“... Fica o país livre dos seus mais ferozes inimigos... capazes das façanhas mais baixas e dos crimes mais tremendos...” escrevia então o jornal O Século.
Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Nacional de Lisboa
O incêndio que em 18 abril destruiu o edifício do Arsenal da Marinha, incluindo a Sala do Risco e o Depósito de Cartas, foi apresentado como obra de espiões alemães. Todos os dias surgiam artigos a alertar para o perigo de ter em território nacional súbditos do Kaiser de ‘duvidosas lealdades’.
O incêndio que em 18 abril destruiu o edifício do Arsenal da Marinha, incluindo a Sala do Risco e o Depósito de Cartas, foi apresentado como obra de espiões alemães. Todos os dias surgiam artigos a alertar para o perigo de ter em território nacional súbditos do Kaiser de ‘duvidosas lealdades’.
Mesmo depois da expulsão dos alemães falava-se da necessidade de “rigor” para com os portugueses que trabalhassem em firmas e companhias com capital maioritariamente alemão e que fossem pagos em marcos.
O decreto
A 5 de abril fora publicado o decreto proibindo os nacionais das nações inimigas de entrarem em Portugal. Mas isso não bastava.
Afonso Costa, que passara a deter a pasta das Finanças depois da formação do governo de unidade entre o partidos evolucionista e o partido democrático, acabou por ceder à pressão e a 13 de abril assinou o decreto-lei 2350 que determinava a expulsão. Este foi publicado depois a 20 de abril logo após o incêndio do Arsenal da Marinha e dava cinco dias aos alemães de ambos os sexos para saírem do país. Aplicava-se a todos exceto aos homens entre os 16 e os 45 anos.
Esses ficaram obrigados a apresentar-se às autoridades militares para serem “conduzidos para o lugar que for designado pelo Governo”. Pretendia-se evitar que fossem engrossar as fileiras alemãs. Decretava-se a apreensão dos seus bens mas permitia-se que, se tivessem os meios para tal, pudessem levar as famílias para o ‘Depósito de Concentrados’ para onde iam ser transferidos.
Os protestos
Lisboa foi sempre um importante entreposto comercial e porto europeu e a Alemanha já há muitos anos que mantinha boas relações políticas e comerciais com Portugal, como forma de contrariar a hegemonia britânica nos mares.
Havia cerca de 970 súbditos alemães e 110 austro-húngaros em Portugal continental no censos de 1910, além de turcos. Muitos deixaram o país, nos dias seguintes ao apresamento dos navios alemães e após o decreto de 20 de abril.
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Mas muitos ficaram, sobretudo os nascidos em Portugal e com família portuguesa.
“De início, alguns alemães não acreditaram que, nas decisões do Governo português, fosse incluído o seu aprisionamento, visto residirem há muito no país, se considerarem portugueses e até terem filhos que tinham cumprido o serviço militar em Portugal. Alguns deles fizeram então declarações nesse sentido ou alertaram que a sua expulsão ou prisão até deixaria muitos portugueses sem trabalho. Outros, no entanto, abandonaram imediatamente o país, sobretudo para Espanha, para onde também transferiram os seus capitais” escreve Yolanda Corsépius, descendente de um desses alemães, depois ‘concentrado’.
Mais à frente, a mesma autora dá alguns exemplos de alemães que recusavam partir, desde o comerciante Charles Timm, do norte, o industrial da cortiça, Herold do Barreiro, aos casos de homens filhos de alemães mas nascidos em Portugal, casados com portuguesas e com filhos integrados nas forças armadas nacionais, como o comerciante de pianos José Schumacher.
Outros afirmavam nem ser alemães, como “a família de Johann Hitzemann, esclarecendo que nem nascera na Confederação Alemã visto ter nascido em Hannover, cidade independente na altura, ter mesmo recusado o serviço militar alemão e ter dois filhos a servir no Exército português”.
E ficaram célebres, tanto o caso da família de Hermann Burmester, em Portugal há mais de um século e um dos maiores comerciantes de vinhos, como o dos Orey, que detinham a maior firma de transportes de pessoas e de mercadorias do país e que viu três dos cinco irmãos nascidos e criados em Portugal serem expulsos.
Muitas pessoas, como os d’Orey, nunca tinham estado sequer na Alemanha, eram civis e consideravam-se portuguesas, mas foram de qualquer forma abrangidas pelo decreto. Perderam os seus bens, que foram arrolados e colocados sob administração do Estado ou vendidos ao desbarato.
Dia 21 de abril muitos alemães ou descendentes de pai alemão, alguns em idade militar, começavam a abandonar o país. (Imagem Século saída alemães dia 21)
Dois dias depois, a 22 de abril, véspera de Domingo de Páscoa, um novo decreto aprofundava o primeiro. Retirava a “qualidade de cidadão português” aos filhos de pai alemão e anulava as naturalizações concedidas anteriormente aos agora inimigos. Surgiu assim uma nova ‘classe’ em Portugal, dos “desnacionalizados” como ficaram conhecidos.
De imediato ao Ministério dos Negócios Estrangeiros começaram a chegar centenas de pedidos de esclarecimento. Havia ainda a ténue esperança que o Governo passasse uma autorização de residência, o que veio a suceder em mais de 700 casos.
Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal de Lisboa
Após grandes debates, a 15 de maio, foi aprovado um novo decreto o Nº 2377, que eximia da expulsão os funcionários do Estado – dois dos cinco irmãos Orey foram por isso autorizados a ficar no país – e ainda “os militares ou antigos militares, viúvas, divorciadas ou solteiras que tivessem filhos no Exército Português”.
