Os temas que marcaram a passagem de Jorge Sampaio por Belém

Foi o quinto Presidente da República do pós-25 de Abril, dissolveu a Assembleia da República, conviveu com as crises políticas nacionais intensas e foi protagonista de peso em vários temas internacionais. Dos primeiros anos de tranquilidade ao caos político em 2004, assim foram os dez anos de Sampaio em Belém.

“Serei o Presidente de todos os portugueses, de todos sem exceção. Mas estarei naturalmente atento aos excluídos do sistema ou das políticas, remetidos tantas vezes a um estatuto de dispensáveis. Não há portugueses dispensáveis. Essa é uma ideia intolerável.”

Discurso da tomada de posse, 9 de março de 1996



Esta história de dez anos poderia ser contada em três tempos: a acalmia do primeiro mandato, a agitação depois de 2001 e o caos político de 2004. Chefe de Estado em momentos marcantes da democracia portuguesa, Jorge Sampaio coexistiu com cinco diferentes Governos, da direita à esquerda e conviveu com quatro diferentes primeiros-ministros, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates.

De carácter reservado e contido, procurou não se envolver demasiado nos temas quentes que visavam a governação. Ainda assim, Jorge Sampaio não deixaria de ser polémico em muitas das suas decisões quando assim entendeu ser necessário, à margem de pressões partidárias e na solidão das decisões individuais.

Para a história ficam alguns dos momentos que mais marcaram os dois mandatos, entre 1996 e 2006. A questão de Timor, a transferência de Macau, as crises políticas de 2001 e de 2004 foram alguns dos temas que mais agitaram o país entre 1996 e 2006, numa magistratura de influência e de intervenção com grande cunho pessoal, mas sempre com a distância necessária que o cargo evoca.

Se a “era” Ramalho Eanes fica marcada pela normalização democrática e a de Mário Soares pela atitude por vezes beligerante durante as maiorias absolutas de Cavaco Silva, a liderança de Jorge Sampaio é a imagem da discrição e tranquilidade, exceção feita à “bomba atómica” contra o Governo de Santana Lopes, um momento de tensão e polémica incontornáveis. Assim foram os dez anos de Sampaio em Belém.
Guterres em São Bento e o “pântano”

Jorge Sampaio chegara a Belém em março de 1996, poucos meses depois da tomada de posse de António Guterres como primeiro-ministro. O novo chefe de Governo, que nem há cinco anos tinha destronado o então autarca de Lisboa da liderança do Partido Socialista depois da hecatombe nas legislativas de 1991 frente a Cavaco Silva, via o seu antecessor como secretário-geral do PS a alcançar o cargo de chefe de Estado.

Antigos aliados e adversários dentro do Partido Socialista, ambos chegavam às mais altas funções a nível nacional e cumpriam em 1996 o desejo que Francisco Sá Carneiro tinha delineado para o seu próprio partido: Um governo, uma maioria, um presidente.

Se os primeiros anos foram de convergência institucional e acalmia, que inclusive valeram a Sampaio acusações de obediência e submissão ao executivo, o segundo mandato, iniciado em março de 2001, revelaria um Presidente bem mais interventivo e exigente, mesmo ainda durante o último governo minoritário do PS, alcançado em 1999.

Nem por isso a relação entre os dois foi fácil ou amigável durante o período de convivência. A relação entre os dois socialistas é marcada pela cordialidade mas também pela distância, salvo alguns momentos de unidade nacional, como Timor é exemplo primordial.

O aviso fora dado logo em 1996, na noite da vitória, em plena apoteose perante os apoiantes socialistas, Sampaio não vira as costas àqueles que tinham apoiado o ex-primeiro-ministro, Cavaco Silva.

“As escolhas estão feitas. Não há maiorias presidenciais. Entre os eleitores não há derrotados. Serei o Presidente de todos os portugueses, todos são necessários para garantir o futuro de Portugal, todos podem contar comigo”, proclamava então o Presidente da República eleito.

