O conteúdo do programa submetido ao Parlamento pelo novo Executivo socialista mereceu esta quinta-feira um chumbo transversal a toda a Oposição, que criticou a postura de José Sócrates num contexto de perda da maioria absoluta. A política educativa, o casamento homossexual e um pacote de medidas sociais dominaram um discurso governativo que apenas captou aplausos no PS.
Em temas de fractura política e mesmo ideológica, o primeiro-ministro mostrou-se pouco aberto a grandes revisões do rumo definido no programa do XVIII Governo Constitucional. Na Educação, voltou a pôr de parte uma suspensão do actual modelo de avaliação de desempenho dos professores, circunscrevendo a margem de actuação a um aperfeiçoamento do sistema, em concertação com as estruturas sindicais do sector. No tema do combate à crise económica, tornou a dar ênfase ao investimento público, no que seria secundado, durante a tarde, pelo ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. Para responder aos apelos à realização de um referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, prometeu apresentar, a breve trecho, uma proposta de legalização contra "todas as formas de discriminação", reivindicando para tal a "legitimidade do mandato popular".
A maratona do debate sobre o programa do Governo reservaria a Sócrates uma catadupa de ataques dos partidos da Oposição, à esquerda e à direita dos socialistas, contra aquilo que consideram ser a postura anacrónica de um poder executivo que já não pode contar com o respaldo da maioria absoluta.
Programa abre caminho a perda de "independência económica"
A ser concretizado, o programa do Governo para a XI Legislatura dará lugar à "ruína" do país. A avaliação foi levada à Assembleia da República pela presidente do PSD, que disse mesmo ser "preferível" que as linhas programáticas do Executivo do PS sejam "uma ficção".
"Sublinho esta afirmação: se este programa fosse executado, como não tem meios para tal, traduzir-se-ia em maior endividamento, o que seria a perda da nossa independência económica", sustentou Manuela Ferreira Leite, que acusou ainda o primeiro-ministro de deixar sem resposta a questão "de como vai pagar tudo aquilo que se propõe fazer". O PSD, insistiu, vai continuar a opor-se a uma política "enganosa" de "grandes investimentos em infra-estruturas".
Na resposta a Ferreira Leite, o líder da bancada parlamentar socialista, Francisco Assis, disse que o PSD está hoje a divergir de "praticamente todos os governos europeus", incluindo os "do centro e do centro-direita".
"Não pode fazer comparações entre vários países quando nós estamos numa situação completamente diferente. Não há ninguém que esteja com o nosso nível de endividamento", devolveu Manuela Ferreira Leite.
"Favores e teias de interesses"
Durante o tarde, a líder social-democrata recuperaria um tema que aqueceu o debate - a necessidade de pugnar pela "transparência da actuação dos poderes públicos". Depois de o deputado do PSD José Pacheco Pereira ter medido forças com José Sócrates a propósito do processo Face Oculta, Manuela Ferreira Leite disse que os socialistas deixaram os portugueses desconfiados face ao poder. E convictos de que "há favores e teias de interesses e nunca se conseguirá saber a verdade das coisas".
"O nível de confiança nas instituições públicas tem diminuído drasticamente. Fomentou-se e justificou-se o êxito individual, quebraram-se cadeias de solidariedade e de cooperação, faz-se ameaças à liberdade de expressão e o exercício do poder surge aos olhos dos cidadãos como um circuito fechado do qual se sentem excluídos", argumentou Ferreira Leite.
"Na falta de instituições sólidas e credíveis, confia-se nas pessoas, favorecendo-se o exercício de poderes autocráticos na Administração Pública despudoradamente politizada e colocada ao serviço do partido do poder", reforçou.
"Esta é, de facto, a pesada herança que o PS herda do PS anterior, da sua teimosia e da sua arrogância", concluiu Ferreira Leite.
Portas critica Governo "vítima das oposições"
"O PS ganhou as eleições, mas ganhou-as com maioria relativa. Perdeu mais de meio milhão de votos, mas nunca o ouvi dizer quer é preciso rectificar, corrigir, alterar. Tem legitimidade para governar porque teve maioria relativa. Mas está ou não está disponível para corrigir as políticas?". A pergunta foi lançada pelo líder do CDS-PP, que aconselhou o primeiro-ministro a "reflectir" sobre os resultados das eleições legislativas.
"Parece-me que quer agora um argumento segundo o qual é vítima das oposições. Mas ainda não creio que nenhuma oposição em particular ou em conjunto o tenha martirizado", frisou Paulo Portas, aludindo à ausência de moções de rejeição do programa do Governo.
Paulo Portas assinalou, por outro lado, que o aumento das pensões anunciado pelo primeiro-ministro se traduz em apenas "três euros": "Para quem tem 243 euros de reforma, passa a ter 246. Não acha que tem margem para investir melhor na área social?".