“O Porto foi o mais beneficiado destas medidas”, refere Yolanda Corsépius, “e já um dia antes do decreto, 119 mulheres portuguesas e mais de 600 indivíduos com sangue alemão tinham sido autorizados a permanecer em Portugal. Entre eles a família Sommer, Ernestine von Wehye Daenhardt, viúva do Cônsul honorário Ernst Leopold Daehnhardt, e Carolina Michaelis de Vasconcelos, filóloga divulgadora da lírica medieval e renascentista portuguesa e casada com o historiador Joaquim de Vasconcelos”.
Revista Lusitania - Hemeroteca Nacional de Lisboa
Carolina Michaelis de Vasconcelos com netos
Outros alemães, desgostosos, nunca mais voltaram a Portugal. Yolanda refere o caso de Burmester, que atribuiu a expulsão “ao facto de ser rico”.
E assinala também o da família Biel “cujo pai, Emil, chegara a Portugal em 1857, tinha quatro filhos e, entre outros feitos, tinha divulgado a eletricidade no norte do país, publicado uma edição valiosa dos “Lusíadas” e desenvolvido um valioso trabalho de fotografia, incluindo o levantamento dos monumentos religiosos de Portugal. Era o orgulho da indústria do Porto e do património cultural português. Os milhares de clichés em vidro que tinha feito acabaram por ser vendidos a peso para fábricas de vidro e de cerâmica.”
Emil Biel
Rumo a Angra
A 25 de abril, dias depois da publicação do decreto de expulsão, os alemães radicados no continente e nas ilhas embarcaram, o último deles sob protesto e escolta, rumo aos Açores.
Viajaram igualmente os membros das tripulações dos navios apresados que ainda estavam em Portugal.
De Goa vieram igualmente 47 alemães e austríacos, alegadamente por razões de saúde. A princípio internados em três campos nas principais ilhas, acabaram por ser transferidos em Junho para o Castelo de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo. A ilha Terceira já estava sob estado de sítio.
Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal de Lisboa
Este Postal ficcionado tal como outros, mostra o choque de muitos portugueses com o que estava a passar-se.
Ao longo dos meses seguintes e até finais de 1917, deram entrada do castelo 551 prisioneiros, vindos de várias partes do Império Ultramarino, à exceção de Moçambique, Timor e Macau. Em agosto de 1918 eram já 724, o máximo registado. Cada um tinha a sua ficha sumária, que registava o nome, a idade e a profissão, além de alguma característica distintiva e, nalguns casos o local e o dia de nascimento.
A vida no Castelo
A presença dos alemães obrigou as autoridades a uma série de obras de saneamento e nos aquartelamentos, incluindo instalação elétrica e abastecimento de água, que de início se fazia em barris carregados por burros.
As condições eram insalubres e sem qualquer higiene e três pessoas morreram numa epidemia de febre tifoide. Ao todo, ao longo dos quatro anos em que estiveram concentrados, a comunidade registou nove óbitos.
Estavam acompanhados por uma Comissão da Cruz vermelha que além de apoio médico garantia a correspondência dos concentrados. As cartas deviam ser todas escritas em português para poderem ser expedidas e estavam sujeitas a censura embora tivessem o porte pago.
Os concentrados tinham de formar na parada do Forte duas vezes por dia, por grupos de proveniência: Madeira, Cabo Verde, Angola, Ponta Delgada, Faial, Goa, etc. Não podiam também estar ausentes do quartel entre o período de recolha e a alvorada (Ordem de Serviço nº 122 de 1 de maio de 1916 do Regimento de Infantaria nº 25 que garantia a segurança da cidade e cujos oficiais estavam diretamente incumbidos de gerir a comunidade do Castelo).
Parada do Forte de São João Baptista
A mesma ordem de serviço impõe as regras de correspondência e de movimentação da comunidade alemã. Os alemães podiam deixar o Castelo com autorização do comandante mas as relações com os habitantes de Angra não eram fáceis. Um alemão foi um dia apanhado vestido de mulher e foi obrigado a seguir assim vestido de volta ao quartel, sob apupos e algumas pedras açorianas.
As condições de alojamento variavam e os alemães organizaram-se entre si de acordo com estratos sociais distintos, com direitos diferentes a nível de convívio até com os portugueses. Na primeira agrupavam-se os comandantes dos navios apresados que não tinham saído de Portugal e vários membros das famílias mais ilustres e abastadas da colónia alemã, ricos comerciantes e industriais.
Seguiam-se comerciantes menores, funcionários de escritórios, telegrafistas e desenhadores, assim como os oficias de menor patente. O terceiro grupo era composto pelos marinheiros dos navios e por agricultores, fogareiros e outras profissões semelhantes.
A média de idades rondava os 30 anos e a maioria dos concentrados era solteira ou estava sozinha, embora existissem algumas famílias – viviam no Castelo 26 crianças -, algumas até com criadas, que podiam ir buscar abastecimentos à cidade. Os alemães tinham ainda liberdade para formar grupos de teatro ou uma orquestra e fizeram-no, indo por vezes animar as festas de Angra.
Outra ocupação era a jardinagem e chegou a ser criado o “Jardim dos Alemães”, no exterior do Castelo e cuja localização hoje se desconhece. Vendiam os legumes ali recolhidos e também arranjavam sapatos, entre outras atividades.