Entrevista a João Cravinho. A "importância estratégica" do Sahel

por Andrea Neves - correspondente da Antena 1 em Bruxelas
O representante especial para o Sahel, da União Europeia, faz a coordenação das políticas da União. Foto: Dursun Aydemir - Anadolu via Reuters

João Gomes Cravinho é o novo representante especial da União Europeia para o Sahel, uma região que considera ter uma "importância estratégica" para a segurança e estabilidade.

O Sahel é uma extensa área que atravessa longitudinalmente África, desde o Senegal até à Eritreia, mas o foco da União Europeia vai centrar-se na Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Chade e Níger, sendo que em três destes países houve golpes de Estado nos últimos anos.

Em conversa com a correspondente da Antena 1 em Bruxelas, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal refere que esta região é muito importante para a Europa porque a instabilidade que atravessa pode causar problemas ao continente europeu.
Cravinho realça ainda que é preciso dialogar com os países de África para perceber como é que a União Europeia pode ajudar, sem impor soluções que não tenham adesão à realidade e às pessoas, numa parceria que se quer entre iguais.
A missão do representante especial da União Europeia para o Sahel
Qual vai ser a sua missão enquanto representante especial para o Sahel?

“O representante especial para o Sahel da União Europeia tem de fazer a coordenação das políticas da União Europeia, o que é mais complicado do que pode parecer assim, à primeira vista.

Primeiro porque são 27 países e a minha primeira missão, portanto, é a de estabelecer uma plataforma de convergência de 27 países, sendo que nos últimos anos tem havido alguma divergência entre eles, visões diferentes sobre aquilo que se deve fazer em relação ao Sahel e aquilo que são as grandes preocupações – para alguns são questões relacionadas com os russos, para outros são questões relacionadas com as migrações, para outros são questões relacionadas com as alterações climáticas e todas as dinâmicas associadas à criminalidade organizada – portanto, é fundamental conseguir uma plataforma de convergência entre os europeus, primeiro.

Segundo, precisamos de uma abordagem coerente dos nossos instrumentos – que são muitos desde a ajuda humanitária, a ajuda ao desenvolvimento, de uma forma extremamente diversa – procurando identificar aquilo que pode ter maior impacto para a estabilidade e a segurança na região.

E por fim é importante estabelecer também um diálogo muitíssimo mais estreito com os países da região – sabe-se, que tem havido desavenças muito fortes entre esses países e a Europa e particularmente com a França – que nos permita trabalharmos em conjunto para evitar que aquela região que é vasta – estamos a falar de três milhões de quilómetros quadrados, a União Europeia tem quatro milhões de quilómetros quadrados, portanto estamos a falar de três-quartos do tamanho da União Europeia – muito próxima geograficamente da União Europeia.

Isto para que o Sahel não seja uma imensa região desgovernada, sem controlo estatal e, nessa medida, um espaço aberto para o terrorismo, a criminalidade organizada, e tudo aquilo que não convém e não convém, sobretudo, na vizinhança da União Europeia.Segurança e estabilidade
Vamos tentar analisar todas essas questões de que já falou, individualmente.

Comecemos pela estabilidade segurança: como é que se consegue, num espaço onde há tantos ataques a civis onde as forças russas têm agora uma predominância maior, alcançar essa segurança?

“Na realidade, nós temos que trabalhar no curto, médio e longo prazo e temos que fazer tudo em simultâneo.

Ou seja, nós sabemos todos que as dinâmicas associadas, por exemplo, à migração, só têm resposta de longo prazo, só tem uma resposta que passa pelo desenvolvimento, pela criação de alternativas, pela criação de emprego e de perspetivas para os jovens.
A maior parte das pessoas neste mundo prefere – a grande maioria 95, 98 ou mesmo 99 por cento das pessoas – ficar mais ou menos onde estão, e as migrações em grande escala acontecem quando não há condições para isso.

E é nesse sentido que nós temos de apoiar os países de origem, no sentido de criar perspetivas económicas para que os jovens – estamos a falar de uma população muito jovem, uma população com grande crescimento demográfico – para que tenham perspetivas para ficar.

Isso é uma ambição de longo prazo que precisa de começar a ser trabalhada agora.

No curto prazo, temos de ajudar a enfrentar a instabilidade. E a instabilidade resulta em insegurança por múltiplos fatores: resulta de conflitualidade locais mas também resulta da ausência do estado e, portanto, nesse sentido nós podemos apoiar – e estamos a apoiar, por exemplo, o Mali, apesar das dificuldades – na estruturação do Estado, na constituição de uma polícia e de um sistema de justiça que funcione.

