A criar os filhos sozinho – o que inicialmente o levou a ponderar abdicar do cargo – durante os primeiros anos no Senado, Joe Biden ficou conhecido por usar os comboios Amtrak como meio de transporte até ao Capitólio e, ao fim do dia, de regresso a casa, o que lhe valeria a alcunha de Amtrak Joe.

Nesses primeiros anos é provável que, além da agitação ferroviária, Joe Biden tenha sido também uma vítima da indefinição do seu core político, o que o enredou em polémicas como a votação contra o fim da segregação dos autocarros escolares, um assunto muito americano relativo aos autocarros para jovens estudantes negros, estigmatizados durante décadas no transporte escolar. Biden votaria contra a lei que punha um ponto final a esta divisão explicando que o seu objectivo era chegar mais longe: não limitar-se a travar a segregação no transporte escolar mas acabar com o sistema racialista na totalidade da instituição escolar.

A argumentação de Biden acabaria enrolada na sua própria boa vontade, com o senador do Delaware a advogar pelo fim de toda e qualquer segregação no sistema escolar, eventualmente entendendo que resolver apenas a questão dos autocarros era como colocar um penso-rápido num membro que estava fraturado. A decisão valeu-lhe acusações de colagem aos segregacionistas do sul, que se opunham à integração racial das escolas públicas. Biden costuma referir, em sua defesa, que sempre teve consciência do problema racial, em particular depois de trabalhar como nadador-salvador numa zona maioritariamente negra de Wilmington durante a juventude.

As audições para confirmação do juiz Clarence Thomas para o Supremo Tribunal, em 1991, deixariam também uma sombra no seu percurso à frente do Comité Judiciário do Senado devido à forma como dirigiu a sessão em que Anita Hill testemunhou contra Thomas por alegado assédio sexual uma década antes, quando era sua assistente. Hill, advogada e professora universitária, acusava o candidato ao Supremo de a ter assediado quando era seu supervisor na EEOC (Equal Employmente Opportunity Commission – a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego do Departamento de Educação) nos anos 80.


Perguntas incómodas e despropositadas, rejeição para ouvir outras testemunhas – foram algumas das críticas deixadas à forma como Biden conduziu o testemunho de Anita Hill. Só três décadas depois, já em 2019, Biden viria a apresentar um pedido de desculpas a Hill, num telefonema que a advogada e activista considerou insatisfatório. Joe Biden votaria contra Thomas, escolha de George Bush pai, mas o juiz acabou confirmado e faz ainda parte da equipa do Supremo americano. Este episódio colou-se a Biden e valeu-lhe fortes críticas de várias organizações, que não lhe perdoaram o comportamento face a Anita Hill.

Uma falha que procuraria limpar nos anos seguintes com a introdução de questões relativas à situação das mulheres na agenda legislativa do comité. Uma dessas peças, a Lei de Violência Contra as Mulheres (VAWA - Violence Against Women Act, 1994) viria a ser considerada pelo próprio Biden como a contribuição legislativa de que mais se orgulhava na sua carreira no Senado. Em causa, um conjunto de medidas para combater a violência doméstica nos Estados Unidos, permitindo enfim que as vítimas processassem os agressores nos tribunais federais. Esforço que não impediu que a questão do assédio viesse, mais tarde, bater à porta do próprio senador. Com a iminência da entrada de Biden na corrida presidencial de 2020, várias mulheres vieram a público revelar o que consideravam ser um comportamento inapropriado do ex-vice-presidente no que tocava ao relacionamento pessoal.

