As mais de quatro horas do primeiro dia do debate na generalidade do Orçamento do Estado para 2021 (OE2021) ficaram marcadas pela rutura entre o primeiro-ministro e o Bloco de Esquerda (BE), dado que Catarina Martins anunciou na segunda-feira o voto contra a proposta do orçamento. António Costa acusou o BE de “desertar” da esquerda para se juntar à direita, mas rejeitou o fim da “geringonça”, ao questionar se a decisão dos bloquistas é “irrevogável”. O BE, por sua vez, defende que a sua postura é “apenas de razoável bom senso” perante um orçamento que considera “de rotina”, mas assume compromisso em caso de mudança.
António Costa sublinhou que em democracia “há sempre alternativas e a sua vitalidade reforça-se com a clareza da sua afirmação”, considerando “natural” que, tal como Governo continua o caminho que iniciou em 2015, também a direita “coerentemente” continue a remar no sentido contrário. “O que não é possível é pretender querer ir mais longe ou mais rápido por este caminho, juntando-se agora à direita, que marcha em sentido oposto”, afirmou o primeiro-ministro, referindo-se ao Bloco de Esquerda.
"Não vale a pena querer polarizar entre nós o debate porque a alternativa que se apresenta neste debate parlamentar não é entre o orçamento que o Governo apresenta e o orçamento que o Bloco de Esquerda vai votar contra. A alternativa que existe é entre aquela que o Governo apresenta e aquela que a direita apresenta", sustentou António Costa.
De acordo com o primeiro-ministro, "a alternativa é entre aqueles como o PS que vão votar a favor deste Orçamento" e os outros partidos e deputados à esquerda, bem como o PAN e a deputada Cristina Rodrigues, "que entendendo que é necessário avançar no sentido de superar insuficiências e limitações, não desertam da esquerda para se juntarem à direita, mas viabilizam a passagem deste Orçamento à especialidade".
Na parte final da sua intervenção na abertura do debate, António Costa voltou a insistir na crítica ao BE, ao considerar que a votação da proposta de Orçamento na generalidade é a da “clarificação política”, num discurso em que prometeu abertura para o trabalho conjunto na especialidade, mas sem incluir o BE: "A votação na generalidade não é a votação final, mas é a votação da clarificação política. A votação sobre qual o caminho a seguir".
### 1270528###
"A posição do PS é clara e totalmente coerente com as opções assumidas nestes cinco anos de governação”, declarou o primeiro-ministro, acrescentando que “as posições do PCP, do PAN, do PEV, das deputadas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues são também muito claras e mostram que há quem não desista de encontrar soluções para a crise que enfrentamos”.
BE recusa “enterrar a cabeça na areia, como uma avestruz”
Na intervenção pelo Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua sublinhou que o BE foi o único que esteve ao lado do Governo na resposta à emergência, mas ressalva que agora é precisa uma reposta que vá para além da emergência.
“É verdade que este orçamento não faz cortes e é um orçamento de continuidade e estratégia orçamental do Governo”, reconheceu Mortágua. “Confirmamos que este é um orçamento de rotina, mas não é de rotina que precisamos em tempo de crise e por isso, este orçamento está condenado a ser ultrapassado pelas dificuldades”, acrescentou a deputada, observando que este OE prevê “um défice dos mais baixos da Europa”, com uma verba para o SNS que é menor do que o orçamentado suplementar de 2020.
“Este orçamento não basta. Falha onde Portugal não deve falhar e não olha à realidade. Falha e não pode falhar”, asseverou Mariana Mortágua, sublinhando que o investimento na Saúde não é suficiente, e exigindo uma reforma no SNS. As respostas do Governo “são remendos, quando o que precisamos são respostas estruturais”, defendeu o BE.
“Se o PS quer um orçamento à esquerda, comprometa-se com medidas de esquerda, com propostas apresentadas à esquerda”, reoforçou a bloquista, questionando “porque resiste tanto o PS a criar uma carreira para os operacionais dos hospitais e em dar autonomia aos hospitais para poderem contratar”.
Já Catarina Martins defendeu que a postura do BE é “apenas de razoável bom senso”, acusando Costa de um “recuo” no orçamento, principalmente na área da saúde. "A necessidade de investimento no SNS em 2021 não é menor. É maior. Como pode o Governo esperar que o SNS faça mais com menos?", questionou a líder do BE.
### 1270559###
Na resposta, António Costa foi peremptório: "permita-me discordar. A proposta do Orçamento do Estado não tem qualquer recuo e prossegue a trajetória que temos vindo a prosseguir desde 2015 de aumento de dotação do SNS". "O BE nos últimos dias tem utilizado um gráfico comparando o que não é comparável", apontou Costa, em relação à Saúde. Na intervenção de abertura, António Costa considerou que o combate à pandemia tem de ser a prioridade e afirmou que o OE2021 vai dispor ao SNS um total de 12,1 mil milhões de euros, “quase tanto como a ‘bazuca europeia’ dos próximos seis anos".
