“Foi no fim de 1991 que percebi que o ciclo de forte crescimento económico, que Portugal conhecia desde 1986, tinha chegado ao fim”, escrevia Cavaco na sua autobiografia, ao mesmo tempo que afirmava que o Governo “não se tinha acautelado politicamente para uma conjuntura tão adversa”.
Depois de anos marcados por uma catadupa de obras, de fundos comunitários, o tempo de maiores dificuldades trazia sobressalto social.
O primeiro-ministro não queria enveredar pelo fim das mudanças de fundo que iam “hostilizar grupos”. Estava criado o pano de fundo para dias quentes de Cavaco Silva.
Bloqueio da Ponte
É considerado um dos maiores movimentos de desobediência civil no Portugal democrático: 24 de julho de 1994, o dia apontado como o princípio do fim do cavaquismo.
Foi a mais grave crise política com que Cavaco Silva teve de lidar enquanto primeiro-ministro. Os protestos dos utentes começam com um buzinão que
se arrasta e com o pagamento das portagens com notas de valores elevados
para dificultar os trocos.
De 100 para 150 escudos. O aumento do preço das portagens na Ponte 25 de Abril anunciado pelo Governo era de 50 por cento, pela voz do ministro Ferreirra do Amaral.
Um acréscimo que estava previsto no acordo com a Lusoponte, que construiria a Ponte Vasco da Gama e geriria a 25 de Abril a partir de 1996.
Manhã cedo, no dia 24 de julho, o acesso à ponte é bloqueado por camiões. Começa um período longo com extensas filas de trânsito e um campo de batalha montado na zona das portagens.
Arremesso de pedras à polícia, tiros disparados, uma carga policial contra os manifestantes. Um jovem de 18 anos é atingido por uma bala e fica paraplégico.
Reportagem da série “50 anos, 50 notícias”
Nesse dia o primeiro-ministro estava na ilha grega de Corfu para uma reunião dos chefes de Estado e de governo da Europa. Fernando Nogueira substituía-o. Cavaco Silva pede ao seu ministro para que avalie e tome medidas para restabelecer o trânsito na Ponte.
À carga policial, a oposição responde com um coro de críticas e acusações de arrogância. O PSD coloca a tónica numa conivência de PS e PCP com os acontecimentos na Ponte.
Reportagem de julho de 1994
Na autobiografia, Cavaco Silva escreve sobre uma alegada conivência ativa de alguns órgãos de comunicação social que “procuravam criar um clima de desobediência à lei e de revolta dos utentes contra o Governo”. E ressalva que o próprio PSD criticou Ferreira do Amaral.
“A partir do momento em que se tornou óbvio que a portagem da ponte se tinha transformado num instrumento de combate político-partidário, pedi a Fernando Nogueira e a Nunes Liberato que procurassem mobilizar o PSD para o contra-ataque (…) A questão foi gradualmente morrendo, mas não há dúvidas que deixou marcas negativas na popularidade do Governo”. Acrescenta que “o bloqueio da ponte tinha criado um ambiente de agitação e confronto e fragilizado o Governo”.
“Não pagamos!”
A exibição de rabos onde estavam escritas as palavras daquele que se pode chamar o “grito” dos estudantes – “Não pagamos”- ficou para a História, apesar da polémica e de não ser consensual, mesmo entre os manifestantes.
Valeu-lhes o epíteto “geração rasca”, atribuído em editorial no Público por Vicente Jorge Silva. Os estudantes retorquiram. Seriam antes uma “geração à rasca”.
Em causa: o aumento do valor das propinas. O Governo e o ministro da Educação Couto dos Santos remetiam à Assembleia da República, em maio de 1992, a proposta de lei de atualização das propinas, valor que não era mexido há cerca de 50 anos.
Cavaco Silva defendia que havia uma “injustiça escandalosa”, já que o ensino superior era financiado quase por inteiro por dinheiro dos contribuintes e isso benFoi o tempo das RGA (reuniões gerais de alunos), das greves, das manifestações dos estudantes que juntaram milhares de pessoas.eficiava os mais ricos.
Na autobiografia, Cavaco refere que só os mais ricos pagariam a totalidade das propinas e estimava-se que 40 por cento dos alunos ficariam isentos.
Mas os alunos não encontraram bondade na medida. O novo sistema de acesso, a famosa PGA, e o aumento das propinas eram rastilho para a contestação.
A 24 de novembro de 1993 dá-se uma carga policial nas escadarias da Assembleia da República.
A carga reforçava o movimento e lançava novas achas para o combate político ao Governo. Pelo lado da oposição, mas também pelo lado de Mário Soares. Isto, pelo menos, na análise do próprio Cavaco Silva.
