Como se propagou a revolta nas trincheiras portuguesas

por RTP

A deterioração do moral das tropas portuguesas manifesta-se através de vários sintomas eloquentes: a correspondência cada vez mais cáustica, as punições cada vez mais frequentes e até os gestos de confraternização com o inimigo. No final, ela irá traduzir-se em verdadeiras rebeliões armadas por parte dos soldados.

Muitas das cartas analisadas pelo historiador Penteado Neiva contêm críticas duras às autoridades militares portuguesas, à condução da guerra e à própria natureza da guerra. Como dificilmente poderiam ter passado pela censura com esse conteúdo, é de admitir que tenham chegado às famílias dos combatentes em mão, trazidas por portadores.

Para além da famosa confraternização entre soldados ingleses e alemães no Natal de 1914, há o registo de vários outros casos de interrupções localizadas e temporárias das hostilidades, em que os soldados simplesmente suspendiam a guerra e deixavam de disparar.

Ao longo de toda a guerra irá haver situações de cessar-fogo tácito, em que se permitia aos soldados inimigos irem buscar os seus mortos à terra de ninguém, ou irem buscar víveres, por exemplo. E nesta fase, isso aconteceu também com os portugueses.


Também nas fileiras do CEP, um dos sintomas da saturação com a guerra é a disposição a confraternizar com o inimigo. Em janeiro de 1918, há o registo de dois episódios de diálogo entre militares alemães e portugueses: um deles, numa troca de cigarros, a nível meramente individual, e sem qualquer desenvolvimento posterior; o outro, uns dias depois, envolvendo já vários militares alemães que novamente se aproximam da trincheira portuguesa para trocar cigarros.

Neste segundo caso, contudo, um cabo português decide aproveitar a oportunidade para aprisionar os alemães. Alguns conseguem fugir, mas dois são capturados.

Um episódio que contava Humberto Almeida é o de uma saída de tropas para irem buscar um cadáver português na "Terra de ninguém": os alemães, ao notarem qual era o objectivo da incursão, suspenderam o fogo e só o retomaram quando o cadáver acabou de ser retirado.

Entre os militares portugueses começara a preponderar a visão dos alemães, não como inimigos, mas como homens em situação semelhante à sua, que também ali estão por terem sido incorporados num contexto de serviço militar obrigatório.

Para os soldados vindos do campo, os motivos da guerra são incompreensíveis. Para muitos oficiais, imbuídos de espírito antiguerrista, "o inimigo está em Lisboa".

Um caso de punição significativo é o de um soldado que escoltava dois prisioneiros alemães e os deixou fugir - aparentemente por não os encarar como verdadeiros inimigos.

As revoltas dos soldados contra a guerra
Segundo a historiadora Isabel Pestana Marques, as revoltas de unidades do CEP multiplicam-se na transição de março para abril de 1918. Propagara-se entretanto nas trincheiras portuguesas o sentimento de abandono e começavam a multiplicar-se os episódios de insubordinação.

As insubordinações são tantas que se torna necessário criar um "depósito disciplinar" - uma espécie de campo de concentração e trabalhos forçados.

Por vezes, ocorrem mesmo revoltas, em que chega a ser atacado o alojamento dos oficiais ou em que os soldados se recusam a voltar para a frente.


Neste ambiente, não surpreende o caso de insubordinação da 2ª Brigada, que em vésperas do 9 de abril se recusa a ocupar a sua posição como brigada de reserva, alegando que já se encontra nas linhas há demasiado tempo.

A revolta de um batalhão daquela Brigada de tropas especialmente sacrificadas assumiu aspectos dramáticos, quando este tomou posições, preparando-se para resistir contra quem tentasse obrigá-lo a voltar às linhas. Luís Fraga considera atabalhoada e precipitada a resposta ordenada pelo general Tamagnini, que mandou cercar o batalhão e ameaçá-lo com fogo de artilharia, fazendo-o finalmente render-se.

A unidade foi dissolvida e os soldados foram integrados em unidades de sapadores. Os considerados responsáveis pela revolta foram depois detidos, repatriados e julgados em Portugal.


Augusto de Macedo (na foto) pode ter sido um dos revoltosos de 4 e 5 de abril. Como o historiador Penteado Neiva nos relata no seu livro sobre combatentes amarenses, Macedo era um soldado com alguns antecedentes disciplinares (punido em maio de 1917 por ter saído da formatura, novamente em junho por faltar à instrução).

No final de 1919 virá a sofrer uma condenação muito mais séria, por factos ocorridos durante a guerra: seis anos e meio de deportação, "por crime de sedição militar e revolta". Mais tarde será, contudo, amnistiado.

Um epílogo sangrento
Quando o general Garcia Rosado assumiu o comando do que restava o CEP em agosto de 1918, propôs-se restabelecer o papel combatente das tropas portuguesas, que entretanto se viam degradadas a meras unidades de engenharia. Ao terem conhecimento destes planos, várias unidades começaram a insubordinar-se, até uma delas chegar ao ponto de assaltar o depósito de armamento e de atacar as instalações dos oficiais.

O comando português ordenou então que a revolta fosse esmagada por unidades de metralhadoras, compostas exclusivamente de sargentos e oficiais. A repressão causou pelo menos 14 mortos.


Em setembro de 1917 tinha sido fuzilado um soldado, a instâncias do Governo, que obtiveram acolhimento por parte do tribunal de guerra do CEP.

Em todo o caso, a controvérsia que rodeou essa aplicação da pena capital terá contribuído para que ela não voltasse a ser aplicada na sequência das revoltas do CEP, em abril e em setembro de 1918.



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