Numa América obcecada pelo puritanismo da vida pública, Biden era acusado de se dar a demasiadas liberdades na maneira como as cumprimentava, como deixava que as suas mãos as tocassem com demasiada liberdade nessa gestualidade a que o acusado se referiria como uma mera demonstração de afeto. Joe Biden, o “Middle Class Joe”, ter-se-ia deixado levar pela forma aberta como construiu a carreira pública, um modus operandi assente nos relacionamentos de proximidade com os trabalhadores e o cidadão da rua. Fora uma estratégia assente nessa mecânica de proximidade que conseguira importantes vitórias políticas, particularmente nos primeiros tempos, em batalhas duras nas quais se apresentava em desvantagem de meios face às máquinas de campanha adversárias. Porquê mudar? Talvez porque as mulheres ganharam outra voz e começaram a traçar elas os limites da sua dignidade.

Face às acusações iniciais de Lucy Flores – a latino-americana funcionária da Assembleia do Estado do Nevada diz que Biden lhe pôs as mãos nos ombros quando estava a subir ao palco numa acção de campanha e que a beijou então na nuca – e Amy Lappos – a ex-assessora de um deputado democrata acusou o então vice-presidente de a ter agarrado na cara com ambas as mãos e tocar o seu nariz com o dele –, Biden afirmaria que “em muitos anos de campanha eleitoral e de vida pública ofereci inúmeros apertos de mãos, abraços, expressões de afeto, apoio e conforto. Nem uma vez, nunca, acreditei ter agido inapropriadamente”. O primeiro episódio teria ocorrido em 2014, o segundo em 2009.

Mais duro foi o golpe desferido a Biden por uma antiga funcionária do seu gabinete no Senado. Aqui falava-se já de abusos sexuais que teriam ocorrido na década de 90. Tara Reade fora assistente de Joe Biden no Senado entre dezembro de 1992 e agosto de 1993 e o abuso teria acontecido em 1993, quando o senador a teria encostado a uma parede, tocando-a sob a camisa e a saia. Depois de um silêncio que começava a incomodar os parceiros da candidatura, Biden veio a público para negar a existência destes factos: “Aquilo nunca aconteceu. Ponto final”.

Entretanto, terá percebido o quão potencialmente deletérios podem ser alegações deste género para a vida de um político e cedeu a uma espécie de mea culpa: “Chegámos a uma altura em que a mulheres sentem que podem e devem relatar as suas experiências e que os homens devem prestar-lhes atenção. E eu prestarei”. A verdade é que as acusações não fizeram o seu caminho à medida que a campanha para a Casa Branca avançou. A equipa Trump preferiu investir nos alegados negócios impróprios da família Biden na Rússia e na Ucrânia, deixando cair esses episódios da idiossincrasia do candidato democrata.

Os anos de Senado permitiram a Biden construir um currículo com espessura, uma rede de amizades que o favorecem com testemunhos de um homem de carácter. Contribuíram para isso pacotes legislativos como a luta contra a violência sobre as mulheres ou o controle de armas “pesadas”. Mas não só, a participação em momentos cruciais da política externa americana – tendo presidido ao Comité de Relações Exteriores durante vários anos – concedeu-lhe um protagonismo indelével na história das últimas décadas, nomeadamente no dossier da Guerra da Bósnia. Seria um defensor do apoio aos muçulmanos bósnios e ficou para as actas da América recente a semana que passou nos Balcãs, período em que se encontraria com Slobodan Milosevic, um encontro duro em que terá dito ao líder sérvio que ele era “um maldito criminoso de guerra, que devia ser julgado por esses crimes e que ele [Biden] tudo faria para que ele respondesse perante a Justiça”.

Durante anos Joe Biden dizia ver o papel que teve no conflito como o seu “maior orgulho na vida pública” na arena internacional. Foram anos que lhe permitiriam adiante, já vice-presidente, assumir uma responsabilidade acrescida na ocupação do Iraque, com o Presidente Obama a atribuir-lhe um protagonismo que se traduziu em viagens periódicas para o Médio Oriente, onde visitou as tropas americanas e reuniu com o então primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, até à retirada americana em 2012.
Biden, vice-presidente

A vice-presidência ao lado de Barack Obama seria marcada por mudanças na legislação de saúde e na produção de pacotes de estímulo económico, nomeadamente no primeiro mandato, em plena crise mundial, a mais grave em quase 80 anos. Foram oito de que Biden poderá agora, nesta corrida presidencial, colher
frutos eleitorais.


