Quando a televisão leste-alemã filmava a revolução portuguesa

por António Louçã, Sofia Leite - RTP

Uma equipa de televisão da República Democrática Alemã (RDA), conhecida com o nome da realizadora, Sabine Katins, veio para Portugal logo a seguir ao 25 de Abril e, nos meses seguintes, acompanhou sem interrupções o processo revolucionário. Produziu diversos documentários sobre Portugal, durante a revolução e nos anos seguintes. Em 2023, a RTP entrevistou três sobreviventes da equipa e percorreu, com um deles, alguns dos locais da sua principal reportagem.

"Primavera portuguesa" é o mais longo dos documentários do Grupo Katins sobre Portugal, dividido em duas partes de aproximadamente uma hora cada. Ambas foram emitidas em horário nobre da televisão leste-alemã em 8 e 9 de abril de 1975. Entrevistado agora para o documentário da RTP, Matthias Steinle, especialista de História do cinema a leccionar na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, considera que, ao contrário de grande parte dos documentários do grupo no estrangeiro, este tinha a particularidade de não ser filmado na clandestinidade e de a equipa poder identificar-se como aquilo que era, pelo menos em parte.

Para além disso, a importância que o processo político português assumiu para a RDA desde o 25 de Abril tornava inevitável que um documentário de fôlego como este fosse muito mais explicativo do que a generalidade dos outros trabalhos daquela equipa. "Primavera portuguesa" foi assim, segundo Steinle, um produto sob vários aspectos atípico do trabalho do Grupo Katins.
As duas metades do documentário

O título da primeira parte, "Lourenço e o tenente", refere-se ao dirigente comunista Dias Lourenço. Este acompanha a equipa numa visita à prisão de Peniche, da qual foi inquilino nos tempos do fascismo e da qual protagonizou uma fuga audaciosa, atirando-se ao mar em pleno inverno, nadando para terra e salvando-se graças à ajuda de pescadores que encontrou. O título refere-se também ao então tenente Vítor Carvalho, que era depois do 25 de Abril o responsável do MFA pela prisão.
 
É uma primeira parte mais voltada para a resistência anti-fascista do que para a revolução propriamente dita, incluindo entrevistas com pides detidos em Peniche, memórias de antigos presos políticos e dos tempos da ditadura.

Sabine Katins ficara impressionada com a personalidade de Dias Lourenço, com a sua história de vida, a sua biografia prisional, a sua fuga. E rapidamente concluiu que compreender essa biografia seria decisivo para se compreender o país. Pediu-lhe que acompanhasse a equipa ao Forte de Peniche. Dias Lourenço não queria voltar mas, para dar uma contribuição ao trabalho da equipa de filmagem, lá acabou por ir ao Forte e reviver as memórias penosas do tempo de cativeiro.

O título da segunda parte, “Fernando e o patrão”, refere-se ao delegado sindical da Guérin, Fernando Pedroso, e ao patrão, Joaquim Machado, que anda a monte e por isso nunca chega a ser entrevistado para este documentário, mas de quem se podem entrever numerosas ligações ao mundo agrário (pelo latifúndio que também tem no Alentejo) e ao mundo da banca (pela fuga de capitais que tenta levar a cabo e que a colaboração entre os trabalhadores da Guérin e os sindicalistas bancários consegue impedir).

Um dos grupos de filmagem que a equipa tinha em Portugal foi em busca de Machado e os empregados disseram-lhe que ele não tinha fugido. Mas nesse momento era impossível encontrá-lo.

Uma teia de ligações da ITT e de outras multinacionais é também aflorada no filme, que dá conta de alguns processos de controlo operário e de ocupações de empresas e de terras.

Segundo o operador de câmara inglês John Green, também ele membro da equipa, os brutos das filmagens realizadas durante o PREC foram todos destruídos depois da unificação alemã, apenas tendo sobrevivido no DRA (Deutsche Rundfunk Archiv) algumas reportagens que tinham sido emitidas, todas elas sonorizadas em alemão (e-mail de John Green, 30.12.2022).
  Um Primeiro de Maio inesquecível
John Green  veio para Portugal logo a seguir ao 25 de Abril, segundo relatou à RTP. Dois dias depois, em 27 de abril, já cá estava, com um outro operador de câmara, o alemão ocidental Klaus Weigle. Ambos presenciaram o histórico 1º de maio de 1974, dele captaram imagens a cores quando a RTP ainda trabalhava a preto e branco, e dele guardaram sobretudo memórias indeléveis. Green recorda a revolução portuguesa como uma inspiração para Portugal e para o mundo, com um sentimento de libertação de milhões de pessoas que acabavam de sair de um regime opressivo.