Assumindo desde logo o papel de estadista e distanciando-se do PS, Sampaio proferia: “O Presidente da República está acima dos partidos, este é pois o momento em que os nossos destinos se distinguem. Não esquecerei nunca tudo o que ao longo dos anos vivemos juntos”.



No discurso da tomada de posse, a 9 de março de 2006, o Presidente empossado voltava a insistir na independência perante as forças partidárias no exato momento em que entrasse pelas portas do Palácio de Belém. “Quando me candidatei às altas funções de que acabo de ser empossado afirmei de forma inequívoca: não há maiorias presidenciais. Serei o Presidente de todos os portugueses. De todos, sem exceção”.

“Eu fiquei com o cartão do meu partido, mas levo o papel de árbitro a sério”, avisava o Presidente no balanço dos primeiros seis meses de mandato, em entrevista à RTP. Sampaio destacava a necessidade de cooperação e estabilidade institucional, recusando o papel de um Presidente enquanto “oposição” política ao executivo. “Só se veta aquilo que tem de ser vetado”, dizia então o chefe de Estado em entrevista a José Eduardo Moniz e Maria Elisa Domingues, onde os dois jornalistas recordam as críticas que lhe são recorrentemente apontadas. “O Presidente ainda não se viu”, lê-se nas colunas de opinião.

Avançamos para 16 de dezembro de 2001. As eleições autárquicas provocam um abalo inesperado no governo e na estabilidade política que marcara o primeiro mandato de Jorge Sampaio como Presidente da República. O então primeiro-ministro socialista, António Guterres, apresenta a demissão do cargo, na sequência de um resultado devastador para o seu partido.

"O PSD é, inquestionavelmente, o partido vencedor destas eleições autárquicas". A frase é de António Guterres, a poucos dias da entrada em circulação da moeda única em Portugal. Num período de relativa acalmia política, pouco ou nada fazia prever o terramoto que o final do ano de 2001 traria consigo.

Depois do resultado catastrófico que dita a perda de 14 câmaras para o PSD, incluindo Lisboa Porto, Coimbra e Sintra, o futuro secretário-geral das Nações Unidas introduzia no léxico político português a desde então afamada expressão do “pântano político” e apresenta o pedido de demissão formal, imediatamente aceite pelo Presidente.

É um autêntico presságio das mudanças e dificuldades que viriam a marcar o segundo mandato de Jorge Sampaio em Belém, bastante mais agitado que o primeiro. Da magistratura de “influência”, geralmente associada ao regime semipresidencialista que vigora em Portugal, o Presidente da República passa a exercer uma magistratura mais ativa com as mudanças políticas que ocorrem na vida política portuguesa até 2006.

Este é primeiro grande teste de fogo no que à política nacional diz respeito. A 28 de dezembro. Jorge Sampaio anunciava: “No uso dos poderes que a Constituição me confere, decidi dissolver a Assembleia da República”, depois de ter consultado várias personalidades e o Conselho de Estado

Na convicção do Presidente, a Assembleia da República tornara-se “insuscetível de gerar um novo Governo”, independentemente da base política parlamentar. “A concretização do sufrágio universal trará às instituições uma legitimidade renovada e energia ao nosso sistema político”, anunciava Sampaio.

O chefe de Estado convoca eleições legislativas antecipadas para 17 de março de 2002, das quais sairiam vencedores os sociais-democratas, liderados por Durão Barroso.

O Presidente saia dos bastidores com uma decisão considerada pouco polémica ou questionável. Afinal, tratava-se apenas de gerir a demissão de um primeiro-ministro by the book dos poderes presidenciais em Portugal.

Não mais abandonaria o palco principal da política portuguesa. Depois de 2001, outros momentos de crise política colocariam à prova o papel institucional de um Presidente que se quis independente e distante de todas as influências.

