Fuat Dogu. Um protagonista da História turca no turbilhão do PREC

por RTP
Foto de Fuat Dogu no site do MIT (serviço secreto turco) DR

Em 25 de abril de 1974, quase todas as Embaixadas em Lisboa estavam chefiadas por personagens de segunda linha. A Embaixada turca era a excepção e tinha à sua frente Mehmet Fuat Dogu. O embaixador vinha de uma carreira militar, como chefe dos serviços secretos (MIT) e como eminência parda da junta militar turca dos anos 1960. Entre os diplomatas acreditados em Lisboa, era o mais capacitado para analisar a revolução nascente. Fê-lo num livro publicado em 1982 na Turquia e até agora inédito em português.

Fuat Doğu veio parar a Lisboa em outubro de 1971, como embaixador, na sequência de uma conspiração putschista que, aparentemente, não denunciou com zelo e rapidez suficientes ao primeiro-ministro Suleiman Demirel. Os seus adversários no Governo aproveitaram-se do deslize para se desembaraçarem do general, despachando-o para o exílio dourado que Lisboa era na altura. A solução encontrada punha fim à carreira de Doğu como líder político-militar.
 
Apesar de discreta, essa carreira teve uma relevância incontestável na História recente da Turquia. Vale a pena recapitular brevemente os antecedentes da missão de Doğu em Lisboa.


Uma carreira nos serviços secretos


Há notícias de uma colaboração de Doğu, no início da sua carreira, com a Organização Gehlen, estrutura embrionária que, em estreita ligação com a CIA, daria depois origem ao serviço secreto alemão do pós-guerra, o BND. Chefiada pelo general Reinhard Gehlen, um antigo oficial nazi, a organização a que ele deu o nome especializara-se no combate ao comunismo e era uma típica criatura da Guerra Fria. Não se conhece, contudo, nada de concreto sobre as modalidades da colaboração de Doğu com a Organização Gehlen.

No decurso de uma visita aos EUA, já depois de ter colaborado com a Organização Reinhard Gehlen, Doğu foi posto em contacto com um lendário quadro da CIA, Ruzi Nazar. Este crescera no Uzbequistão soviético, começara uma carreira política no Komsomol e prosseguira-a no Exército Vermelho. 
Durante a guerra, Nazar foi capturado pela Wehrmacht e passou-se para o inimigo (foto acima). Mas, com a aproximação da derrota, voltou a passar-se para mais um inimigo, desta vez o OSS (mais tarde CIA). Nos anos seguintes, Nazar teve uma meteórica ascensão na hierarquia do serviço. Seria depois enviado para a Turquia como responsável local da CIA.
 
Entretanto Doğu já se tornara uma figura importante no país. Ele estivera envolvido no golpe militar de 27 de maio de 1960 e ficara à cabeça do serviço secreto MIT (Milli Isthibarat Teskilati). Tornou-se também um dos três membros da junta militar que tutelava o Governo de base parlamentar chefiado por Ismet Inönü. Embora não fosse o presidente da junta, Doğu era geralmente considerado o mais influente dos três generais.

Numa entrevista que deu a Selcuk Osdag, Doğu (foto abaixo, dos anos 90) terá declarado que toda a sua actuação teve lugar ao serviço da CIA. Mas a gravação da entrevista desapareceu e essa derrapagem politicamente difícil de explicar é apenas conhecida através do testemunho de Osdag. O que certamente pode ser confirmado é que Nazar e Doğu estavam sintonizados sobre a política a adoptar perante a URSS, ambos em contramão da estratégia de coexistência pacífica e boa vizinhança que o governo de Ismet Inönü se esforçava por implementar.
Com efeito, Nazar acreditava que as pequenas repúblicas soviéticas de maioria muçulmana eram um barril de pólvora e que por elas começaria o desmembramento da URSS. Em consequência, preconizava uma sistemática agitação separatista dirigida a essas repúblicas. Quanto a Doğu, ele financiava com o orçamento do MIT o “Instituto de Turcologia”, que se concentrava precisamente em desenvolver a dita agitação. Em 1965, com a substituição do Governo de Inönü pelo de Demirel, Doğu passou a ter uma cobertura governamental que antes era apenas parcial e pôde expandir as suas actividades de política externa através do Instituto de Turcologia.

No plano da política interna turca, o final da década de 1960 foi marcado por uma efervescência estudantil inspirada em Maio de 68, por um desenvolvimento sem precedentes da esquerda turca e por um crescendo de reivindicações arménias e curdas. Nazar, e através dele a CIA, intervinham activamente na política interna da Turquia. Mais tarde, viriam a ser responsabilizados pela escalada de violência que conduziu ao golpe militar de 12 de março de 1971.

Doğu, à frente do MIT, também fomentava o desenvolvimento de grupos para-militares de direita. A certa altura, foi advertido por um dos membros do Governo, Sadi Koças, de que deveria manter-se dentro dos limites da lei. Em 12 de março de 1971, contribuiu para jugular o putsch, mas sobre ele ficou a pender a suspeita de não ter denunciado a tentativa logo que dela teve conhecimento. Foi então afastado da junta militar e, com o posto de tenente-general, despachado para Lisboa como embaixador.