“O presidente Mário Soares percebeu que a lei das propinas do ensino superior era uma oportunidade de oiro para desgastar o Governo, bastando para isso dar sinais de que discordava da decisão e que estava ao lado dos estudantes. Foi o que fez.”, lê-se na autobiografia do então primeiro-ministro.
O Presidente da República tinha enviado para fiscalização do Tribunal Constitucional a legislação sobre as propinas. O Tribunal considerará que o documento não fere a Constituição nas normas essenciais. Mário Soares, porém, veta o Regulamento do diploma em dezembro de 1993. Perante este gesto, o Governo transforma o decreto-lei em proposta de lei, a fim de ser aprovada no Parlamento. O processo legislativo prolongava-se por mais um par de meses.
Depois da carga policial contra os estudantes, o Presidente da República veio a público contestar a violência, confessando-se “muito mal impressionado”. Referindo que “todos têm o direito de se manifestar”, Mário Soares argumentava ainda que “não é maneira de tratar com os jovens. Tratá-los à bastonada e com cargas policiais (…) Não quero incendiar o país. Quero apagar os fogos que vão surgindo”.
Telejornal de 25 de novembro de 1993
O ministro Couto dos Santos sai do Governo em dezembro de 1993, substituído no cargo por Manuela Ferreira Leite. Mas nem por isso diminuiu a contestação às reformas, com manifestações na altura consideradas as maiores de sempre.
Às “forças de bloqueio”: “Deixem-nos trabalhar”
O clima social era tenso e o político também. Cavaco Silva falava de “forças de bloqueio” à modernização do país. No Conselho Nacional do PSD de 1992, o primeiro-ministro não resistiu a queixar-se do presidente da República.
“Hoje, tudo o que é decisivo para que Portugal possa enfrentar o embate da União Económica e Monetária europeia é visto pelo Presidente da República como inconstitucional”, disse na altura.
No Congresso do PSD, em novembro desse ano, volta a apontar ao Presidente da República, à oposição, mas também aos órgãos fiscalizadores do Estado, como o Tribunal de Contas, as “forças de bloqueio”:
“Todos aqueles sectores ou políticos que, frontal ou encapotadamente, querem impedir a legislação reformadora e querem bloquear a modernização do país, fazem discursos sobre reformas, mas depois tentam impedir o Governo de as concretizar.”
Congresso do PSD, 1992
As declarações provocaram controvérsia. Mas em julho de 1993 Cavaco Silva não desarma, aproveitando a campanha eleitoral para as autárquicas:
“Entretenham-se nos palácios, nos almoços, na intriga e na criação de factos políticos. Mas deixem-nos trabalhar. Deixem-nos trabalhar para desenvolver Portugal”.
Campanha no Castelo de S. Jorge, julho de 1993
A Procuradoria-geral da República era visada, como explicitou na autobiografia sobre esse período. "Eram muitos os dirigente do PSD e vários os membros do Governo que, bem ou mal, estavam convencidos de que a Procuradoria-Geral da República geria alguns processos de investigação de acordo com a oportunidade política e permitia fugas de informação para alguns jornais, por forma a criar dificuldades e lançar suspeições sobre o Governo. Coisa semelhante se pensava em relação ao Tribunal de Contas".
Mas Mário Soares era o principal visado. Depois de um mandato relativamente pacífico com o Governo, Mário Soares é reeleito Presidente da República, em 1991, com o apoio do próprio PSD. O primeiro-ministro diz que houve mudanças: “não perdia uma oportunidade de mandar para o Tribunal Constitucional diplomas legislativos importantes para a ação do Governo”. Como as propinas, lei do segredo de Estado ou até o diploma para a erradicação das barracas em Lisboa e Porto, entre muitas outras.
Mário Soares argumentou mais tarde, em entrevista para o livro de Maria João Avillez, que “foi uma força de contenção contra os demónios da arrogância e do autoritarismo, que algumas vezes terão marcado o Governo de Cavaco Silva”.
Certo é que o “fantasma” da dissolução do Parlamento pelo Presidente pairou nos discursos e na comunicação social. As presidências abertas de Mário Soares eram, com frequência, tempo de crítica à situação social, para um Governo que apresentava sinais de desgaste.
Cavaco queixava-se de que Soares esquecia a crise económica internacional da altura. Acusava o Presidente de dar acolhimento aos protestos de grupos de interesses visados por medidas governamentais, de pressionar, por exemplo a UGT para não assinar o acordo de concertação social.
