Vítor Constâncio tinha sido reeleito como secretário-geral do PS com 94% no VII Congresso. Ocupava o cargo desde 1986, sucedendo ao líder histórico e então Presidente da República, Mário Soares, depois de vencer a candidatura de Jaime Gama.
Em 1988, Constâncio já enfrentara anos difíceis de recuperação do partido em termos financeiros mas também motivacionais. Vira um Governo de coligação do PS e PRD a ser negado por Mário Soares, assistira à primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987.
Nestes anos, Sampaio começou por ocupar o cargo de secretário internacional e foi candidato a deputado por Santarém durante a campanha eleitoral de 1987, a pedido do secretário-geral do partido. Finalmente, chegou a líder parlamentar da bancada socialista na Assembleia da República, a partir de 1987, uma função que cumpriu durante 16 meses.
Entre as principais intervenções notam-se o combate às assimetrias regionais e a posição de Portugal no mundo, sobretudo na União Europeia, ou ainda as críticas a um primeiro-ministro ausente que, segundo os socialistas, menosprezava o papel dos debates e as questões colocadas ao Governo pela oposição.
A tarefa de liderar a oposição é ingrata. À disposição de Sampaio, os 60 deputados socialistas pouco ou nada podem fazer contra os 148 de Cavaco Silva, dispostos a aprovar todos os projetos-de-lei e propostas do Governo.
Com uma figura cada vez mais desgastada, Vítor Constâncio não tem candidato para disputar Lisboa nas eleições legislativas de 1989, sobretudo com a saída de cena de nomes fortes como António Guterres, a quem são dirigidas fortes acusações de deslealdade. Os fracos resultados eleitorais do PS exigiam do partido um bom desempenho ao nível local e o incêndio do Chiado só tornara ainda mais necessário garantir a vitória socialista em Lisboa. O secretário-geral demite-se em outubro de 1988 e deixa divisões profundas no partido.
É nesta fase difícil do PS – de acusações de parte a parte, de tensão com a Presidência da República - que o então líder-parlamentar, Jorge Sampaio, cogita sobre o que deve fazer. Tem o incentivo de amigos próximos, incluindo Ferro Rodrigues ou António Costa. Jaime Gama e António Guterres são outros possíveis candidatos.
A decisão de Sampaio se candidatar a secretário-geral surge a 18 de novembro, contra sondagens que revelam a grande improbabilidade de alcançar a liderança do partido e as expetativas da imprensa.
“Jorge Sampaio, de quem se dizia ser o eterno hesitante, surpreendeu toda a gente anunciando com rapidez a sua intenção de receber o testemunho das mãos do secretário-geral demissionário”, escrevia o Expresso na semana seguinte.
VIII Congresso do PS
Frente a Jaime Gama, Jorge Sampaio alcança a liderança do partido no início de 1989. Um ano difícil, numa altura em que o agora novo secretário-geral se vê a braços com os mesmos problemas que já haviam afetado Vítor Constâncio. Após um resultado satisfatório nas europeias de 1989, as eleições autárquicas que haviam sido a gota de água para a saída de Constâncio assombravam também a liderança de Sampaio.
“O candidato sou eu próprio”
Perante uma nova sucessão de rejeições para a candidatura a Lisboa e as notícias de um candidato pelo PSD mais forte que o esperado - Marcelo Rebelo de Sousa - a pressão aumenta sobre o novo secretário-geral. No ar paira o fantasma de Vítor Constâncio. Inspirado nos vários exemplos europeus de líderes partidários no comando do poder local, Jorge Sampaio planeia o golpe inesperado por partidos ou comunicação social, que davam como provável a candidatura de nomes como João Soares ou Nuno Portas, entre outros.
”Fechei-me em casa durante um dia inteiro, completamente enrascado e decidi em frente ao espelho: sou eu!”, conta no segundo volume da biografia assinada por José Pedro Castanheira. A candidatura de um líder partidário ao nível local, ainda que à capital, era algo de inédito na democracia portuguesa, mas o secretário-geral do PS já tinha a decisão tomada.
“E o candidato do Partido Socialista, naturalmente, sou eu próprio”, afirma Sampaio perante a imprensa, a 6 de julho de 1989. A solução fora alcançada a menos de meio ano do escrutínio e surpreendera toda a classe política portuguesa, desde a oposição, à presidência ou o próprio Partido Socialista. Afinal, o candidato arriscava tudo e jogava em Lisboa a sua própria liderança e a carreira como líder partidário que mal tinha ainda começado.
Numa entrevista ao Público, o irmão Daniel Sampaio viria a destacar que ser secretário-geral do PS e candidatar-se à Câmara Municipal de Lisboa teve “custos físicos muito grandes, com um desgaste enorme na sua saúde”.