No livro “Um Olhar sobre Portugal”, publicado em 1995, Jorge Sampaio definira como objetivo “ser capaz de ser Presidente com qualquer governo e em qualquer cenário, com isenção e com independência”, sem “ressentimentos em relação a este ou àquele partido, a este ou aquele líder”.
Queda da Ponte Entre-os-Rios

O ano de 2001 não tinha sido propriamente calmo até às eleições autárquicas de dezembro. Reeleito à primeira volta com 55,5 por cento dos votos, a campanha de Sampaio ficou marcada pela polémica do urânio empobrecido no Kosovo aquando da presença de militares portugueses ao serviço em missão pela NATO entre 1999 e 2000, situação que provocou a morte do soldado português Hugo Paulino.

Revelações feitas na televisão pelo então ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas, poucos dias antes da eleição – em que admitiu que o Governo tinha conhecimento que a NATO bombardeara a zona com projéteis com urânio empobrecido – obrigam Jorge Sampaio a convocar o Conselho Superior de Defesa Nacional. Uma decisão que levou os adversários, incluindo Ferreira do Amaral, apoiado pelo PSD, a acusarem o então Presidente, que se recandidatava, de estar a procurar ganhar protagonismo com o tema para fazer campanha.

Presidente reconduzido ao cargo, Jorge Sampaio viria a tomar posse a 9 de março de 2001, cinco dias após a queda da ponte Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva. Uma tragédia onde morreram 59 pessoas que atravessavam a ponte que ligava as duas margens do rio Douro.

No discurso de tomada de posse, a sombra dos acontecimentos calamitosos paira sobre a cerimónia e o Presidente reempossado não passa ao lado do momento de luto e comoção nacional. Avisa o Governo de Guterres que vai ficará atento à atuação de um Governo fragilizado pelo empate técnico de deputados extraído das eleições legislativas no final de 1999.

“É na certeza de interpretar o sentimento de toda a comunidade que exprimo o meu profundo pesar pela tragédia de Castelo de Paiva, renovando as minhas sentidas condolências às famílias dos que morreram. Devemos à memória dos mortos e ao sofrimento dos vivos o apuramento rigoroso da verdade daquilo que aconteceu”, refere logo no início do discurso.



Fugindo a um discurso de circunstância, Sampaio aborda os grandes desafios que Portugal enfrenta, ao nível económico, social e à reforma do sistema político. Mas volta a falar implicitamente de Entre-os-Rios.

“Um terceiro desafio que temos de ter presente é o que resulta da disseminação de fatores de insegurança e risco na nossa sociedade. Nas sociedades modernas, a segurança tem de ser encarada como uma dimensão da cidadania”, referia o Presidente.



“Necessitamos – estes dias tão dolorosamente o demonstram – de maior igualdade regional na oferta e na utilização dos serviços e dos recursos”, salienta Sampaio, que não deixa de lembrar a importância de restabelecer a confiança entre os cidadãos e o Estado.

No livro “Compaixão, Expiação e Indiferença do Estado – Notas sobre a Tragédia de Entre-os-Rios”, de Pedro Araújo, o investigador considera que o acontecimento “nunca está longe das palavras de Jorge Sampaio nesta sessão solene”. Este é um dos pontos críticos na relação com o Governo, que virá a cair alguns meses depois após o resultado desastroso do PS nas eleições autárquicas.


Acusado muitas vezes de ter um discurso “indecifrável”, “confuso” e até “prolixo”, Jorge Sampaio recusa as críticas dos comentadores políticos e responde com as vitórias que obteve ao longo da vida política. “Alguém, como eu, que em cinco eleições personalizadas venceu quatro, tem que ser entendido pelo povo”, disse então o Presidente numa entrevista ao Expresso, meses após ter saído de Belém.

Em tom de balanço, no X volume da coleção “Os Portugueses”, admite que procurou “ser sempre um Presidente atento e próximo das pessoas, dos seus sofrimentos, problemas e expetativas”,

E porque dificilmente uma figura política agrada a todos, Sampaio foi também apontado como um homem de lágrima fácil, ou mesmo “de chorar por tudo e por nada”.