Uma ave rara no corpo diplomático acreditado em Lisboa


Em vésperas do 25 de abril de 1974, qualquer embaixada em Lisboa era um posto para figuras de passado dúbio ou de comprovada incompetência. O embaixador francês e o embaixador britânico eram figuras insignificantes, o embaixador espanhol menos, mas em todo o caso em fim de carreira. A Embaixada da Alemanha Federal fora chefiada por vários diplomatas com passado nazi. Um deles, o ex-SS Schmidt-Horix, suicidara-se no seu posto em 1970. Um outro, Ehrenfried von Holleben, estava de partida e, na véspera do 25 de abril, dera uma festa de despedida.
 
Na Embaixada norte-americana, Stuart Nash Scott ansiava por um mandato sem sobressaltos. No dia 25 de abril tinha partido para um encontro de antigos alunos de Harvard e deixara a Embaixada entregue a Richard Post. Coube a este receber um outro diplomata mais atento, Robert Bentley, que dois dias antes veio comunicar-lhe os rumores ouvidos em almoço no Grémio Literário sobre a queda iminente de Marcelo Caetano. Post não deu crédito a Bentley e expulsou-o do seu gabinete.
 
Mas a drástica alteração do panorama político resultante do 25 de Abril fazia de Portugal um elo fraco da cadeia europeia e tornava urgente preencher os postos diplomáticos em Lisboa com critérios mais exigentes. O Reino Unido e a França mantiveram no seu posto os dois embaixadores insignificantes, mas a Alemanha Federal e os Estados Unidos apressaram-se a escolher embaixadores especialmente qualificados.
 
Para o lugar de Holleben, veio Fritz Caspari, um dos escassíssimos diplomatas alemães que tinham guardado as suas distâncias face ao regime nazi. Para o lugar de Scott veio Frank Carlucci, um homem que andara pelo Congo ao tempo do assassínio de Lumumba e pelo Brasil ao tempo da ditadura militar. Aí ganhara uma reputação de “tipo duro”. Bentley recomendou-o ao chefe do Departamento de Estado e Donald Rumsfeld enalteceu-lhe as credenciais de dureza. Henry Kissinger, ainda eufórico com o êxito de Pinochet, entendeu que devia enviar para Lisboa o “tipo duro”.
 
Mehmet Fuat Doğu tinha sobre todo o restante corpo diplomático acreditado em Lisboa a vantagem de ser um político experiente, pelo menos tanto como Caspari ou Carlucci, e de já se encontrar no seu posto muito antes deles. Havia três anos que observava atentamente o país e dele ia conhecendo alguma coisa. Não por acaso, alguns anos depois Doğu foi o único embaixador acreditado em Lisboa a publicar as suas impressões sobre o PREC, em forma de um livro com o título Kırmızı Karanfiller İhtilâli (A Revolução dos Cravos Vermelhos, capa na foto).
Em Lisboa, não é conhecida a relação de Doğu com Carlucci, se chegou a haver alguma. Mas há uma mensagem de Carlucci para Kissinger, em 6 de novembro de 1975, relatando que a Embaixada turca contactou a Embaixada dos EUA, pedindo-lhe ajuda para reforçar o dispositivo de segurança, na sequência de atentados, presumivelmente cipriotas gregos, que acabavam de ocorrer em Viena e em Paris e que, admitia-se, pudessem ocorrer também em Lisboa, aproveitando a confusão que vivia a capital portuguesa. 

Segundo o secretário da Embaixada turca, Müfit Özdes, Lisboa era considerada uma das cinco cidades em que seria mais provável um atentado contra a Embaixada turca. Os interlocutores norte-americanos deram-lhe alguns conselhos de carácter prático sobre o recrutamento de guarda-costas. Na mensagem para o Departamento de Estado, Carlucci relativiza o perigo, mas sublinha que o embaixador, como antigo chefe dos serviços secretos turcos poderá, realmente, ser alvo apetecível para um atentado terrorista.

Está por fazer alguma investigação sobre o partido que Carlucci tirou, ou não, do superior conhecimento que  tinha do país o super-espião turco estreitamente ligado à CIA. Uma coisa é certa: o novel embaixador norte-americano, desembarcado na capital portuguesa em janeiro de 1975, não tinha tempo a perder, nem perdeu. No lapso brevíssimo de dois meses já entendera que a receita golpista do Chile era contra-indicada em Portugal. E tanto entendera, que no 11 de março não teve qualquer contacto com Spínola e se manteve prudentemente afastado da conspiração. 

Infringia com isso o guião que lhe dera o seu chefe, o secretário de Estado Henry Kissinger. Por muito perspicaz que fosse Carlucci, nada indica que pudesse sozinho decidir-se a essa infracção num país que não conhecia de todo. E nenhum think tank que tenha improvisado na altura podia substituir a experiência de alguém como Doğu. Da ligação com Doğu, faltam as provas mas sobram os indícios.

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