Dissolução e fim do Grupo Katins

por António Louçã, Sofia Leite - RTP

A partir de 1978, o que restava do Grupo Katins viu a sua autonomia cada vez mais limitada e os seus passos cada vez mais vigiados pelos serviços de informações da RDA. Assim terminava uma experiência prometedora, que durante algum tempo teve veleidades de inovar a cultura da produção audio-visual no leste da Alemanha e mesmo no leste da Europa.

Já em plena revolução portuguesa, o Grupo Katins se encontrava envolvido noutras provas de força com "a burocracia de Adlershof". Mesmo uma reportagem como a popular "O que pensam os cidadãos da Alemanha Federal sobre a RDA?" era alvo de obstrução. Concebida para comemorar em 7 de outubro de 1974 os êxitos da construção do socialismo nos 25 anos da RDA, e destinada ela própria a ser um grande sucesso de audiências, a reportagem só pôde ser emitida depois de, segundo Matthias Steinle, “a real cabeça do grupo de trabalho, Franz Dötterl, ter apelado ‘ao mais alto nível’ e ter conseguido o acordo de Honecker”.

Nos anos seguintes, as tensões agravaram-se, o "Grupo Katins" foi reorganizado como redacção de Alltag im Westen (Quotidiano no Ocidente), igualmente liderada por Katins, mas em 1978 também esta começaria a ser posta em causa.

Por um lado, alguma heterodoxia formal na realização dos documentários mantivera sempre o Grupo Katins e a redação sua sucessora debaixo do olhar perscrutante e desconfiado da "burocracia de Adlershof" (na foto: estúdios de televisão de Adlershof). Por outro lado, a normalização de relações da RDA com boa parte do mundo capitalista tinha tornado menos necessários os técnicos estrangeiros, agora facilmente substituíveis por alemães orientais com acesso a vistos nos seus passaportes (Prase, 220).

Mantinha-se a necessidade dos bons ofícios de Franz Dötterl para a aquisição de equipamentos sujeitos a embargo, mas, à medida que ia afrouxando a quarentena diplomática e comercial imposta à RDA, já nem essa era suficiente para lhe garantir inteiramente o anterior estatuto especial.

A RTP teve acesso à extensa documentação da Stasi sobre a vigilância que, a partir daí, foi exercida sobre a equipa, deu-a a conhecer ao historiador do cinema Matthias Steinle e pediu-lhe um depoimento sobre ela. Steinle considera que a documentação mostra uma marcação cerrada, que é feita neste caso sobre comunistas convictos e não sobre dissidentes que fossem a priori hostis ao regime leste-alemão.
Os motivos para a marcação não têm que ver com algum erro ou desvio que fosse imputado ao grupo, e sim com o que era visto como uma excessiva independência. Tudo começou então a ser controlado e tudo, inclusivamente detalhes como a marca das canetas que usavam, começou a ser visto como possível sintoma de contaminação por uma mentalidade demasiado ocidental.


O Grupo Katins coexistiu ainda durante algum tempo com a redacção de Alltag im Westen e em 5 de janeiro de 1978 a sua composição era ainda referida, nos arquivos da Stasi, como incluindo 21 pessoas. Mas já no início de fevereiro surge uma referência a vários filmes de Sabine Katins que ficaram por emitir, "por motivos políticos".

Sabine Katins e Franz Dötterl tinham entretanto subscrito com um total de cinco membros do grupo uma carta pondo em causa a direcção da televisão leste-alemã e em especial a pessoa de Heinz Adameck (na foto). Segundo Katins na entrevista a Prase, Dötterl tinha a aspiração de revolucionar os métodos da televisão da RDA e, com o tempo, das televisões do bloco de Leste.

Katins foi convocada por Werner Lamberz que a criticou por terem posto em causa a direcção da televisão de uma forma "nunca vista". A reunião foi inconclusiva e Katins descreve-a como decepcionante. Lamberz, apesar da fama que tinha de reformador, não tencionava mudar nada de essencial.

Em 2 de março, a emissão do filme Wenn es vor dem Frühstück klingelt (Quando tocam à campainha antes do pequeno almoço), marcada para 23 desse mês, seria adiada. Depois, ao ser finalmente emitido, uma crítica favorável publicada no diário Berliner Zeitung pareceu desautorizar o adiamento. Com efeito, a autora da crítica era Gisela Hermann, a cônjuge do candidato ao Politburo Joachim Hermann (curiosamente um ultra-ortodoxo, que outros membros do partido designavam como “boneco do ventríloquo Honecker”).

Um novo adiamento verificou-se algumas semanas depois, e desta vez com a emissão, marcada para 25 de abril, de um novo filme sobre Portugal, que suscitaria novo apelo de Dötterl às instâncias dirigentes do partido.

Mas, entretanto, a dupla Katins-Dötterl perdera a relativa protecção que tinha ao mais alto nível, com a morte de Lamberz (à esquerda na foto, com Honecker), num acidente aéreo ocorrido na Líbia em 6 de março.
O Departamento XX da Stasi passou a seguir atentamente as movimentações de ambos. Algumas dessas movimentações eram viagens a Portugal: a Stasi referia que Dötterl viera a Portugal em 16 de fevereiro e regressara a Berlim em 1 de março, pouco antes da morte de Lamberz.
Rüdiger Steinmetz lembra que, ao morrer Werner Lamberz, ele foi substituído pelo já citado Joachim Hermann, que não só tinha menos tolerância para com as originalidades do Grupo Katins, como avaliava de forma mais severa os seus custos elevados. Os jornalistas ocidentais da equipa saíam muito caros, gozavam de privilégios em relação aos colegas da RDA e sofriam do isolamento correspondente. Eram pessoas que tinham hábitos de vida e de consumo diferentes e custavam muito dinheiro. Estavam rodeados por uma aura de mistério, viviam isolados dos jornalistas da televisão da RDA e eram tema frequente de boatos.