A iniciativa de vir para Portugal partiu dos próprios Green e Weigle, esperando que ela fosse depois caucionada pela cadeia hierárquica da televisão leste-alemã. Os dois operadores de câmara entendiam que pedir autorização à burocracia da televisão podia fazer-lhes perder um tempo precioso.

A euforia da libertação, em reencontros com exilados e presos, ainda se fazia sentir quando Green e Weigle chegaram a Portugal. E permanecia fresca a memória dos apelos do MFA a que as pessoas ficassem em casa, e da desobediência generalizada com que foram acolhidos esses apelos. Em entrevista à RTP, John Green recordou a efervescência daqueles dias, em que havia sempre coisas importantes a acontecerem e pessoas a chamarem a equipa para ver, ouvir e filmar aquilo que não devia ser perdido.

Permaneceram durante duas semanas, forneceram à televisão da RDA as primeiras imagens sobre a revolução dos cravos e partiram. Green regressou depois com a operadora de som Gina Kalla e permaneceram cerca de seis meses. Posteriormente, voltaram ainda e viram-se reforçados com uma ou duas equipas mais.
 
Kalla recorda que a equipa tinha feito uma grande reportagem sobre a greve dos mineiros britânicos, em Kent, e que tinha acompanhado o processo desde o início. Agora, em Portugal, com o fim do fascismo, havia uma nova oportunidade de acompanhar desde o início um processo que não se sabia como iria terminar. Por outro lado, era um processo de sinal contrário ao do recente golpe militar no Chile e, nesse sentido, um poderoso antídoto para o efeito deprimente que o caso chileno exercia. Kalla desembarcara pela primeira vez em Portugal alguns dias depois do 1º de maio de 1974.

O organizador da rede de correspondentes internacionais da RDA, Franz Dötterl, e Sabine Katins também vieram quase imediatamente. Com 35 anos incompletos no 25 de abril, Katins compreendeu que tinha de partir sem demora para Portugal, porque a sua geração nunca tinha vivido algo assim. No 1º de maio de 1974, já estava em Lisboa. Nos meses seguintes do PREC permaneceu no país durante períodos mais ou menos longos, indo e vindo regularmente entre Portugal e a RDA.
Katins guardou uma memória vivaz do 1º de maio de 1974, do entusiasmo de milhares de pessoas logo a seguir à libertação do fascismo e explica com essa impressão a necessidade sentida de introduzir no seu filme a "Eroica", de Beethoven. Da música utilizada, recorda também a "Grândola, vila morena" e o "Avante, camarada". A "Grândola" tinha entrado no ouvido dos membros da equipa de montagem, que frequentemente a trauteavam durante o trabalho e portanto estava sempre a ser ouvida por quem passasse pelas salas de montagem nos estúdios de Berlim.

As cenas de massas, mostrando pessoas tomadas de grande entusiasmo, nem sempre foram bem recebidas pela direcção do SED. A certa altura, esta significou à equipa em Portugal que não devia enviar tanto "daquilo". Segundo Katins, a alguns, essas cenas "faziam-lhes medo", por pensarem que poderiam fazer escola.
Da sede da PIDE ao Forte de Peniche

Logo em 28 de abril, dia seguinte à sua chegada, Green e Weigle tinham-se dirigido à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, que ainda tinha os fuzileiros à porta. Mais tarde, talvez um ou dois meses depois, quando puderam filmar o interior, foram recebidos pelo tenente miliciano Miguel Lobo Antunes, que lhes mostrou o edifício. Os equipamentos visíveis no interior do edifício evocavam a devassa constante das escutas telefónicas, da vigilância sobre o povo e a tortura sobre os prisioneiros. Green ainda hoje recorda a facilidade com que se abriam as portas à equipa de televisão da RDA e se lhe permitia filmar em lugares que numa situação normal teriam um acesso fortemente condicionado.

Uns meses depois, a equipa constituída por John Green, Gina Kalla, Sabine Katins e o intérprete português Carlos Plácido deslocou-se a Peniche para realizar a reportagem com Dias Lourenço. Ao chegar, foi inesperadamente confrontada com a presença dos pides presos e, mais uma vez, não lhe foram levantadas quaisquer dificuldades para entrevistá-los. Filmou-os portanto e entrevistou-os, nos casos em que se dispuseram a isso.

As filmagens realizadas no Forte de Peniche são um exemplo de como a realidade da revolução se impunha a qualquer agenda previamente estabelecida. Entrevistada em Londres, em 2023, Gina Kalla recorda também que o propósito original da visita era contar a história de Dias Lourenço, dos seus anos de prisão, da sua aventurosa evasão. E recorda como era traumática para o dirigente comunista a memória desses tempos e como foi difícil levá-lo a Peniche.