Em suma, Mariana Mortágua diz que aquilo que estão a pedir ao BE é que “enterre a cabeça na areia, como uma avestruz, fingindo não ouvir, não ver, não entender nada”. “Não faremos isso, porque temos o mandato de não deixar ninguém para trás”, garantiu Mortágua, deixando um recado ao Governo: “se houver o bom senso” de reforçar o SNS, proteger quem está sem emprego e se proteger o Estado da “pilhagem” financeira, poderão contar com o apoio do BE. Caso contrário, não.
CDS fala em "fim da geringonça" mas Costa não sabe se decisão do BE é "irrevogável"Perante este impasse entre o Governo e o BE, o líder parlamentar do CDS considerou que a solução política que António Costa usou em novembro de 2015 para “chegar ao poder sem ganhar as eleições está a acabar e está a esgotar-se”. "Percebe que o modelo da geringonça está a acabar? Parece muito evidente”, questionou Telmo Correia. "Só agora percebeu que o Bloco de Esquerda era oportunista? Só agora percebe que é um parceiro para as boas horas enquanto há coisas para dar e que nas horas complicadas salta fora? O senhor primeiro-ministro tem um problema político, mas não fui eu que me meti nesse buraco", concluiu o presidente do Grupo Parlamentar do CDS.
Perante este ataque de Telmo Correia, António Costa começou por tentar relativizar os desentendimentos dentro de uma maioria com várias forças políticas e rejeitou o bloco central: "Penso que é vantajoso é que não haja soluções de bloco central, e que existam soluções em que o PS polariza à esquerda e o PSD polariza à direita". Depois, usou a ironia: "Não sei se a decisão do Bloco de Esquerda em relação a este Orçamento é mais ou menos irrevogável que a decisão do CDS de abandonar o Governo com o PSD", comentou, numa alusão à crise interna que se instalou no executivo de Passos Coelho no verão de 2013.
Mais tarde, moderando os ataques ao BE, Costa mostrou-se disponível para aprovar propostas dos bloquistas na especialidade. Depois de o deputado do BE José Manuel Pureza ter acusado o PS de ter uma "aliança sistemática" com a direita em matéria de leis do trabalho, o primeiro-ministro mostrou-se disponível a alargar o novo apoio social, atribuindo-lhe um valor global de 633 milhões de euros.
"Quanto à matéria laboral, senhor deputado, estamos totalmente disponíveis, seja entre o Governo e o BE, seja entre o PS e o BE, para assinar um documento para a revisão da legislação do trabalho no horizonte da legislatura”, declarou ainda António Costa.
Costa admite necessidade de “recalendarizar” valorização de salários na função pública
Em resposta ao Partido Ecologista “Os Verdes” – que anunciaram que se vão abster na generalidade – António Costa afirmou que a pressão orçamental provocada pela crise obrigará o Governo a recalendarizar o programa de valorização dos salários da administração pública, mas assegurou que, ainda assim, a massa salarial neste setor aumentará 3,5 por cento.
“É verdade, não vale a pena escondê-lo, que a evolução económica de 2020, seja quanto a uma inflação negativa, quer quanto à pressão orçamental que a crise impôs, obriga-nos a recalendarizar o programa de valorização que tínhamos relativamente ao conjunto de salários da administração pública”, disse, no debate da proposta de Orçamento do Estado para 2020, em resposta ao Partido Ecologista “Os Verdes”.
Ainda assim, o primeiro-ministro assegurou que a massa salarial no conjunto da administração pública vai aumentar 3,5 por cento, “seja por via das novas contratações, seja por via das promoções, seja por via das progressões”.
“Seja também pela proposta que aqui apresentamos de regulamentar desde já o subsídio de insalubridade, em particular para trabalhadores do setores dos resíduos e saneamento (…) que há anos aguarda a regulamentação”, disse, afirmando que, desta forma, a medida irá beneficiar os trabalhadores de todos os municípios (e não apenas de alguns, como acontece atualmente) e os da administração central.
Costa deixou ainda a garantia que o Governo irá manter a trajetória do Salário Mínimo Nacional para os 750 euros, “não ao ritmo do ano passado”, mas ao ritmo da média dos aumentos anterior legislatura, destacando igualmente a moratória de dois anos para a caducidade das convenções coletivas, que disse proteger “três milhões de trabalhadores”.
Mesmo com o voto contra do Bloco que se junta a PSD, CDS e Iniciativa Liberal, o Governo já tem garantida a aprovação do orçamento. Com a abstenção de PCP, PAN e de Cristina Rodrigues, a ex-deputada do PAN, e também com o voto de Joacine Katar Moreira, ainda entre a abstenção ou a aprovação, o Orçamento vai passar aprovado pelos 108 deputados do PS.
A votação na generalidade decorre na quarta-feira, mas o dia da votação final está marcado para 27 de novembro.
c/Lusa