“Comovo-me com facilidade. Não sou imune a coisas como o abandono, o esquecimento, o sofrimento, a dor, a solidão. Tinha um truque, que era dar uma unhada na própria mão, para ver se me aguentava”, reconhece na mesma entrevista ao semanário Expresso. As semanas que se seguiram à queda da ponte não terão sido exceção.
Timor, o sonho que se tornou real
Timor foi o sonho que se tornou realidade. Ainda antes de chegar a Belém, em plena campanha eleitoral, Sampaio assume a aspiração utópica, ousada, tendo em conta o momento internacional e o estado calamitoso daquela ex-colónia portuguesa. Em entrevista ao Expresso, confessa:

“Gostaria, sinceramente, de ser o primeiro Presidente português eleito a ir a Timor-Leste, depois de concluído, e em paz, um processo de autodeterminação”.

Em 1996, quando Jorge Sampaio chega a Belém, a independência de Timor é um desejo quase utópico. O Massacre de Santa Cruz, em 1991, cativou alguma atenção momentânea à comunidade internacional, mas não manteve a situação da província indonésia por tempo suficiente nas manchetes dos jornais.

Só em Portugal é que a situação é lembrada e relembrada, muito por intervenção do Presidente da República e do primeiro-ministro de António Guterres, que não desistem e aproveitam todas as oportunidades para falar do assunto nas Nações Unidas e junto dos principais aliados, nomeadamente os Estados Unidos.

A concertação dos esforços entre o Governo e a República arranca em força sobretudo no ano de 1996. José Ramos-Horta e o bispo D. Carlos Ximenes Belo são laureados com o Prémio Nobel da Paz, pelo papel fulcral desempenhado na resistência timorense. Na entrega do prémio, Portugal faz-se representar ao mais alto nível pelo chefe de Estado, que nunca escondeu o empenhamento nesta causa.

Uma vez em Oslo, é o próprio Jorge Sampaio a forçar a entrada num debate em direto na CNN com os dois Nobel da Paz, onde também participou o embaixador indonésio na ONU. Na discussão ressalta o vasto conhecimento da situação em Timor, o gosto pela política internacional e pela diplomacia e o inglês experiente do Presidente da República, que lhe vale aplausos generalizados.



Numa altura em que Xanana Gusmão continua preso em Jacarta, a diplomacia chega aos mais altos parâmetros da política internacional, totalmente mobilizada: Jorge Sampaio em contacto direto com Xanana, mas também com Nelson Mandela, quando este realiza uma visita oficial à Indonésia e chama à atenção para a causa timorense.

Sampaio aproveita também as boas relações com Jacques Chirac, o Presidente francês. António Guterres pressiona a Administração do presidente Bill Clinton e o primeiro-ministro britânico Tony Blair a tomar uma posição a favor dos timorenses. Lisboa sabe que a atenção dos Estados Unidos só pode ajudar à causa de Timor. Noutra frente, o ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama estabelece a ponte de contato com as Nações Unidas e o secretário-geral Kofi Annan. É um esforço institucional e de polícia externa, de completa união em torno de uma causa.

Só com a transição do poder em Timor, com a resignação de Suharto em 1998 – o líder indonésio que estava há mais de 30 anos no poder - se abre uma janela de oportunidade única.

O primeiro sinal de abertura, já com Jusuf Habibie, surge com a proposta de conceder um estatuto de autonomia ao território ocupado desde 1975. O novo Presidente quer abrir a Indonésia à democracia e sabe que não pode continuar a ignorar a situação. Com uma nova insistência diplomática dos portugueses e timorenses, convencidos de que só a independência plena serviria, pedem o referendo.

As tropas indonésias discordam deste posicionamento e iniciam uma nova onda de massacres, o mais mediático em Liquiçá, que só precipita ainda mais os esforços para um voto universal, no fundo, um referendo à autodeterminação que há tanto tempo é desejado.

A consulta popular acaba por realizar-se a 30 de agosto de 1999, com 98,60 dos timorenses a acorrerem às urnas. A vitória da independência é clara e inegável, com 78,5 dos eleitores a optarem pela independência. Mas as milícias indonésias não reconhecem este resultado e lançam uma derradeira onda de violência que obriga à leva à retirada de dezenas de jornalistas e observadores internacionais.