“Mas foi uma decisão bonita do ponto de vista político. Claro que hoje podemos ler que a partir daí é que ele conseguiu subir a Presidente da República. Mas na altura ninguém pensava nisso. Havia um problema para resolver, ninguém se perfilava para a câmara e ele disse: Eu vou, eu sou capaz”, refere o psiquiatra.
Sampaio não vai sozinho para a luta por Lisboa e tenta negociar com Álvaro Cunhal, líder do PCP, e Carlos Brito, na altura líder parlamentar dos comunistas, uma autêntica geringonça autárquica que acaba por ser alcançada com um partido político com quem criara afinidade desde a crise académica de 1962.
Um dos pontos mais difíceis da negociação é o da eventual substituição de Jorge Sampaio. Caso vencesse as autárquicas, não deixaria, enquanto líder do PS, de ser candidato a primeiro-ministro nas eleições legislativas. O PS quer garantir que o potencial substituto seria socialista e os comunistas acabam por garantir José Saramago como candidato à presidência da Assembleia Municipal.
A coligação “Por Lisboa” está em marcha a partir de 23 de julho. Do lado do PSD, Cavaco Silva demoniza o acordo com os comunistas e expõe um alegado acordo que fora desenhado para liderar o país em coligação, tal como se previa para Lisboa. Entretanto, o candidato dos social-democratas a Lisboa mergulha no Tejo e guia um táxi pela cidade de Lisboa, colocando-se no centro das atenções.
Um evento internacional à larga escala quase aniquila a coligação: a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, é o momento ideal para o PSD e toda a direita alertarem para os perigos de ter os representantes do comunismo em Lisboa. Como não poderia deixar de ser, os parceiros de coligação reagem ao acontecimento de formas completamente díspares, mas a aliança mantém-se firme.
No final de novembro, os dois candidatos defrontam-se num debate na RTP que corre de feição a Sampaio, um confronto que se revelou decisivo para desempatar os dois candidatos. Mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa reconheceria que não teve “irreverência” e que estava “sem convicção”, talvez por ter abusado, nessa discussão, de uma imagem de seriedade de que tinha estado afastado durante toda a campanha.
A 17 de dezembro de 1989, a coligação encabeçada por Jorge Sampaio vence com 49.1%, mais sete pontos que o adversário do PSD. A nível nacional, e não só em Lisboa, o Partido Socialista vence nas principais cidades, para regozijo do secretário-geral. O discurso de vitória decorre em duas frentes, em nome do partido mais votado a nível nacional, que representa, mas também da câmara que irá encabeçar. Derrotado o PSD, Cavaco Silva vê-se obrigado a reconhecer o resultado negativo, que irá mesmo desencadear uma remodelação ministerial profunda nos primeiros dias de 1990.
A derrota de 1991 e o “estado de choque”
Apesar da vitória arrebatadora autárquicas - não só na capital, mas também no resto do país -, nem tudo corre bem na vida política que Sampaio irá levar a cabo nos dois anos seguintes. Reeleito secretário-geral pelo Congresso socialista de abril com 91% dos votos, Sampaio vai correndo entre o Largo do Rato e a Praça do Município, o que lhe vale críticas das alas guterristas e soaristas no partido, que exigem o foco do novo autarca nas eleições legislativas que se aproximam.
Cavaco Silva é o primeiro chefe de Governo a conseguir completar os quatro anos de uma legislatura e logo com uma maioria absoluta em que os fundos europeus e os êxitos económicos foram o prato forte. Com os vereadores da capital que tinha à sua disposição, entre eles o ex-candidato Marcelo Rebelo de Sousa, a estratégia do PSD nos meses antes das legislativas pauta-se por "agarrar" o líder da oposição o mais possível aos seus compromissos autárquicos.
Por sua vez, o então primeiro-ministro escusa-se de participar nos debates televisivos contra Sampaio, não querendo arriscar o que as sondagens já apontavam: que a eleição estaria ganha, e poderia até mesmo reforçar a maioria absoluta que detinha no Parlamento. Grandes obras e construções como o Centro Cultural de Belém, a assinatura de uma fábrica da Volkswagen, em Palmela, ou a conclusão da autoestrada Lisboa – Porto acabam por decorrer nos meses anteriores às legislativas de 1991. Todos os prenúncios para uma vitória que se viria a verificar, com o PSD a alcançar 50,6% dos votos.
Logo no dia seguinte, Guterres reage ao resultado. “Estou em estado de choque”. É o prenúncio de uma candidatura que há muito vinha a ser construída nas bases do Partido Socialista, já desde os tempos de Constâncio.
No X Congresso do PS, em 1992, Guterres vence Jorge Sampaio e torna-se no novo secretário-geral do partido. A separação entre as duas figuras do grupo conhecido como “ex-Secretariado” é irreversível e não voltará a ser a mesma nem em 1995, quando voltam a encontrar-se nos principais lugares da política portuguesa, Sampaio como Presidente, Guterres como primeiro-ministro.
