Como um pequeno café em França serviu de refúgio aos soldados portugueses

A avó de Marie-Thérèse Delmaire era a proprietária do café durante a Primeira Guerra Mundial e a neta relembra as histórias que a sua antepassada lhe contou sobre os soldados portugueses.

Pergunta: O que era esta casa durante a Grande Guerra?

Resposta: É uma casa que foi construída pelos meus avós. Durante a Grande Guerra foi ocupada pela minha avó, que era viúva e que perdeu cinco filhos jovens e que, em contrapartida, creio que se tornou na avó de todos os jovens e soldados que podiam vir ao seu café. Ela quase que os adotava.

P.: Então era um café?

R.: Um café, um pouco o local de encontro dos aldeões, certamente, mas em tempos de guerra também o era para todas as tropas que estavam acantonadas na aldeia.

P.: E que exércitos havia na aldeia, nessa altura?

R.: Havia tropas em Mametz, em Marthes, que fica num dos limites de Mametz, e havia principalmente ingleses, e alguns deles tinham trazido soldados indianos. Depois houve também portugueses e, curiosamente, não me lembro de haver franceses. Enfim, eu não me posso mesmo lembrar, já que eu ainda não era nascida. Tudo o que vos posso dizer é o que me contaram na minha família.

P.: O que se lembra do que a sua mãe e a sua avó lhe contaram?

R.: Elas diziam-me sobretudo que os soldados portugueses procuravam muito calor humano. Seria talvez a distância do seu país. Eles estavam contentes porque a minha avó partilhava o jantar e a sopa, ficavam felizes também quando se fazia amizade com eles, e depois, veja, eles deixaram algumas fotos, o que dá a sensação de que se sentiam bem ao encontrar alguém que se abrisse a eles.

P.: Eles vinham frequentemente aqui?

R.: Aparentemente havia sempre portugueses, provavelmente porque se sentiam bem acolhidos.

P.: E quando estavam aqui, no café, sabe o que faziam?

R.: Isso eu não sei. Não sei porque, antigamente, nos cafés, a grande ocupação eram os jogos de cartas, mas nunca ouvi dizer que os soldados portugueses jogavam às cartas.

É, aliás, bastante curioso. Eles bebiam um café e depois deviam sentir-se bem, primeiro por estarem juntos e também pelo calor, já que me lembro da minha mãe e a minha avó dizerem que o clima daqui era muito duro para eles.

Além disso tenho uma recordação, também da minha avó, das pessoas daqui agirem de forma um pouco trocista, ao dizerem que eles chegavam com mulas, com burricos, enquanto aqui os animais de carga são os cavalos. Os locais não sabiam que a mula era o animal de carga de Portugal, o que aliás não tinha nada de mal.

P.: E por que pensa isso?

R.: Porque nós tínhamos bastantes portugueses que ficaram por cá, ou que deixaram alguns genes, o que era aliás sabido, mas nunca lhes guardámos rancor.

P.: O que é que era sabido, exatamente?

R.: Que os pais das crianças, que eram portugueses, regressaram a Portugal, mas os filhos ficaram.

P.: Havia muitos casos assim?

R.: Sim, havia bastantes, mas como lhe disse, isso nunca nos incomodou muito. Vou dar um exemplo de uma jovem de Mametz: o seu primeiro filho era francês, o segundo era inglês e a terceira criança era portuguesa, enfim. Não eram reconhecidos por ninguém, mas era sabido de todos, e isso não nos incomodava.

É a guerra. A pílula não existia, e essas relações não eram mal vistas, e entretanto entrou nos costumes. Além disso, o Sr. da Silva tem uma lista das pessoas que pude encontrar e que têm muito orgulho na gota de sangue português que lhes corre nas veias.

Os portugueses agradavam bastante às raparigas, o que se explica facilmente porque me disseram que eles eram belos rapazes, também já não havia realmente muitos homens neste sítio durante a guerra, e depois é a sua lei: acontece sempre o mesmo, acho. Além disso nós não tínhamos a pílula nem contraceção e bem, é assim que ficámos com um pequeno núcleo português aqui na região.

P.: Então, os portugueses eram diferentes das outras tropas a esse nível?