No momento mais agudo, monta-se no Palácio de Belém um “gabinete de crise”, com os conselheiros e o próprio Presidente a pernoitarem por várias noites na residência oficial do Presidente da República.

Os esforços são excecionais para acompanhar a catadupa de tragédias e acontecimentos do outro lado do mundo, num fuso horário com nove horas de diferença. Na biografia da autoria de José Pedro Castanheira, publicada em 2017, Sampaio recorda o episódio em que convoca uma reunião com o embaixador dos Estados Unidos, Gerald McGowan, às 5h45 da manhã. O Presidente da República desloca-se numa viatura alugada pelo filho, André Sampaio. Quando chega a Belém, o guarda nem percebe quem está ao volante. O filho, por sua vez, estranhando a ausência do carro, dá conta de um alegado roubo.

A situação é cada vez mais calamitosa e justifica todos os esforços e improvisos perante Washington. “Fiz-lhe um apelo, disse-lhe que a única esperança era os EUA forçarem uma reunião do Conselho de Segurança e convencerem os seus membros, em particular os membros permanentes, da urgência absoluta de enviar para Timor uma força de manutenção”, recordava o ex-Presidente.

A vontade e a iniciativa dos Estados Unidos é essencial para que possa ser convocada uma reunião urgente do Conselho de Segurança das Nações Unidas para discutir Timor, o que acaba por acontecer a 15 de setembro. É criada a INTERFET (Força Internacional para Timor Leste), liderada pela Austrália, até à chegada das forças de paz. Ainda antes da independência, Jorge Sampaio torna-se no primeiro chefe de Estado português a visitar o país em fevereiro de 2000, local onde recebe a notícia da morte da mãe. Regressa a Timor em 2002, ano em que é consumada a independência e em que Xanana Gusmão, líder da FALINTIL, é eleito como primeiro Presidente do novo país.



Em 2006, a menos de um mês de terminar o segundo e o último mandato, o Presidente da República volta para a última visita oficial ao estrangeiro enquanto chefe de Estado. Para conselheiros e analistas políticos, Timor foi a pasta mais importante do primeiro mandato e a mais importante, pelo menos a nível internacional, nos dez anos de Presidência.
Iraque e uma cimeira nos Açores
Outros dossiers internacionais mereceram a atenção de Jorge Sampaio, desde logo pela sua experiência e grande interesse pela diplomacia. A primeira “prova de fogo” é a transferência de poderes para Macau, um assunto que depende diretamente do Presidente da República segundo os termos da própria Constituição.

A passagem de testemunho para Pequim acontece a 19 de dezembro de 1999 e é também por isso considerado assunto de cariz central para Sampaio desde a tomada de posse. Para efetuar a transição encontra-se com Jiang Zemin e Hu Jintao, dos Presidentes chineses. Visita Macau duas vezes e marca presença na sessão solene, sendo a sua intervenção o primeiro discurso da cerimónia.

“Para Portugal não se trata, apenas, de realizar, de forma solene, a transferência para a República Popular da China do exercício da soberania sobre Macau, mas de com essa transferência reafirmar, perante a comunidade internacional, aqui tão largamente representada, o seu empenho solidário no futuro do território. (…) E se é importante para as relações entre Portugal e a China que Macau tenha sido um lugar privilegiado de encontro entra as suas culturas e as suas gentes, o acordo a que os dois Estados chegaram sobre o estatuto do território representa uma forma sensata e pacífica de prosseguirem uma nova etapa no seu relacionamento velho de séculos, mudando o que era exigido pelas novas realidades dos dois países e mantendo o que faz de Macau uma realidade singular”, sublinha o Presidente. É o fim oficial de um império de cinco séculos.


No entanto, uma outra questão viria a marcar a atuação internacional do Presidente da República, já no segundo mandato, sobretudo pelo ambiente de crispação que se gerou entre Belém e S. Bento. O mundo assistira, a 11 de setembro de 2001, ao brutal atentado no coração de Nova Iorque, a que a comunidade internacional reage com condenação unânime e veemente.