Neste contexto surge o episódio em que Dias Lourenço, ao mostrar à equipa de televisão uma cela que supunha vazia, foi surpreendido por encontrá-la ocupada, precisamente pelo mesmo agente da PIDE que o tinha torturado. Afastou-se da cela e, quando lhe perguntaram porquê, explicou que não conseguia respirar o mesmo ar que aquele indivíduo.
Cinquenta anos depois, a convite da RTP, John Green voltou a Portugal para acompanhar as nossas filmagens nos locais onde tinha feito as suas durante a revolução. Um dos primeiros locais visitados foi o Forte de Peniche. Aí se reencontrou com Vítor Carvalho, comandante do Forte em 1974, que recorda ter acompanhado alguma visita de Dias Lourenço para ficar a saber como foi a famosa fuga daquele dirigente comunista. Essa só pode ter sido a do Grupo Katins.
Green recorda as condições de detenção dos pides, a mesa de bilhar, o jogo de cartas, o aparelho de televisão, a liberdade de movimentos e o ambiente descontraído em que se encontravam, como se estivessem num "clube de cavalheiros" e não numa prisão. Recorda também que os pides não mostravam qualquer arrependimento pelos seus crimes e, pelo contrário, uma certa revolta por estarem presos. 

Carvalho, hoje coronel, recorda que inicialmente estavam presos uns 300 pides. Depois, devido a diversas transferências, ficou cerca de uma centena. Estavam vários ministros e agentes de primeira classe da PIDE, incluindo o último director, Silva Pais, e um anterior director, Homero de Matos. Silva Pais foi a certa altura visitado pela filha, que vivia em Cuba e veio para Portugal durante a revolução.


A revolução em fábricas e quartéis

Katins participou em filmagens da equipa e aparece em pelo menos uma, no quartel da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, que na realidade teve lugar em dezembro de 1974. Green recorda que, na visita à EPC, a equipa foi recebida por oficiais que lhes contaram a marcha sobre Lisboa e as instruções que tinham para evitar derramamento de sangue. Recorda, finalmente, a disponibilidade que os oficiais da EPC mostraram para encenar novamente a saída dos blindados, como no 25 de Abril, para que a equipa pudesse filmar essa reconstituição histórica.
No início de 2024, a pedido da RTP, seis dos oficiais da EPC que participaram no 25 de Abril voltaram a reunir-se e foram entrevistados na antiga parada do quartel. Entre outras memórias que guardam daqueles tempos, está a reconstituição histórica que encenaram para a televisão da RDA poder dar ao seu público uma ideia da saída dos blindados a caminho de Lisboa - agora à luz do dia, e com uma frota reduzida, que obrigava alguns desses carros a passarem mais de uma vez diante das câmaras.

Na CUF do Barreiro, o Grupo Katins foi recebido por operários que recordavam um passado recente de opressão e que agora ostentavam o poder conquistado no local de trabalho. Um operário insistiu em que a equipa o acompanhasse a casa, para lhe mostrar um volume de "O capital", de Marx, que tinha guardado com orgulho durante muitos anos. 

O contraste com essa memória era particularmente claro nas paredes da fábrica, com os seus cartazes do PCP e da CGTP, e na empilhadora que ostentava uma inscrição dizendo "Lenine". 

Um outro episódio do documentário leste-alemão diz respeito à ponte sobre o Tejo. Esta tinha mantido durante mais de cinco meses o velho nome, "Salazar", e subitamente, com o fracasso da intentona spinolista de 28 de setembro, surgiu a ideia de substituí-lo, para as comemorações do primeiro 5 de outubro realizadas em liberdade. Organizou-se a substituição e, quando uma equipa de operários da Sorefame estava em vias executá-la, deu-se o acaso de a equipa de Katins passar de carro pelo local e notar os trabalhos de substituição.

Segundo Green relatou à RTP, desceram do carro e pediram aos operários que pusessem de pé as letras do velho nome e as derrubassem - algo que eles fizeram de muito bom grado. Green explica a demora em substituir o nome pelo processo convulsivo da revolução, que entretanto criou outras prioridades. 
Uma experiência marcante
Os tempos da revolução portuguesa deixaram memórias inesquecíveis em quantos puderam vivê-los. O então jovem diplomata Gert Peuckert disse à RTP: “O meu encontro com a revolução portuguesa mudou toda a minha vida”. E também os três membros sobrevivos do grupo que a RTP pôde contactar – Katins, Green e Kalla – recordam esses tempos como os mais marcantes das suas carreiras.

Em entrevista publicada no diário Neues Deutschland em 1-2 de maio de 1976, Sabine Katins começa por dizer que em anteriores reportagens sempre estivera em países em que "a luta da classe operária não estava tão desenvolvida". O caso de Portugal contrastou, para ela, com essas experiências anteriores: "Conhecer este povo, no momento em que o fascismo, ao fim de quase 50 anos, era derrubado, constituiu um dos momentos mais inesquecíveis da minha vida".
 