Biden e Obama numa acção de campanha em Flint. Brian Snyder - Reuters


Se inicialmente Joe Biden foi escolhido para o bilhete democrata para conquistar a classe média que sempre fora a sua base de apoio, os anos seguintes na Administração viriam a revelar que o seu peso valia mais do que os votos (dos trabalhadores das indústrias e dos serviços) que escapavam a Obama. Em inúmeras crises, Biden seria aquele que fazia o caminho da Casa Branca no Congresso e “punha as coisas a andar”. O fecho do Governo Federal, fruto de impasses orçamentais e indefinições à volta do financiamento e dos tectos da dívida do governo, é um cenário que qualquer Administração arrisca enfrentar. Obama não escapou a essa sorte e 2013 confrontou-o com uma verdadeira crise. Mas dois anos antes, em 2011, teria sido o bom relacionamento de Biden com Mitch Mcconnell, líder dos republicanos, a evitar o colapso.

Bom negociador, Biden podia ser também um poço de surpresas, melhor dito: uma fonte de gaffes. Por exemplo, em 2012 afirmou numa entrevista que se sentia confortável em relação ao casamento de pessoas do mesmo sexo. O assunto não estava na agenda imediata de Obama e obrigou o Presidente, que tinha o que era referido como uma posição “evolutiva” em relação ao assunto, a evoluir rapidamente para uma tomada de posição efectiva. Um episódio que deixou a Sala Oval de nervos em franja. É que já em 2009, em plena epidemia da gripe suína, Biden havia desaconselhado as viagens de metro ou de avião, levando a Casa Branca, na altura, a emitir uma retractação imediata.

As pequenas e grandes crises não eram estranhas a Biden e acompanharam-no por toda a sua carreira política. Logo em 1988, quando ensaiou a primeira tentativa para chegar à Presidência, acabaria por se ver obrigado a deixar cair a candidatura ainda durante as directas do Partido Democrata por, em Agosto de 1987, ter plagiado o discurso do então líder trabalhista britânico Neil Kinnock. Numa argumentação em que questionava o porquê de ser ele o primeiro da sua família a ir para a universidade, o mesmo se passando com a sua mulher, pegara nas exactas palavras de Kinnock para ilustrar esse mundo de oportunidades fechadas à classe trabalhadora.

Perante as acusações de plágio chegou a argumentar que se sentia tão na pele do político britânico que aquelas palavras pareciam talhadas para si, uma justificação que não impediu que viesse a retirar a candidatura semanas depois. A ironia, neste caso, está no facto de em dezenas de ocasiões Biden ter usado as palavras de Neil Kinnock, mas sempre atribuindo a devida autoria. Fora apanhado uma vez em falta e na política, por vezes, uma única vez é demais.

Chegaria à Casa Branca vinte anos depois desse episódio e após uma derrota nas primárias que lhe roubava os planos da Presidência. A equipa de Barack Obama, que ganhou a nomeação democrata, consciente das falhas da sua candidatura nas franjas da América trabalhadora tão familiar ao “Middle Class Joe”, decide repescar Joe Biden. A 27 de agosto de 2008, na Convenção Nacional de Denver, torna-se oficialmente candidato a vice-presidente pelo Partido Democrático. A 4 de novembro, o bilhete Obama-Biden vence a eleição Presidencial. Parte do sonho do jovem senador do Delaware tornava-se realidade.

Contra as alegações da idade, Biden, nos seus 77 anos, apresenta-se agora aos eleitores americanos com um currículo considerável: senador do Delaware por mais de três décadas e meia e dois mandatos como vice do Presidente Barack Obama, entre 2009 e 2017. Números que não garantiram, contudo, o que poderia parecer uma vitória cantada. O ex-vice-presidente teve de correr muito para suplantar Pete Buttigieg, uma estrela em ascensão, mas não só, também Kamala Harris, que é agora a parte B do bilhete democrata na vice-presidência, Beto O’Rourke, uma espécie de JFK, e Bernie Sanders, crónico favorito dos revoltados, a reserva moral do partido mas sempre com a sombra do socialismo a cortar-lhe as asas a voos mais altos.

