Fosse como fosse, cerca de 20.000 homens, de todas as condições sociais, foram mobilizados e acabaram enviados para Tancos, para receberem treino militar.
Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal de Lisboa
O Polígono Militar de Tancos era ideal para o treino devido à sua localização, entre o Tejo e o Zêzere, ambos abundante fonte de água. A linha do comboio estava igualmente próxima, pormenor essencial ao transporte dos soldados e de todo o equipamento e apoio de que necessitavam.
O grande acampamento ficou conhecido como “cidade de Paulona”, nome derivado das estruturas frágeis construídas para abrigar os soldados. A Espanha comprou-se material para as tendas, aos EUA 300 camiões, à Argentina 4000 cavalos. A “velha aliada” Grã-Bretanha forneceu armas, rações de combate e depois o próprio transporte para França.
“...e a propósito de Tancos, não há dúvida de que nos podemos envaidecer pelo nosso exército. Tudo ali, no dizer dos visitantes, que têm sido milhares, é perfeitíssimo; em poucos dias preparou-se parte desse exército para a guerra moderna, pelo poder de adaptação que é uma das mais notáveis qualidades do português, matéria-prima eminentemente própria para todas as grandezas. E se acontece que uma ou outra vez a obra sai aleijão, a culpa não é da matéria, de plasticidade admirável: é dos moldadores.” (in nº541 de 03 julho 1916 da Revista Portuguesa)
No mesmo número pode ler-se uma extensa reportagem entusiasmada como a vida no Polígono.
Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal de Lisboa
A realidade era diferente da propaganda. O ‘Milagre’ foi um misto de organização/improvisação. O maior problema vinha dos próprios militares, pouco entusiasmados com a ideia da guerra europeia e falhos de disciplina e coesão. A própria instrução militar era muito difícil, uma vez que 48 por cento dos mobilizados eram analfabetos e apenas 0,6 por cento tinha instrução secundária.
De acordo com José Martinho Gaspar, professor e Mestre em História, e natural de Abrantes, “o aprontamento de uma força para França começou com a deslocação de uma Missão Militar Portuguesa à Grã-Bretanha e a França, em Outubro de 1914. Composta pelos capitães Iven Ferraz, Fernando Freiria e Eduardo Martins, esta delegação do governo português teve como finalidade estudar com o estado-maior inglês a organização de uma força expedicionária que tenha de ser enviada ao teatro de guerra.”
“No mês seguinte desse mesmo ano é criada a chamada Divisão Auxiliar Portuguesa, mas sem qualquer consequência prática. Aliás, foi preciso caírem governos e formalizar-se a declaração de guerra à Alemanha – em 9 de Março de 1916 – para que existisse algum empenho efetivo na preparação da Divisão Auxiliar. Ou seja, em 1915 decidiu-se pela concentração de uma Divisão de Instrução no polígono de Tancos mas a concretização, no terreno, só aconteceu em Maio e Julho do ano seguinte”, prossegue o mesmo autor.
“Foi um trabalho dificílimo devido essencialmente à resistência passiva e muitas vezes ativa de oficiais em vir a intervir na guerra da Europa. Para o estado em que o exército se encontrava o que se conseguiu realizar em Tancos neste período de três meses só podia ser classificado como um autêntico milagre. Na teoria, e por milagre, Portugal passou a ter a sua força expedicionária pronta para embarcar.”
Na verdade, após três meses de instrução, os homens regressaram aos campos e às cidades e só foram chamados para embarcar seis meses depois, em 1917. Perdeu-se assim o pouco “Espírito de Corpo” que se tinha conseguido criar no escasso tempo de treino.
Um artigo sobre a mobilização, publicado no site Momentos de História, explica como tudo se processou para realizar o ‘milagre’.
“A instrução preliminar dos soldados do CEP foi dada numa primeira fase de forma geograficamente dispersa: nos quartéis da 2ª Divisão (Viseu), da 5ª Divisão (Coimbra) e da 7ª Divisão (Tomar), e só depois foi efetuada a concentração em Tancos. Mesmo assim, as unidades não ficaram concentradas nas cidades dos quartéis divisionais, tendo sido dispersas por regimentos conforme as especialidades”.
“A instrução militar ministrada não estava desenhada de forma a criar a camaradagem e a disciplina necessárias para num contexto de guerra desgaste físico e psicológico. O plano de instrução apresentava longos períodos de descanso, em contraste com as poucas horas diárias de instrução. Ao domingo, alguns que viviam em Lisboa pediam licença para irem a casa, outros passeavam pelas redondezas do quartel” refere o mesmo texto.
Depois de uma primeira parte da instrução militar básica, iniciou-se outro período, mais de acordo com o que então se passava na Europa: a guerra de trincheiras. É nesta fase que surge este postal, ficcionado, sobre um descendente que recorda em Tancos de agora o que viveu ali um seu avô, há 100 anos e como eram as trincheiras que aprendeu ele a fazer.
“Era essencial ensinar os soldados portugueses a construir aquelas que seriam as suas fortalezas na guerra. A instrução consistia em cavar trincheiras segundo um traçado de uma frente de combate imaginária, de acordo com os regulamentos adotados na França e de acordo com a topografia do terreno. Cada companhia executava a sua trincheira e introduzia de seguida melhoramentos e comodidades. Nesta instrução os homens trabalhavam à vontade sob a direção de sapadores e entre as companhias existia uma competitividade para apresentar a melhor trincheira”, explica o artigo sobre a mobilização do Momentos de História.
“Mesmo introduzindo exercícios táticos virados para a guerra nas trincheiras, a instrução militar praticada em Tancos não se encontrava adaptada às necessidades e exigências, uma vez que não foi capaz de incutir disciplina suficiente nas praças e nos oficiais. Podemos considerar que a disciplina é o meio de obter um objetivo e não o objetivo em si, mas seja qual fosse o nível que se pretendesse dar, não foi conseguido. Falhou o processo de mentalização, falhou a construção do "Espírito de Corpo" e foi insuficiente o treino físico” conclui o artigo.