Em 1979, foi traduzido para alemão um livro de Manuel Tiago e o Neues Deutschland desvendou o segredo sobre a identidade do autor - na realidade, Álvaro Cunhal. Foi também esse o ano em que nasceu o filho de Sabine Katins, que ficou com um nome português, Carlos.

Sabine Katins entrevistou várias vezes Álvaro Cunhal. Considera-o uma "personagem luminosa" e também, para os portugueses de então, uma espécie de herói. Um dos documentários que fez foi sobre os desenhos de Cunhal. Sabine Katins apreciava esses desenhos pela sua força e expressividade. Vítor Carvalho e John Green evocam também a actividade de Cunhal como artista, que foi especialmente produtiva nos tempos da prisão. 

Sabine Katins e Franz Dötterl conservaram depois uma ligação ao país muito para lá da revolução, realizando para a televisão leste-alemã, entre 1975 e 1978, segundo o estudo de Prase (p. 210), um total de seis filmes sobre Portugal e pelo menos dois outros filmes em colaboração com o PCP.

Para Sabine Katins, a experiência vivida em Portugal está "no primeiro lugar" entre as da sua vida e a intervenção no documentário da RTP foi uma ocasião para revisitar essa experiência marcante. A realizadora considera que o trabalho em Portugal foi "o mais bonito da minha vida profissional".

Matthias Steinle considera que essa especial ligação a Portugal na biografia de Sabine Katins é a verdadeira explicação para o facto de ela só ter rompido o seu silêncio de várias décadas para um documentário português, neste caso da RTP.

Steinle sublinha que Katins não escreveu nenhum livro de memórias, não deu entrevistas, e que ela ficou de fora, mesmo no Festival de Berlim, dedicado às mulheres da DEFA, em que foram homenageadas várias cineastas leste-alemãs, e que teve de vir a RTP para ela se dispor a falar.
Também John Green se tem referido ao seu tempo de filmagens em Portugal como "um dos períodos mais memoráveis da minha carreira de filmagens, de que guardo memórias preciosas" (e-mail citado). Em entrevista ao diário alemão junge Welt, ele afirmava que "a revolução portuguesa de 1974 foi a experiência mais importante que vivi" (12.02.2011).

Green admite que a sua presença frequente em comícios e manifestações lhe pode ter distorcido a perspectiva, e dado uma ideia de um país muito virado para um rumo socialista. Considera por isso que é difícil dizer se havia mais socialismo na revolução portuguesa, com toda a sua volatilidade, ou no regime declaradamente socialista da RDA.
Alfabetização, eletrificação, Reforma Agrária
Kalla, por seu lado, considera a revolução portuguesa como "um dos períodos mais comoventes e inspiradores da minha vida" e acrescenta: "Ainda hoje conservo numa caixinha um cravo vermelho seco de maio de 1974, que em breve terá 50 anos" (e-mail de 18 de janeiro de 2023).

Do processo revolucionário, reteve a memória de pessoas adultas a tratarem de aprender as primeiras letras, de forma voluntariosa e empenhada, sem mostrarem embaraço, porque sabiam que não era culpa sua terem sido analfabetas até esse momento. No mesmo sentido, John Green ficou impressionado com a clareza política que havia na cabeça de pessoas muito pobres e por vezes analfabetas.


Kalla recorda também a atitude das mulheres, vivendo em aldeias do interior sem água nem luz, mas muito despertas para os novos tempos, muito curiosas por saberem como uma mulher podia ser operadora de som e ter, apesar disso, uma vida familiar.

Um caso que lhe ficou gravado na memória foi o de uma mulher que não tinha eletricidade em casa e recebeu do marido um eletrodoméstico, trazido da Alemanha, que não podia usar. Mesmo assim, encarou o desperdício com optimismo e bonomia, esperando que algum dia viria a ter electricidade.
Um incidente ocorrido no momento de entrevistar Álvaro Cunhal situa-se na encruzilhada entre o património ideológico do PCP e as preocupações actuais, de levar a água e a electricidade aos lugares mais recônditos do interior. Tendo faltado subitamente a corrente, a sala ficou às escuras e, no meio da escuridão, ouviu-se Cunhal, com humor imperturbável, a citar Lenine: "O comunismo é o poder soviético mais a eletrificação do país".

Inspirada pela experiência das grandes empresas agrícolas socialistas existentes na RDA, Kalla não foi surpreendida com a reorganização dos latifúndios portugueses expropriados sob a forma de cooperativas e UCPs. E vê na Reforma Agrária, que ainda sobreviveu durante vários anos ao fim da revolução, um sinal de que as pessoas tinham a expectativa de construir uma economia socialista.
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