Apesar das dificuldades com umas primárias que revelavam logo em Fevereiro deste ano um Partido Democrático incapaz de se definir num candidato, Joe Biden conseguiria, seis meses depois, a 20 de agosto, garantir a nomeação oficial para a corrida à Casa Branca.



Não deixaram, contudo, de ser meses duros para Biden, numa altura em que Donald Trump enfrentava um processo de impeachment – do qual acabaria por se livrar sem grande mácula junto do seu eleitorado de base – e o candidato democrata, fosse ele qual fosse, poderia capitalizar da situação de aperto em que se encontrava o Presidente.

Mas nada parecia correr bem a Biden, também ele enredado em suspeitas de corrupção no seio da família, em particular com negócios em países estrangeiros a envolvê-lo não apenas a si mas também ao filho, Hunter Biden. Um assunto que estaria ligado à alegada ingerência de Trump junto de Kiev e que levaria à abertura do processo de destituição. O Presidente teria adiado um pacote de milhões em ajuda à Ucrânia uma semana antes de manter uma conversa telefónica durante a qual teria pressionado o presidente Volodymyr Zelensky a investigar o filho do ex-vice-presidente. Trump nunca negou a conversa, como não negou que Hunter Biden tenha sido um assunto na conversa que manteve com Zelensky, mas reiterou que não havia “nada de errado nisso”. De acordo com o Washington Post, o mesmo jornal que há cinco décadas escavou o caso que levaria à queda do Presidente Richard Nixon, a ordem para reter os 400 milhões de dólares foi confirmada por três altos funcionários da Administração.

Trump redobrou a retórica belicista e largou novas acusações contra o ex-vice-presidente: “Joe Biden e o seu filho são corruptos. Se um republicano tivesse feito o que eles fizeram, estava agora na cadeira eléctrica”. Biden mantém a versão de que não passa disto: Hunter foi membro do conselho de administração da Burisma, maior empresa privada de gás na Ucrânia, a empresa esteve sob investigação, mas nada se provou nunca acerca do seu filho.

Joe Biden enfrentou ainda a acusação de ligações à Rússia nos negócios da família mas contou aqui com um aliado improvável: o próprio Presidente russo rejeitou essa ideia de que haveria um comportamento criminoso nos negócios de Hunter Biden no país ou na Ucrânia. “Tinha pelo menos uma empresa e ao que parece fazia bastante dinheiro. Não vejo nada de criminoso nisto”, garantiu Vladimir Putin numa mudança de tom em relação a Trump e que poderá significar falta de confiança em nova vitória do Presidente esta terça-feira.

Na sua juventude, Joe Biden lutou contra a gaguez recitando poesia frente ao espelho. Logo após o primeiro falhanço na candidatura de 1988, seria submetido a um par de operações para debelar dois aneurismas que poderiam ter-se revelado fatais. “Como o meu pai [Biden Sr.] costumava dizer: quando fores ao tapete, levanta-te”. Obstinação poderá ser a palavra que define Joe Biden, o combustível que mantém o ex-vice-presidente na alta-roda da política americana aos 77 anos.

Em janeiro de 2017, na fase derradeira da Administração Obama, o Presidente concedeu-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, maior condecoração civil dos Estados Unidos.

Esta terça-feira, quase cinco décadas após a primeira nomeação para o Senado, apresenta-se a escrutínio com uma ideia: voltar a unir um país estilhaçado por uma Presidência beligerante que dividiu para reinar. Sarar as feridas, baixar a temperatura nas ruas e reconstruir a nação são a bandeira da campanha Biden-Harris.
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