Desde a última vez que os cidadãos europeus foram a votos para o Parlamento Europeu muito mudou. Em 2020, surgiu uma pandemia que afetou a Europa e o mundo, com impactos sociais, económicos e até políticos. No rescaldo da covid-19, em fevereiro de 2022, a Rússia deu início à sua chamada “operação militar especial” na Ucrânia, aumentando as tensões entre Bruxelas e Moscovo e agravando a situação económico-social de muitos países da UE. E em outubro passado, o conflito israelo-palestiniano escalou aumentando também as tensões no Médio Oriente.
“Estas guerras são sequelas dos conflitos [já existentes], tomaram uma forma muito mais direta e dramática”, diz-nos Sandra Fernandes, professora e investigadora na Universidade do Minho.
De acordo com a especialista em Relações Internacionais e Ciência Política, “a geopolítica entrou no quotidiano dos cidadãos” nestes últimos dois anos.“Já nada é lá longe. A Ucrânia era longe. Israel era
longe. E de repente percebemos o quão interdependentes somos e o
impacto da geopolítica na economia e no dia a dia dos cidadãos”.
Em Portugal, por exemplo, “há um grande apoio, uma grande mobilização em torno da causa ucraniana” e a recente visita de Volodymyr Zelensky a Lisboa “mostrou isso”.
“De facto, hoje tudo é geopolítica”, sublinhou a investigadora, acrescentando que, atualmente, “há uma maior sensibilidade às agendas externas, nomeadamente em termos de conflitos mas não só”, como a necessidade de reinventar a relação com a China ou os Estados Unidos, que “é fundamental, porque somos Estados-membros da NATO”.
A segurança dos Estados-membros, como Portugal, “é muito perspetivada na relação transatlântica e a Guerra na Ucrânia mostra a necessidade de continuarmos numa relação muito próxima com os Estados Unidos se quisermos ajudar os ucranianos a não serem derrotados pela Rússia”.
Impacto nos eleitores portugueses
No contexto nacional, Sandra Fernandes considera que a invasão russa na Ucrânia, ou mesmo o conflito no Médio Oriente, não terão um grande impacto na hora de votar nos representantes portugueses para o Parlamento Europeu. Contudo, e baseando-se em dados divulgados em sondagens, advertiu para o risco do “crescimento dos extremos - dos radicais e em particular da extrema-direita”.
“Há consciência disso, mas não sei até que ponto, a nível eleitoral, vai influenciar em Portugal o que nos dizem as agendas externas”, principalmente porque “temos um contexto muito particular”.
“Tivemos agora eleições, temos um Governo minoritário (…) e as questões internas imperam muito nesse tipo de agendas”, justificou.
Além disso, na opinião da professora universitária quando as tudo corre bem no país “é porque o Governo e as instituições trabalharam bem”. Mas “se corre mal a culpa é de Bruxelas”.
“E acho que isso ainda se sente muito em termos da gestão das agendas” no contexto português, sublinhou.“O impacto existe. As pessoas têm uma forte
consciencialização, até porque foram afetadas pela inflação, o aumento
do custo de vida, e isso teve um grande impacto para os portugueses”.
Além do mais, há cada vez uma consciência maior para a necessidade de que “o nosso orçamento em Defesa tem de aumentar, não só na ajuda direta à Ucrânia mas também na nossa capacitação e no nosso contributo para que, de facto, possa surgir uma verdadeira defesa europeia, no seu todo”.
Há ainda outra questão, na opinião da especialista: momento de escolher o candidato às Europeias, os portugueses “preocupam-se com as questões sociais”.“Nós somos um país de emigração. Perdemos mais
população do que recebemos. Os números são comparáveis aos picos que
existiram nos anos 60 em Portugal. (…) Isso, obviamente, é algo que
preocupa a nossa população, os nossos jovens e penso que esta questão é
muito importante no momento de escolher um partido”.
“Agora temos uma situação política nova em Portugal”, continuou, referindo o crescimento parlamentar do Chega. “É uma incógnita (…) e temos de perceber até que ponto é que isto se vai refletir na Europa, a nível do Parlamento Europeu”.
Conflito no Médio Oriente
A Guerra na Ucrânia é quase um tema constante na agenda política e nas campanhas para as eleições tanto legislativas como europeias. Mas o conflito no Médio Oriente, a questão israelita e o reconhecimento do Estado da Palestina têm gerado mais polarização.