Já não estamos a trabalhar no domínio militar e isto é complicado porque aquilo que se sabe é que quem está a trabalhar no domínio militar – a Rússia – não tem capacidade de resposta. Pelo contrário, o que se verifica é um agravamento da situação militar no Mali, no Burkina Faso e no Níger, com tendência para se expandir também para outros países da Costa do Golfo da Guiné, portanto, o Togo, o Benim, o Gana, a Costa do Marfim, todos eles com incursões vindas do Burkina Faso e do Mali.

Eu vou estar na Mauritânia em breve, vou estar no Mali em breve, neste mês de janeiro. No mês de fevereiro, estarei no Níger, no Chade e no Burkina Faso e em todos eles vou procurar identificar as ideias que possam ter lá, sobre como é que nós europeus podemos melhor corresponder às suas ansiedades, às suas necessidades imediatas, para, a partir daí, começarmos a trabalhar o médio prazo e o longo prazo”.

Mas quando me diz que já não há missões militares significa que já não existem missões de formação a nível militar da União Europeia?

“Há uma missão de formação de segurança mas não militar. É uma missão de formação que envolve a polícia, mas também juízes e polícias de fronteira no Mali. Já não existem as missões de formação militar que existiram no passado no Mali e no Níger”.

Mas poderiam fazer falta para fazer face a esta maior presença russa?

“É uma escolha soberana. É uma escolha soberana dos países de origem, mas também da parte europeia. Da parte europeia chegou-se à conclusão que não fazia sentido formar militares de países que depois colocavam esses militares sob comando de forças estrangeiras, nomeadamente russas.

Eu creio que, sendo hoje perfeitamente visível que a capacidade militar russa não corresponde às necessidades – e aquilo que os russos estão a fazer hoje em dia é simplesmente segurança do regime, segurança de proximidade das altas entidades e não segurança do país, e quando fazem a segurança do país, muitas vezes envolve atropelos aos direitos humanos e, portanto, também é uma situação que não é bem-vinda – e nesse sentido eu creio que a prazo, não sei dizer exatamente quando, mas rapidamente dentro do próximo par de anos, se chegará à conclusão que é bom restabelecermos uma cooperação no plano militar”.
A ajuda humanitária da União Europeia
Temos sempre a colaboração no plano humanitário e precisamos de organizações no terreno que sejam parceiras da União Europeia. Tem sido fácil encontrá-las ou vai ser fácil encontrá-las?

“Não é fácil encontrá-las porque a situação em si é extremamente difícil e a desestruturação do Estado também tem alguma correspondência no quadro da sociedade civil.

Mas de qualquer maneira, é preciso trabalhar com aquilo que existe. Nós não podemos desejar que a situação fosse melhor e começar a trabalhar como se a situação fosse diferente daquela que há, pelo contrário.

Nas minhas conversas com as autoridades dos países da região do Sahel vou também procurar identificar as melhores maneiras de conciliar aquilo que são os nossos valores e as nossas formas de trabalhar com aquilo que são as necessidades sentidas pelas autoridades no terreno”.

Porque a União Europeia continua a ser um forte apoiante, mesmo assim, a nível de ajuda humanitária em toda a região.

“É de longe, o maior. É de longe, o maior.

Não existe nenhum – muito menos a Rússia, claro, mas também não a China e também não os Estados Unidos – outro país com capacidade ou vontade ou disponibilidade para apoiar, em termos de assistência humanitária e em termos de apoio ao desenvolvimento, como a União Europeia.

A União Europeia é insubstituível”.Objetivos comuns: clima e sustentabilidade
E como é que se consegue num espaço que às vezes é tão caótico – entre tantos ataques de civis, divergências étnicas, presença russa – ainda insistir na necessidade de ter também algum controlo sobre aquilo que são os objetivos de sustentabilidade e os objetivos climáticos?

“Bom, nós temos de saber interpretar o que significa a soberania. E nós não podemos ter dois pesos e duas medidas, ou seja, não podemos impor a outros aquilo que nós não aceitaríamos para nós próprios. Um exercício que eu penso que é que é bastante útil é o de pensar “e se fosse no meu país, eu aceitaria isto”?

Acho que ajuda a fazer a distinção entre algum paternalismo – que tem sido tradição, porque não dizê-lo – nas relações entre a Europa e os países daquela região e aquilo que são políticas que são mais essas sustentáveis para o futuro.

Dito isso, nós não podemos, obviamente, aceitar a tudo o que nos é sugerido por outros, na medida em que temos os nossos princípios, temos os nossos valores.

A ajuda humanitária tem que ser exatamente isso, humanitária, e não estar ao serviço de propósitos de natureza de política local.
O apoio ao desenvolvimento também tem que ser feito de uma maneira que não seja ofensivo em relação aos nossos princípios, por exemplo, no que se refere à escolaridade de raparigas, ao apoio às mulheres, etc.