Excerto de documentário “Políticos Portugueses”
O ano de 1994 é o do auge da tensão. O congresso “Portugal: Que futuro?” é aberto por Mário Soares, com um discurso muito crítico ao Governo. Cavaco Silva opta pelo silêncio: “Resolvi deliberadamente, passar ao largo do que lá se disse”, assegura em biografia, falando de manobra “excessivamente politiqueira”. Confrontado pelos jornalistas, assegura que não ouviu o discurso e diz apenas que estava no Pulo do Lobo, no Alentejo, a comer caracóis.
No último debate na Assembleia da República em que participou como primeiro-ministro, a 22 de junho de 1995, diz que “com manobras de rua, intrigas de bastidores, compadrios palacianos, manipulação de informação, tudo fizeram para pôr em causa a estabilidade política, inibir a governabilidade do país, destruir a confiança dos agentes económicos e prejudicar a recuperação da economia”.
Nas memórias do tempo de primeiro-ministro, Cavaco Silva haveria de escrever: “Estou convencido de que Mário Soares sentiu a derrota do PSD, nas eleições legislativas de 1 de outubro de 1995, como uma vitória sua, mas incompleta, porque eu, por decisão própria, não estava em causa. (...) Foi um prazer que não lhe dei”. Cavaco Silva já tinha anunciado que não se recandidataria a primeiro-ministro em janeiro desse ano.
O Independente
Foi um jornal e uma dor de cabeça para Cavaco Silva. Para um homem que se definiu como “sem feitio nem apetência para a arte de sedução dos jornalistas” (Autobiografia Política II), as constantes notícias sobre o seu Governo incomodavam.
Afirmou-se “indignado com a violência dos ataques pessoais” na imprensa, com especial destaque para O Independente, e elege na autobiografia como “trama maior” a notícia sobre a compra de uma casa nas Amoreiras do então ministro das Finanças Miguel Cadilhe.
Cadilhe e Leonor Beleza eram alvos frequentes do jornal, dirigido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas. Cavaco também o era. No livro O Independente, a máquina de triturar políticos, Filipe Santos Costa e Liliana Valente fizeram as contas. Foram 91 manchetes com a cara do primeiro-ministro, entre 1998 e 1995. E editoriais demolidores de Paulo Portas.
Na introdução do livro que conta a história do jornal, Paulo Teixeira Pinto, na altura secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros na segunda maioria absoluta de Cavaco Silva, diz que “a certa altura, eu falava das capas d’O Independente como as lápides. Quem é que terá a sua lápide esta semana? Não era necessariamente mortal, até porque ninguém teve mais lápides do que Cavaco Silva e sobreviveu sempre. Mas era quase mortal pela causticidade e contundência”.
Certo é que as notícias no semanário provocaram inquéritos parlamentares e até precipitaram remodelações governamentais. Quando saíam, multiplicavam-se as reações. Houve casos, como com Cadilhe, em que o Governo emitiu mesmo notas oficiais e o primeiro-ministro se dirigiu ao país.
“Ficou provado que é possível ganhar eleições contra os jornais, desde que o Governo tenha obra feita que possa apresentar ao eleitorado e goze de elevada credibilidade”, in Autobiografia Política II, sobre Conselho Nacional do PSD, em 1991.
As notícias surgiam muitas vezes de fugas de informação de fontes ligadas ao Governo. No livro sobre o semanário, conta-se que até mesmo o episódio em que Cavaco tenta internamente controlar as saídas de informação foi alvo de fuga de informação.
Cavaco Silva é reeleito com maioria absoluta ainda mais folgada em 1991. Conta-se no jornal que Paulo Portas terá dito “não temos influência nenhuma”. Já Cavaco Silva acaba por afirmar que essa tinha sido uma vitória “com sabor especial porque conquistada contra a imprensa”.
Apesar disso, O Independente não abranda. Antes pelo contrário. Cavaco queixava-se, nas suas memórias, de "notícias inventadas ou deturpadas" ou "conivência com os adversários políticos do PSD".
Certo é que vinham a público, não só no semanário, notícias sobre escândalos, acusações de corrupção e fuga ao fisco envolvendo o executivo, entre outras. Com mais ou menos verdade, iam desgastando a imagem do Governo.
Alguns episódios. Em setembro de 1990, o governador de Macau, Carlos Melancia, é indiciado por corrupção, num processo que envolve o aeroporto de Macau. Em 1993, 25 doentes da Unidade de Hemodiálise do Hospital Distrital de Évora morrem e as análises mostram altos valores de alumínio no sangue. O caso fica na memória também pela demissão de Carlos Borrego, ministro do Ambiente, por ter contado uma anedota sobe o caso publicamente.