R.: Sim, os ingleses não eram tão calorosos, isto sempre de acordo com o que ouvi dizer. Muito menos calorosos, muito mais orgulhosos, os ingleses consideravam-se uma raça um pouco superior, eram snobs com as pessoas.



Eles não deixaram memórias simpáticas, quando se falava dos ingleses na região, enquanto que os portugueses deixaram. Pode ir não importa a qualquer aldeia da região, irão dizer-lhe em todo lado que sempre ouvimos dizer que os portugueses eram bons rapazes.

P.: Havia também a noção de que eles vieram para combater ao lado dos aliados para defender a França, de facto, contra os alemães?

R.: Sim, tinha-se essa noção, com certeza, porque todos os homens em idade de combater nas aldeias de França tinham partido, então a população estava bastante sensibilizada à guerra, especialmente no norte. Mas é necessário considerar o contexto da altura, não havia televisão, não havia rádio e a imprensa nas aldeias era diminuta, a informação não era o que é agora. Mas também havia um sentimento de uma união entre Portugal e França, e mesmo com a Inglaterra.

P.: Os portugueses que vinham e ficavam aqui pelo café deixaram sinais de amizade à sua avó?

R.: Sim, eu posso mostrar-vos as fotografias que ela nos deixou e que os portugueses lhe deram quando partiram, e é certo que se eles não sentissem amizade pela minha avó, não lhe teriam deixado estas fotografias.

Há algumas em que eles deixaram a sua morada ou algumas palavras de simpatia na parte de trás.

P.: Dizia-me há um momento que a sua mãe e a sua avó também os ajudaram em questões de alimentação?

R.: Sim, a minha mãe e a minha avó eram muito boas cozinheiras e também existia uma pequena quinta, portanto havia leite, carne, e creio que os soldados que aqui passaram durante a guerra comeram bem.

Era também uma forma para as mulheres que ficaram na retaguarda contribuírem, era natural. Nessa altura era tudo bastante simples, sabe, em todas as casas da aldeia ao domingo fazia-se um caldo e depois comia-se o caldo com vários molhos durante a semana.

Sabe o que era o caldo? Era um grande pedaço de vaca ou de porco com legumes, de seguida faz-se a sopa, comia-se a carne e os legumes e depois ia-se aquecendo durante a semana e partilhava-se.

P.: E esse prato era um dos mais comuns que havia por aqui?

R.: Era certamente o prato mais fácil de fazer, o mais procurado também porque faz parte da tradição das pessoas do norte de França.

P.: Parece também, pelo menos de acordo com o que me contaram, que os soldados portugueses passavam fome frequentemente porque o seu reabastecimento não era suficiente...

R.: Sim, e assim sempre comiam algo diferente. Eu conheci a guerra de 1940, os soldados tinham cozinhas que os seguiam, era razoavelmente organizado, mas em 1914 não existia nada disso, comia-se o que se levava e um bocado do que se encontrava no local.

P.: Onde estavam os portugueses em relação a esta casa, estavam próximos, a frente estava próxima, era onde?


R.: Os soldados portugueses estavam acantonados num lugarejo da aldeia, a cerca de 1km.

P.: E era um grande acantonamento?

R.: Isso eu só sei seguindo o que vem nos documentos que consegui reunir. Havia um campo de treino e uma casa que servia de hospital, se assim pudermos chamar, era onde se tratavam os que se encontravam doentes.

P.: Ou aqueles que voltaram da frente feridos?


R.: Acho que não, porque penso que eram antes os soldados que ficavam doentes nesses locais; aqueles que vinham da frente eram levados de ambulância para mais longe, na retaguarda.

P.: E aqui estava-se perto da frente?

R.: A frente era a, digamos, uns quarenta quilómetros daqui, mesmo assim.

P.: Há muitas famílias com nomes portugueses cuja origem é de um soldado que tenha vindo durante a guerra de 14-18, um soldado português?

R.: Sim, posso referir os Barbara, os d’Almeida, os da Silva, Capela, tenho aqui uma lista que lhe posso mostrar.

P.: E a sua descendência hoje em dia é completamente francesa, não é?

R.: Absolutamente, mas também têm muito orgulho nas suas raízes meridionais.

(Entrevista traduzida por Mafalda Saraiva)