As divisões entre Washington e os principais aliados só começam depois, quando os Estados Unidos encetam o desenho de um plano de intervenção no Iraque contra o regime de Saddam Hussein, potencial detentor de armas de destruição massiva. Se o primeiro-ministro social-democrata Durão Barroso promete apoio incondicional a George W. Bush, flanqueado por Tony Blair e José Maria Aznar, o Presidente da República mostra-se avesso a intervenções militares sem o aval das Nações Unidas, tal como Jacques Chirac e Gerhard Schöder. Mas Sampaio sabe que, à exceção de Macau, a condução da política externa é competência única do Governo português.



Em “Portugal e a Guerra do Iraque”, o investigador Bernardo Pires de Lima assinala que o Presidente da República assumiu “um papel que contrabalançava a postura do Governo” ao opor-se a uma “guerra defensiva”.

“No quadro da orientação da política externa portuguesa consagrada constitucionalmente, cabia ao Governo conduzi-la, embora o Presidente da República fosse um ator relevante através do seu estatuto de comandante supremo das Forças Armadas”, frisa o investigador. É este estatuto que lhe permite traçar algumas linhas vermelhas e pedir “serviços mínimos”, no caso de uma futura intervenção.

Não obstante a opinião do chefe de Estado, a posição e proximidade do primeiro-ministro a Washington fica ainda mais clara após a “Carta dos Oito”, publicada no jornal The Wall Street Journal a 30 de janeiro de 2003, onde Barroso e mais sete líderes europeus dão como certa a presença de armas de destruição maciça no Iraque, representando “uma ameaça clara para a segurança mundial”.

Em entrevista ao Diário Económico, no final de fevereiro, Jorge Sampaio reconhece que existe uma “posição institucional que comporta a diferença” daquela que fora assumida pelo primeiro-ministro, mas admite: a margem para evitar a guerra é “muito pequena”. O Público titula “Sampaio insiste em nova resolução da ONU sobre Iraque”.

O auge do incómodo institucional acontece durante a Cimeira na base das Lajes, que reúne Bush, Blair e Aznar, com Barroso como anfitrião, conhecida como a derradeira tentativa para evitar a guerra. A cimeira arranca a 16 de março, mas o Presidente da República só é avisado com dois dias de antecedência, a 14 de março, com todos os pormenores e factos mais que consumados.

Com dia e hora marcada, a guerra acaba por começar a 20 de março de 2003, com os primeiros bombardeamentos sobre Bagdade.

Na imprensa, o clima de divergência é mais do que claro. “Bush, és fixe. E o Sampaio que se lixe”, titula a revista Visão na edição publicada a 13 de março, numa alusão ao slogan de campanha de Mário Soares, em 1986.



Mais de 13 anos depois, o assunto voltava a ocupar as páginas dos jornais. Em entrevista ao Expresso, Durão Barroso garante que Jorge Sampaio esteve “expressamente” de acordo com a cimeira, algo que o antigo chefe de Estado viria a desmentir, sublinhando que as informações lhe foram passadas tardiamente.

“Quero recordar aqui o telefonema que, pelas 7h da manhã de 14 de Março, recebi do primeiro-ministro, solicitando-me uma reunião de urgência. Para minha estupefacção, tratava-se de me informar que havia sido consultado sobre a realização de uma cimeira nos Açores, essa mesma que, nesse mesmo dia, a Casa Branca viria a anunciar para 16 de Março, daí a pouco mais de 48 horas. Não é preciso ser-se perito em relações internacionais para se perceber que eventos deste tipo não se organizam num abrir e fechar de olhos; e também não é necessário ser-se constitucionalista, para se perceber que não cabe ao Presidente autorizar ou deixar de autorizar actos de política externa”, refere o ex-Presidente, num artigo de opinião no jornal Público.

Polémicas à parte, Sampaio explicaria mais tarde no volume X de Os Portugueses que não pretendia, em circunstância alguma, ser “uma força de bloqueio” ou “substituir-se ao Governo”.

Considera, ainda assim, que ajudou “a dar maior clareza à ação do Presidente como representante do país e protagonista ativo na sua visibilidade internacional”, aponta.