Em Portugal, “a realidade da polarização em torno da questão israelo-palestiniana não atinge tanto o nosso nível partidário”, comparativamente ao que acontece noutros países, reconhece Sandra Fernandes.“Não é algo que vai, de facto, fracionar os grandes
partidos, os partidos do centro. Claro que há posicionamentos mais nos
extremos, mas não me parece que haja aqui uma verdadeira agenda política
em termos de campanha eleitoral à volta do tema de Israel. Não em
Portugal”.
No final de maio passado, Espanha anunciou que reconhecia o Estado da Palestina. Já Portugal faz parte do pequeno grupo de países que ainda não se pronunciou sobre essa questão.
“Temos, neste momento, cerca de 75 por cento dos países no mundo inteiro a reconhecer o Estado da Palestina. Portanto, neste momento, nós fazemos parte de um pequeno grupo (…) dos reticentes em relação a esse reconhecimento”, afirmou a especialista em geopolítica.
“Portugal situa-se, de facto, numa ala a nível internacional cada vez mais minoritária”, acrescentou, frisando que “nem o Parlamento Europeu, nem a União Europeia vai reconhecer, nem tem esse poder”.
Não é no Parlamento Europeu, nem serão os eurodeputados que vão debater a questão israelo-palestiniana. Por isso, a investigadora considera que esta não será “uma questão central na escolha das listas” e dos candidatos às europeias.
Interferência russa e desinformação
A interferência estrangeira nas eleições tem sido um dos temas mais debatidos, mas com a aproximação das Europeias, tem sido mais recorrente a divulgação desses casos. Segundo o Observatório Europeu dos Meios de Comunicação Digitais, a Rússia está a tentar destabilizar a Europa e as eleições para o Parlamento Europeu.
A tentativa de interferência russa não é uma novidade, mas a guerra na Ucrânia, que começou em 2022, é um fator que pode influenciar estas eleições.
De acordo com o observatório, a quatro semanas das eleições europeias já tinham sido identificados muitos exemplos públicos de interferência estrangeira liderada pela Rússia - desde a interferência de sinais de GPS, a subornos pró-Kremlin a políticos em Bruxelas e um site falso a pedir aos soldados franceses para se alistarem na invasão ucraniana em curso.
E, na semana passada, novas suspeitas de interferência russa nestas eleições conduziram as autoridades belgas a fazerem buscas na residência e no escritório de um funcionário do Parlamento Europeu com ligações à extrema-direita.
“As buscas fazem parte de um caso de interferência, corrupção passiva e adesão a uma organização criminosa e estão relacionadas com indícios de interferência russa, através da qual membros do Parlamento Europeu foram abordados e pagos para promover a propaganda russa através do site de notícias Voz da Europa”, lia-se num comunicado do Ministério Público Federal.
No centro da investigação estará Guillaume Pradoura, antigo assessor de Maximilian Krah, que era até há pouco tempo cabeça de lista da Alternativa para a Alemanha (AfD) e que teve de se demitir depois de polémicas declarações sobre as SS. Pradoura estava, atualmente, ao serviço de Marcel de Graaff, eurodeputado do partido neerlandês de extrema-direita Fórum para a Democracia.
De acordo com o Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE), interferência estrangeira é um padrão de comportamento manipulador e coordenado por parte de Estados ou atores não estatais que "ameaça ou tem o potencial de afetar negativamente valores, procedimentos e processos políticos". Embora sempre tenha existido, é classificada atualmente como uma "ameaça em rápida expansão" para o bloco comunitário e a segurança internacional na estratégia do SEAE para 2030.
O SEAE, o organismo europeu que coordena a resposta à interferência estrangeira do Kremlin com a NATO e os Estados-Membros, criou em 2015 um grupo de trabalho East StratCom que iria expor os ataques à UE através da "sensibilização" para a desinformação pró-Kremlin. Uma parte fundamental desse grupo é a base de dados EUvsDisinfo - uma compilação de mais de 16.500 casos de interferência estrangeira russa ou campanhas de desinformação.
Este organismo está também a trabalhar com um Sistema de Alerta Rápido (RAS) que permite às instituições coordenar e partilhar informações sobre a interferência estrangeira e a desinformação.
A interferência externa russa nos processos eleitorais, recorda Sandra Fernandes, “já é catalogada na ‘Guerra Hibrida’, como a falada ‘desinformação’ ou interferência direta, como no Brexit ou na eleição de Trump”.