Correr contra Cavaco? “Não deixaria de ser estimulante”
Afastado da liderança do partido, o presidente da Câmara de Lisboa dedica-se por inteiro à autarquia. Se ao início fora complicado gerir todas as sensibilidades da coligação e ainda fazer oposição a Cavaco Silva, agora Sampaio pode focar-se inteiramente nos assuntos da capital.
Os mandatos ficam marcados pela reconstrução do Chiado após o grande incêndio de 1988, a recuperação do Coliseu dos Recreios no âmbito da Lisboa 1994 Capital Europeia da Cultura, a preparação da candidatura, em 1992, à organização da Exposição Internacional de 1998 (Expo98), a assinatura de um empréstimo para a construção do Eixo Norte-Sul, ou os bastidores que antecederam a construção do Centro Comercial Colombo, iniciado em 1994 (que seria inaugurado em 1997 pelo então Presidente da República Jorge Sampaio).
O realojamento dos lisboetas e o fim das barracas e construções clandestinas ocupam o centro das preocupações do autarca. Em 1993, a coligação que vencera em 1989 ganha sem grandes dificuldades sob o lema “Com Lisboa” contra Macário Correia, candidato do PSD.
Numa entrevista à revisão Visão em 1996, poucos dias após ter sido eleito chefe de Estado, Jorge Sampaio viria a admitir que a experiência enquanto autarca o “virou do avesso”. Foi outra entrevista, mas no Expresso, a lançar uma nova etapa na vida do então autarca.
“Há um fator de natureza subjetiva que, sem ser decisivo, não deixaria de ser estimulante para a minha decisão: saber que me ia confrontar com o prof. Cavaco Silva”, revela numa entrevista no início de 1994, a dois anos da eleição, pouco depois de ter tomado posse para um segundo mandato na câmara.
A frase faz capa de jornal um ano antes de Sampaio decidir anunciar efetivamente a candidatura num telefonema incisivo ao secretário-geral do Partido Socialista. A candidatura é anunciada logo em fevereiro de 1995.
Guterres ainda pede que adie a decisão por uns dias, mas Sampaio não
olha para trás. Seria, após um anúncio prematuro, o candidato da área
socialista.
Apesar das diferenças e das desavenças do passado, os dois fazem uma caminhada conjunta. António Guterres vence as eleições legislativas em outubro de 1995 e chega a primeiro-ministro. Escassos meses depois, Jorge Sampaio vence as eleições presidenciais de janeiro de 1996 contra Cavaco Silva, o mesmo homem que quatro anos antes o havia derrotado e que desencadeara o fim da liderança sampaísta no PS.
Para trás fica a Câmara de Lisboa, entregue logo em novembro de 1995 a João Soares. Até à eleição presidencial, em janeiro de 1996, dois temas sensíveis chegam a fazer temer o pior para Sampaio, em ambos os casos pela frontalidade que amigos lhe atribuem. O candidato à Presidência admite, sem rodeios, que poderia ter votado em Otelo Saraiva de Carvalho na eleição de 1976. Cavaco Silva tenta demonizar a apoio a um candidato que esteve envolvido nas FP-25 e que foi apoiado pelo PCP, partido com quem Sampaio se coligara na Câmara de Lisboa. Jorge Sampaio responde com críticas ao passado “silencioso” de Cavaco Silva na luta contra a ditadura.
No final de uma entrevista à RTP, em novembro de 1995, Jorge Sampaio não tem problemas de admitir perante os jornalistas que não tem quaisquer crenças religiosas: “Sou laico”, reitera. Amigos e conselheiros - sobretudo António Costa, o seu diretor de campanha - consideram mais uma vez que devia ter esclarecido a questão de outra forma. Cavaco Silva tenta novo aproveitamento e enfatiza que Portugal é “um país católico”. Mas a revelação não constituiria um fator de peso para os portugueses na hora de votar. Afinal, o próprio Presidente Soares já se assumira antes como não crente.
Nas últimas semanas de combate presidencial, o ex-primeiro-ministro Cavaco, que tantos meses demorara a esclarecer o "tabu" em torno da sua candidatura presidencial, ataca o presidente da Câmara de Lisboa. "Nunca levou nada até ao fim. (...) Eu termino os meus mandatos", afirma durante um debate pré-campanha.
Todas as tentativas da campanha de Cavaco Silva saem goradas face à caminhada vitoriosa de Sampaio. A 14 de janeiro de 1996, cumpre-se o sonho. Sampaio chega a Belém com 53.91% dos votos, contra 46,09% de Cavaco Silva.
Fotografias: Partido Socialista, Reuters