Presidente que coabitou com dois primeiros-ministros socialistas e dois da família social-democrata, Jorge Sampaio enfrentou dificuldades com António Guterres, traços da luta fratricida que haviam travado dentro do PS no início da década de 90, mas também com Durão Barroso que, apesar de uma relação mais equidistante e institucional, valeu ao Presidente alguns dos momentos mais interventivos contra o executivo.

Momento enigmático foi o discurso de 25 de abril, precisamente em 2003, em que as dificuldades económicas e orçamentais exigiam esforços por parte do governo social-democrata, coligado com o CDS-PP.

No papel de baluarte da justiça e da paz social, Jorge Sampaio deixa avisos sonantes que se continuam a repercutir no espaço político português.

Sem deixar de apelar à “transparência” no processo de reconstrução no Iraque, sob a égide das Nações Unidas, passado pouco mais de um mês da célebre cimeira, o Presidente deixou críticas à orientação económica de Barroso e respetivo Governo.

“O saldo orçamental é um instrumento e uma responsabilidade fundamental, mas não é o objetivo final da política económica. (…) Há mais vida para além do Orçamento”, uma frase que viria a ficar celebrizada e a ser adaptada ao discurso político – sobre o défice - durante os anos da Troika.
De Durão Barroso a Santana Lopes

A história é mais que conhecida. Foi um caso que abalou o país, provocou polémicas que se estenderam muito para além daqueles seis meses conturbados. É talvez o ponto de maior intervenção de Sampaio na vida política nos dez anos que esteve em Belém. Terminavam os dias do Euro 2004 e Portugal perdia a competição para a Grécia. Perdeu também, nesses meses de verão, o primeiro-ministro, que voou para Bruxelas para ocupar o cargo de presidente da Comissão Europeia.

Barroso deixa o cargo de chefe de Governo designado a Pedro Santana Lopes, mas a decisão de dar posse ao novo primeiro-ministro cabe ao Presidente da República. O nome não é consensual para Jorge Sampaio, e por isso hesita, ouve conselheiros durante dias e sessões a fio e acaba por fugir ao cenário de eleições antecipadas. Opta por entregar novamente a chefia do Governo ao partido que fora mais votado nas últimas legislativas, para choque e desilusão da sua família política.

Em retrospetiva, aponta o verão de 2004 como um dos momentos mais difíceis da presidência. A saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia. “A mim tudo me surpreendeu naqueles meses de junho e julho de 2004”, conta, em entrevista ao Expresso.

Ao privilegiar o substituto deixado por Durão, o inquilino do Palácio de Belém manteve-se impávido e não deixou que a afinidade e proximidade pessoal ao PS perturbassem a decisão, anunciada a 9 de julho. Ferro Rodrigues, amigo e camarada de vários anos, causa um novo terramoto político ao demitir-se, nesse mesmo dia, de secretário-geral do partido, assumindo uma derrota “pessoal e política”.



Ainda antes de decidir se convocaria eleições antecipadas na sequência da demissão e entre as audições a várias figuras políticas no sentido de aconselharem a sua decisão Jorge Sampaio afirma: “Este é um processo de decisão pessoal, exclusivamente pessoal. É um processo em que não pode haver influências mas tem de haver a mais profunda auscultação da realidade política, social e económica do país. É isso que estou a fazer. Não tenho pressa, porque tenho a perfeita convicção que esta é uma decisão das mais importantes, e certamente a mais grave, que posso tomar no decurso destes dois mandatos”.

"A minha deceção é certamente partilhada pela esmagadora maioria dos que votaram no atual Presidente da República, por duas vezes, contra candidatos apoiados por toda a direita", lembrou.

Na altura secretária nacional do PS, Ana Gomes disse estar “profundamente arrependida” de ter apoiado Jorge Sampaio nas corridas presidenciais de 1996 e 2001.