Portanto, temos um trabalho de equilíbrios que é necessário ir fazendo ou tricotando, digamos, para encontrar os caminhos possíveis e necessários, porque aquilo que existe atualmente é absolutamente insustentável e é uma receita para uma gravíssima crise que afetará a Europa”.
As migrações
Já me falou das migrações, uma das possibilidades que se abre, e que a União Europeia quer, é a de corredores legais de migração.

Seria importante também que a União Europeia pudesse trabalhar com essas pessoas que querem vir legalmente para a Europa, dando-lhes formação, por exemplo, nos países de origem, para serem mais facilmente integráveis?

“Sim, esse tipo de raciocínio é imprescindível.

Nós, na Europa, apesar de fortes tendências populistas e também de dinâmicas políticas muito contrárias à imigração, nós temos necessidade de imigrantes.

Temos necessidade para a nossa economia. Basta olhar para a demografia europeia e olhar para a democracia africana para perceber que se não tivermos africanos também a trabalhar na Europa, estaremos numa situação de grande incapacidade para responder às dinâmicas mundiais atuais. E a Europa, este continente envelhecido precisa, portanto, de desenvolver políticas migratórias que sejam sensatas para a sua economia, que sejam sensatas também socialmente.

As ideias sobre migração circular – por exemplo, criando condições para que pessoas possam vir trabalhar para a Europa, regressando depois aos seus países com toda a capacidade financeira que adquiriram na Europa, beneficiando também de formação como referiu na sua pergunta, para que possam também chegar à Europa e cumprir aqui funções – são essenciais.
Isso será bom também para os países de origem, porque quando regressam aos países de origem essas pessoas podem aplicar os seus novos conhecimentos, as suas novas qualificações nesses países.

Mas este é um trabalho que tem sido muito toldado por pressões imediatistas e eleitoralistas em muitos países europeus, sob pressão de uma demagogia anti-migração, o que é que é extremamente danoso para a Europa”.
Uma África mais capaz
Uma das apostas que se tem feito é a de levar a África as condições para que os africanos sejam capazes de produzir aquilo que precisam.

Por exemplo, no caso das vacinas da covid-19, por exemplo: eram produzidas na Europa e levadas para África e agora está a tentar-se que sejam produzidas também em África.

É importante que África sinta que tem um papel, uma capacidade de produzir aquilo que precisa, ainda que com o apoio da União Europeia.

“Sim, é fundamental.

O exemplo que deu das vacinas é um exemplo bom, muito interessante. É um exemplo que resulta de uma exigência africana.
E quando digo a exigência africana, volto a pensar naquilo que disse anteriormente sobre o termos que nos colocar nos pés dos outros e perguntar como é que nós reagiríamos.

Porque afinal, o que eles disseram é naturalíssimo e foi simplesmente dizer que é essencial que face a uma pandemia, a uma emergência mundial – como aquela que vivemos – era essencial que houvesse uma capacidade de resposta própria de África. Disseram simplesmente: “não aceitaremos mais estar numa posição de inferioridade em relação a outras partes do mundo”.

E o trabalho de cooperação que foi feito entre a União Europeia e vários países africanos, em particular o Ruanda, mas não só, que levou à criação de condições para que as vacinas mais avançadas, as vacinas MRNA. estejam hoje a ser produzidas no Ruanda, foi muito importante.

Ora esse tipo de exemplo, eu creio que deve ser replicado em relação a outras partes do continente e em relação a outras necessidades económicas”.
A importância de ser português
Qual é o papel de Portugal? Que proximidade é que pode trazer o facto de ser português e qual é o papel que Portugal, na União Europeia, pode ter em relação ao aproximar de África para o lado de cá?

“O facto de ser português é uma vantagem grande, porque nós somos vistos como sendo um país interessado em África, mas sem grandes interesses próprios em África. Não temos agendas escondidas, e isso é uma enorme vantagem.

Somos também um país que não representa nenhuma ameaça. Não temos escala para sermos uma ameaça.

E, particularmente desde que estamos na União Europeia – digamos desde o princípio deste século – Portugal tem-se estabelecido como uma voz a favor de uma intensificação do relacionamento entre a Europa e África. E isso é reconhecido.

É reconhecido na Europa e é reconhecido em África.

Eu, quando era ministro – seja da Defesa, seja dos Negócios Estrangeiros – sentia que quando a conversa entre os meus pares virava para África, as pessoas interessavam-se sempre por aquilo que eu dizia, enquanto representante de Portugal.

E é também reconhecido entre os africanos, que têm alguma facilidade no diálogo com Portugal que não têm com outros países.

Portanto para esse trabalho de ponte entre a União Europeia e África – e estou seguro de que António Costa, enquanto presidente do Conselho Europeu, também vai desempenhar muitíssimo bem esse trabalho – eu creio, que ajuda ser português nestas circunstâncias”.
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