Steinmetz cita também o seu co-autor Tilo Prase a respeito dos motivos para o declínio do Grupo Katins. Ele lembra que Dötterl tinha acesso às instâncias superiores do partido e que isso lhe incutiu uma auto-confiança excessiva e uma atitude abertamente crítica, que depois lhe foi fatal.

No princípio de maio, Dötterl e Katins voltaram a estar em Portugal e disso dava conta um relatório da mesma Stasi logo no dia 12, acrescentando que a viagem foi feita sem o conhecimento da direcção da televisão e que uma nova viagem estava prevista em junho, à Suíça, onde tencionavam reunir-se com todos os grupos de filmagem que ambos tinham em actividade no estrangeiro.

Em 14 de agosto, novo relatório da Stasi referia que Dötterl e Katins procuraram um aparelho de escuta em espaços que utilizavam habitualmente. Pela sua mudança de comportamento (ou seja, por se limitarem daí em diante a conversas inócuas), pareciam tê-lo encontrado. E observava também que cada novo elemento do grupo era testado, para verificar se tinha algumas "ligações à Segurança".

Em 13 de dezembro de 1978, a Stasi mostrava-se inquieta com uma conferência de imprensa que Dötterl convocara em Bona, focada nas perseguições que tinha sofrido na Alemanha ocidental e em França, mas obviamente destinada a reforçar também a sua posição nos confrontos com a "burocracia de Adlershof". Dötterl não podia, contudo, ser impedido de realizar a conferência de imprensa, que contou com a presença de vários jornais e agências noticiosas comunistas: L’Humanité, Tass, Pravda, entre outros, todos depois a fazerem-se eco do evento em termos favoráveis.


Portugal, último reduto da autonomia do grupo

Outra relação de Dötterl e Katins que inquietava o SED era com o partido português. Um dos motivos de inquietação era certamente o entusiasmo que o trabalho do grupo suscitava entre os dirigentes do PCP. Álvaro Cunhal referiu-se a ele em 1977, dizendo que se lhe devia “uma das mais extraordinárias documentações fílmicas sobre a revolução portuguesa”.

Dias Lourenço (na foto, ao centro, com Dötterl e outra pessoa não identificada) foi ainda mais longe, dizendo que "a verdade da revolução e do nosso povo libertado vê-se nas imagens recolhidas pelo Grupo Katins. Na sua grande precisão e força reconhecem-se o rigor do historiador e a emoção do artista, apoiadas por notável cuidado técnico". Apesar do ambiente de cortar à faca que entretanto se tinha criado em torno do grupo, ambas as declarações dos dirigentes comunistas portugueses continuavam a ter eco na imprensa leste alemã, por exemplo no diário junge Welt de 19 de agosto de 1978.
Em 14 de março de 1979, o responsável partidário em Adlershof emitia um documento que, começando por admitir a utilidade do trabalho de Dötterl, em especial na sua "intensa relação" com a direcção do PCP, logo passava a queixar-se pela forma não orgânica, não autorizada pelas instâncias do SED, que vinha caracterizando os apoios prestados ao “partido irmão” em Portugal.

Referia, em especial, que Dötterl se deslocara a Portugal em 12 de fevereiro para organizar um arquivo de filmes para o PCP, e que havia uma carta de Cunhal (na foto, em reunião com Dötterl) para Honecker confirmando este propósito da visita. Mas considerava necessário disciplinar a dupla Dötterl-Katins e opinava que uma condecoração a atribuir à realizadora no próximo 1º de maio deveria ser cancelada, por esta estar, “aos olhos dos camaradas que vivem o dia-a-dia, tão comprometida [com as irregularidades disciplinares] como F.D.”.


Em 26 de março, novo relatório da Stasi compensava a referência favorável a Dötterl na carta de Cunhal, referindo a existência de queixas contra ele por parte da direcção do PCP, alegadamente pelo efeito corruptor que teria entre a militância do partido a sua prática de distribuir presentes valiosos. E dava conta do plano de dispersar os membros do Grupo Katins por outros departamentos da televisão, explicando esse plano com o facto de estarem todos “mais ou menos corrompidos”.

Por seu lado, a dupla Dötterl-Katins não se dava por vencida. Em 16 de abril, Katins enviava uma carta a Walter Heinz, da direcção de Adlershof, lembrando que as imagens e sons recolhidos em Portugal para a realização de dois filmes não pertenciam à televisão da RDA, que nada pagou dos seus custos, e sim à agência Nordreporter.

Aí lembrava também que o filme “As crianças de Camarate” estava a ser produzido para as comemorações da ONU sobre o ano internacional da criança e o filme “Os jovens pioneiros de Portugal” estava a ser produzido para o PCP.

Algum tempo depois, Dötterl e Katins dobravam ainda a parada e, em carta de 6 de junho assinada por ambos, insistiam em que o nome de Dötterl aparecesse como regie de câmaras e produção na ficha técnica do filme "Andere über uns" ("Outros sobre nós"). Se não houvesse resposta no prazo de 14 dias, acrescentavam, não autorizariam a reprodução do filme, tanto mais que a televisão até então nada pagara dos seus custos.

Enquanto se agudizava a tensão com as autoridades leste-alemãs, o que restava do Grupo Katins mantinha, ainda durante algum tempo, uma activa colaboração com o PCP. Para Matthias Steinle, essa colaboração explica-se em parte pelo lugar central que a revolução portuguesa ocupara na história do grupo e na biografia dos seus principais elementos, mas também na instrumentalidade que depois passou a ter a relação com o PCP como "lugar de refúgio".


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