O presidente do CDS-PP propôs, em seguida, a afectação de parte de uma fatia das verbas do Rendimento Social de Inserção ao aumento das pensões de reforma.
Na resposta, Sócrates instou os partidos na Oposição a "terem um bocado de humildade", deixando uma pergunta: "Quais foram as razões que levaram os portugueses a manterem-me como primeiro-ministro?"
Bloco de Esquerda denuncia "declaração de guerra" aos professores
Na sua primeira intervenção, o coordenador político do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, exortou o primeiro-ministro a substituir o actual modelo de avaliação dos professores, o que corresponderia à sua "primeira lei ponderada e concreta".
Irónico, Francisco Louçã reconheceu que José Sócrates "fez um esforço para corrigir o seu ministro dos Assuntos Parlamentares, aludindo a uma declaração à TSF em que Jorge Lacão disse que a suspensão do modelo de avaliação em vigor estava fora de questão. Ainda assim, vincou, o Governo "insiste em perder tempo numa avaliação que é uma declaração de guerra incompetente e inconclusiva".
Também o dirigente do Bloco levou a debate o processo Face Oculta, desafiando Sócrates a respeitar "uma prioridade republicana que é o princípio da transparência", no momento em que há uma "grande corrupção tentacular organizada a atacar o país". O PS, lembrou, "recusou tudo o que era sensato, recusou emergência e meios".
Numa reedição de argumentos, José Sócrates instaria, depois, Francisco Louçã a "ter presente que o PS ganhou as eleições". Sublinhou, adiante, que a proposta do Bloco de Esquerda para a avaliação dos professores impõe a suspensão imediata do actual modelo, quando já estão avaliados "quase 49 mil professores".
Governo perdeu "legitimidade para fazer o que quer"
O secretário-geral do PCP fez também a leitura dos resultados das legislativas de 27 de Setembro para dizer que os socialistas deixaram de ter a "legitimidade" para fazerem o que querem. Por outro lado, a Assembleia da República tem "legitimidade para fiscalizar e legislar".
Quanto às propostas inscritas no programa do Governo, Jerónimo de Sousa considera que o país está confrontado com ideias que "dão para hoje", mas "não respondem à realidade dos problemas candentes da sociedade portuguesa" - o combate à crise e ao desemprego e uma maior justiça social.
Jerónimo saudou o alargamento do acesso ao subsídio de desemprego, acompanhado da redução do período de descontos para um ano, mas propugnou de imediato a expansão do período de atribuição daquela prestação social.
O dirigente comunista questionou, depois, o primeiro-ministro sobre as injustiças sociais, designadamente no domínio fiscal, em matéria de combate ao desemprego: "Que combate é esse, senhor primeiro-ministro? Repartir sacrifícios entre os que têm emprego e os que não têm? Aplicar refinadamente a flexissegurança?".
No tema da avaliação dos professores, Jerónimo de Sousa descartou qualquer apoio dos comunistas a "manobras dilatórias, tocando aqui ou acolá para deixar tudo na mesma". Suspender a avaliação, retorquiu José Sócrates, seria "irresponsável, um péssimo serviço à escola pública e um péssimo sinal às famílias".
PEV contra "aberração" na avaliação de docentes
Pelo Partido Ecologista "Os Verdes", a deputada Heloísa Apolónia mostrou-se convicta de que a Oposição vai estar em condições de reunir um consenso em torno da suspensão do modelo de avaliação de desempenho dos professores. Um sistema, afirmou, que é "uma aberração" apoiada em "quotas que minimizam os bons professores" e que foi instituído "para poupar dinheiro e para não permitir a progressão dos professores na carreira".
"Tem alguma dúvida de que esta avaliação vai ser objecto de uma suspensão acaso todas as oposições sejam responsáveis com o que defenderam no passado?", perguntou a deputada a José Sócrates.
O primeiro-ministro respondeu, então, que "uma aberração" seria acabar com a avaliação dos docentes, ou considerar que "o melhor é ter um sistema público de ensino sem condições para premiar o desempenho, o mérito e o esforço".
Os resultados do combate à corrupção na anterior legislatura, atirou ainda Heloísa Apolónia, "não foram grande coisa".
Sócrates deixaria sem resposta uma pergunta do PEV sobre o tema da regionalização. Heloísa Apolónia quis saber se o conteúdo do programa do Governo sobre aquela matéria, a tratar "na próxima legislatura", constitui uma "gaffe da cópia do programa eleitoral para o programa do Governo e na verdade o que o Governo quer é implementar a regionalização nesta legislatura", ou "sub-repticiamente a passagem dessa concretização para a outra legislatura, procurando nesta apenas angariar apoios para a causa".
No que diz respeito ao subsídio de desemprego, a deputada do PEV lembrou que a medida anunciada por Sócrates vai abarcar "oito a dez mil" beneficiários, numa altura em que "há 300 mil pessoas que não recebem" aquele apoio.