“É uma dimensão que pode acontecer”, reconhece a investigadora da Universidade do Minho. “Mas é uma dimensão que tem de ser combatida, obviamente, com meios técnicos”.“A Guerra Híbrida é muito insidiosa. A desinformação baseia-se num
conceito muito simples: na dúvida. A informação pode ser falsa, mas a
partir do momento em que a dúvida está levantada o mal está feito”.
Já de acordo com o Observatório Europeu dos Meios de Comunicação Digitais, as eleições legislativas dos Estados-membros da UE, que têm marcado este ano de 2024, e as Europeias são relevantes para a situação internacional, considerando os conflitos atuais. Principalmente porque serão como um barómetro para a evolução dos extremos, especialmente à direita, antevendo-se que os três grandes partidos do sistema – Popular Europeu, Socialistas e Liberais – sejam limitados na sua representação.
Sobre a interferência externa russa não se trata só de uma “manipulação direta usando as redes sociais, os hackers, os blogs”, é também, segundo a especialista, “uma dimensão mais profunda que mexe muito com os media”.
“Esta dimensão é fundamental nas Eleições Europeias, sobretudo nos países em que a extrema-direita já tem muita expressão parlamentar”, argumentou.
No entanto, a extrema-direita “é muito díspar” na Europa.“A Rússia é um país com muita experiência - de décadas e desde a época
soviética - na propaganda e na desinformação. Portanto, a democracia tem
essas fragilidades, uma vez que é um espaço de debate e de circulação
de informação. Por isso, [a Rússia] aproveita essas fragilidades”.
Dando o exemplo da Eslováquia, Sandra Fernandes explicou que este é um país que tem um novo Governo e com uma “inflexão mais ao estilo” pró-russa. A lei mais polémica deste executivo eslovaco é a que visa “fechar a televisão pública, abrir um novo media público, sob o pretexto de que o anterior era ‘enfezado’”.
“Na verdade é um controlo da informação, em plena União Europeia”, aponta.
“Se isso acontece num Estado-membro da União Europeia, que é possível pela via legal (…), percebemos que a Rússia está presente, tem pontas-de-ferro dentro da própria União Europeia. (…) A vários níveis: por vezes a nível dos governos, outras vezes mais a nível partidário e outras de forma mais insidiosa. É uma ameaça à democracia, a Rússia”.O panorama internacional em que decorrem estas Eleições Europeias é diferente do que se verificava em 2019, a última vez que os eleitores europeus votaram para o Parlamento Europeu. A Guerra na Ucrânia e o conflito no Médio Oriente são temas de debate entre candidatos, presentes nas campanhas e na agenda política da União Europeia, mas podem não ter o mesmo peso na hora de escolher os eurodeputados.
“Um assunto está muito mais nas mãos da União Europeia do que outro”, considerou Sandra Fernandes. “Israel está muito pouco nas mãos da União Europeia. A Ucrânia está nas mãos da União Europeia".
A Ucrânia, na ótica da investigadora, "fez um milagre em termos de unidade da Europa".
O orçamento para as ações externas da UE, "antes de a guerra começar, estava perto dos 6 milhões de euros, hoje está nos 17 milhões de euros. Isso foi Ucrânia”.
“A Ucrânia é um assunto que é gerido e tem que ser gerido em Bruxelas. Israel não", reforçou. "Aliás, penso que a União Europeia tem tido um papel diplomático muito menor na questão israelita”.
“Ucrânia é agenda, poder e competência de Bruxelas. Israel não”, concluiu.
Conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente em pano de fundo das Europeias
Os europeus estão a dias de voltar às urnas para eleger os seus representantes no Parlamento Europeu. Mas desde as últimas Eleições Europeias, que aconteceram em 2019, a Europa tem enfrentado períodos marcados por crises sociais, tensão geopolítica e instabilidade económica, cenários que se têm intensificado desde a pandemia da covid-19. A somar a este cenário, os eleitores da União Europeia vão agora a votos com dois conflitos como pano de fundo. A questão que se impõe é como é que a invasão russa na Ucrânia e a guerra no Médio Oriente podem influenciar o voto dos europeus, o crescimento dos extremos políticos e o papel dos eurodeputados em Bruxelas.
por Inês Moreira Santos - RTP