Entre os protestos e as inseguranças, o governo de Pedro Santana Lopes começou com o pé esquerdo e depressa se desmoronou. O próprio Presidente da República viria a admitir, já depois de ter abandonado o cargo que o nome do novo primeiro-ministro não fora o que mais lhe agradara. Preferia outras figuras dos sociais-democratas, nomeadamente Manuela Ferreira Leite ou Marcelo Rebelo de Sousa.

“Eu queria ganhar tempo e fiz alguns contactos. Mas ninguém apresentou alternativas ao nome de Pedro Santana Lopes. (…) Não houve indecisão, como por vezes se diz, mas uma tentativa de esgotar as hipóteses”, diria mais tarde em entrevista ao Diário de Notícias.

É o ex-autarca de Lisboa a assumir as funções em São Bento. A sucessão de escândalos, incluindo a saída de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI após pressões de Rui Gomes da Silva, o artigo de Cavaco Silva no Expresso que, sem nunca mencionar o nome de Santana Lopes, é uma dura investida contra um governo frágil e a prazo. A golpada final acontece com o pedido de demissão de Henrique Chaves.

Numa comunicação ao país, o Presidente da República faz referência a “sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações que contribuíram para o desprestígio do Governo, dos seus membros e das instituições em geral”.

De tal forma que o Presidente nem os menciona no seu discurso. “Dispenso-me de os mencionar um a um, pois são do conhecimento do país. Aliás por diversas vezes e por formas diferentes, dei sinais do meu descontentamento com o que se estava a passar”, dizia então o Presidente.

Na visão de Sampaio, como viria a revelar mais tarde, em entrevista ao Público, a maioria parlamentar “já estava podre”.

A bomba atómica cai sobre a Assembleia da República. A queda do XVI Governo, anunciada em discurso a 10 de dezembro, consuma-se a 22 de dezembro de 2004. Jorge Sampaio anuncia a dissolução do Parlamento e a marcação de eleições antecipadas para 20 de fevereiro de 2005, onde José Sócrates viria a alcançar maioria absoluta, a primeira do PS.

Este é para muitos – e mesmo para o próprio – um dos episódios que mais marcou a sua passagem por Belém, senão mesmo o mais marcante, uma vez que exigiu uma decisão normativa por parte do Presidente e uma iniciativa do chefe de Estado, pouco comum na história da democracia portuguesa.

Em poucos meses, Jorge Sampaio tomou duas das decisões mais difíceis e controversas do seu mandato. Na reportagem “Até ao Fim”, de Vítor Gonçalves que acompanha os últimos dias da presidência, garante que não foi pressionado a tomar qualquer decisão.

“Quem está aqui está só. Deve ouvir, cruza a informação, procura factos na economia, na sociedade, nas personalidades. Essa foi uma decisão solitária”, esclarece.

Mais recentemente, em 2010, em entrevista ao Público, Sampaio viria a revelar que foi “um conjunto imenso de disparates” que ajudou a precipitar a destituição do Governo de Santana, mas que essa decisão não se deveu aos disparates em si mesmos. “A maioria já estava podre” e o CDS-PP já nem sequer aceitava bem a nova liderança que substituíra Barroso.

Apesar de ter acompanhado a realidade portuguesa durante dez anos, com os mais variados temas internacionais e nacionais, este será porventura aquele que é mais rapidamente recordado pelos portugueses. Em entrevista à Rádio Renascença, em março de 2017, Jorge Sampaio admitia que a dissolução da Assembleia foi uma decisão difícil e que, perante as polémicas e o constante regresso ao assunto, aqueles meses quentes o acompanharam muito depois de deixar a presidência. “Não consigo libertar-me de 2004 de maneira nenhuma”, desabafava.

No segundo volume da biografia, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira, Sampaio confessa: “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva, mas não foi uma decisão ad hominem. Ninguém gosta de dissolver o Parlamento e eu tomei essa decisão em pouco mais de 48 horas. Hoje faria o mesmo, porque era preciso."

“A dada altura convenci-me que só a dissolução poderia servir porque havia sinais vários, sinais a meu ver que apontavam para a necessidade de uma relegitimação por parte da vontade popular”, recorda.

Fotografias: Partido Socialista, Reuters