O Ministério da Saúde de Leonor Beleza via-se envolvido no caso de doentes hemofílicos alegadamente contaminados com plasma infetado com o vírus da SIDA, entre 1985 e 87. A denúncia foi feita em 1992. Leonor Beleza é, entre outros, pronunciada em setembro de 1995, poucos dias antes das eleições legislativas. O caso anda anos às voltas nos tribunais, entre decisões de prescrição e recursos.
A relação com a comunicação social, de resto, foi pautada por momentos de tensão. Em 1994, durante a inauguração da Escola Superior de Comunicação Social, Cavaco Silva argumentava: Dedico cinco minutos de manhã e cinco minutos à tarde a ler os jornais, porque tenho muito que trabalhar”.
Em 1993, um conflito com os jornalistas. Os profissionais organizam um boicote de praticamente um mês às atividades do Parlamento, em protesto contra as limitações impostas pelo PSD à circulação dos jornalistas nos corredores da Assembleia da República.
“Secos e molhados”
Ainda no primeiro Governo de maioria absoluta, o país assistia incrédulo às imagens que a comunicação social transmitia de confrontos de polícias contra polícias. Dia 21 de abril de 1989, na Praça do Comércio, em Lisboa, o corpo de intervenção da PSP - os “secos” - avançavam com canhões de água contra polícias que se manifestavam fardados - os que ficam “molhados”-, que reivindicavam liberdade sindical, melhores vencimentos e condições laborais.
Reportagem sobre manifestação, 20 anos depois
A lei não permitia a manifestação de forças de segurança e o comandante no terreno avança em força contra os colegas da PSP em manifestação, a coberto da indicação do ministro da Administração Interna para que a legalidade fosse reposta.
O caso correu mundo e elevou um coro de críticas nacionais. Cavaco Silva faz uma comunicação ao país a dar apoio à atuação da hierarquia da PSP. Para o Governo, a criação de um sindicato de polícia era totalmente inaceitável, porque implicava o direito à greve e punha em causa a disciplina da corporação.
Depois da manifestação e pressionado, o Governo remete ao Parlamento uma proposta de estatuto da PSP que foi aprovada em fevereiro de 1990 com os necessários dois terços dos votos do hemiciclo. Foi então consagrada a possibilidade de constituição de associações profissionais de polícias, mas a legislação estabelecia restrições aos direitos de expressão e manifestação.
Greve geral de 1988
Os direitos laborais foram tema quente para o Executivo. A legislação laboral datava de 1975 e o Governo decide avançar com a sua primeira revisão.
Em fevereiro de 1988 aprova em Conselho de Ministros o Pacote Laboral. As críticas vieram das centrais sindicais, mas também dos patrões. Uma greve geral é marcada para 28 de março.
Reportagem de janeiro de 1989
O Presidente da República pede a fiscalização preventiva do diploma ao Tribunal Constitucional, que decide pela inconstitucionalidade de algumas normas do Pacote.
Na autobiografia, Cavaco Silva cita palavras suas na altura: “Algo está errado no nosso sistema político constitucional; um governo que obteve o apoio inequívoco do povo em eleições livres é impedido de concretizar aquilo que prometeu aos portugueses”, considerando que os juízes tinham sido influenciados pela contestação e tinham optado por uma interpretação restritiva.
O diploma teve de ser alterado, “com a imaginação e subtileza jurídica necessárias para preservar o mais possível a reforma da legislação laboral”, conforme descrição do então primeiro-ministro nas suas memórias. A primeira fase estava concluída e as mudanças na legislação laboral continuaram mais tarde, com novas medidas.
Fim da tolerância
Mais tarde, em 1993, já com uma conjuntura económica na Europa de dificuldades que também se sentiam em Portugal, com o desemprego a crescer, Cavaco Houve quem aparecesse ao trabalho mascarado e o Parlamento terá contado apenas com a presença de elementos da bancada do PSD.Silva decide que, em nome da produtividade e do interesse nacional, não iria conceder a tolerância de ponto no Carnaval. Era com “trabalho e não com facilidade, que poderíamos vencer as dificuldades”, observa na sua autobiografia.
Concluiu que foi um “enorme erro político”. “A minha mulher bem me alertou para isso, mas eu já não tinha condições para voltar atrás (…) Não voltei a insistir e, em 1994 e 1995, assinei resignadamente o despacho de tolerância de ponto na terça-feira de Carnaval”.
Pedro Passos Coelho, no entanto, terá interpretação diferente. Também ele, enquanto primeiro-ministro, não concedeu tolerância de ponto no Carnaval.