Ao abortar o golpe spinolista de 11 de março, fugiram para Espanha vários militares envolvidos. Quatro oficiais da GNR não conseguiram fazê-lo e acolheram-se à protecção da Embaixada alemã. Quarenta e cinco anos depois, a RTP consultou os documentos da Embaixada sobre o episódio e encontrou alguma informação inédita.
A meio da tarde de 11 de Março, um blindado transportando o general Freire Damião e três outros oficiais da GNR passou em frente da Embaixada italiana. Os ocupantes do veículo consideraram brevemente se era aí que lhes convinha pedir guarida. Rapidamente concluíram que o refúgio seria pouco seguro.
Com o general Damião, estavam três outros oficiais da GNR: o tenente-coronel Fernando Xavier de Brito, o major João António Garoupa e o tenente José Alberto Barros.
Não muito longe, encontrava-se a Embaixada da República Federal da Alemanha que, apesar de tudo, deveria impor mais respeito às multidões empenhadas em neutralizar os últimos focos do golpe. Bateram, portanto, à porta da Embaixada alemã e foram acolhidos. Do relato não consta o que fizeram do blindado.
À Embaixada, o pedido de refúgio colocava alguns problemas delicados. O Governo de Bona estava descontente com a excessiva passividade da diplomacia europeia face à Revolução dos Cravos (vd. documento). Pretendia influenciar a CEE no sentido de uma atitude mais dinâmica.
Enquanto as diligências nesse sentido não produzissem efeitos, o Governo de Bona ia tomando as suas próprias iniciativas. Insistia com a Embaixada para que elaborasse listas de personalidades, especialmente militares, a convidar para visitas à Alemanha. Tratava de coordenar a sua intervenção com a das fundações partidárias, desde logo com a Fundação Ebert. E, principalmente, encorajava a intensa colaboração de Fritz Caspari, o embaixador alemão, com o seu homólogo norte-americano, Frank Carlucci. Ambos tinham em comum a convicção, contrária à de Henry Kissinger, de que uma receita inspirada no Chile de Pinochet, ou no bloqueio a Cuba, não daria resultado em Portugal. E ambos apostavam, por isso, em derrotar a revolução com uma táctica que passasse necessariamente pelas eleições.
Mesmo assim, a Embaixada alemã mantinha contactos em todos os quadrantes político-militares e, em vésperas do golpe spinolista de 11 de Março, estava perfeitamente informada sobre a conspiração e até sobre quais as unidades militares previstas na ordem de operações. Por acaso ou por azar, no dia e à hora do golpe, desembarcava no aeroporto da Portela o secretário de Estado alemão, mais tarde ministro de Estado, Karl Moersch, do partido liberal (FDP). Alojou-se na Embaixada nas horas de incerteza e lá ficou ao longo de toda a crise dos refugiados. Mas não há qualquer registo de intervenção sua nessa questão candente.
Seja como for, quanto mais a Embaixada tinha sabido antes do golpe, mais ignorância precisava de afectar depois. A última coisa que a Embaixada queria, no dia da derrota, era dar a aparência de ter combinado previamente com os golpistas que iria abrigá-los em caso de fracasso.
Negociações com Costa GomesO acolhimento dos quatro oficiais teve, por isso, de ser imediatamente comunicado às autoridades portuguesas. Ao fazê-lo, a Embaixada transmitiu ao chefe da Casa Civil da Presidência, general Fontes Pereira de Melo, o pedido dos quatro refugiados: tal como Spínola, queriam partir para Espanha. E pretendiam que o Estado português lhes concedesse um salvo-conduto para poderem deixar as instalações da Embaixada e partirem a acolher-se sob a asa protectora do franquismo.
O presidente português, Costa Gomes, mandou dizer à Embaixada que iria reflectir sobre o pedido durante a noite e lhe daria uma resposta no dia seguinte. Acontece que o presidente passou a noite em claro e não pôde reflectir longamente sobre os quatro militares refugiados na Embaixada.
A noite de 11 para 12 de Março foi a da assembleia militar que decidiu destituir ou prender diversos golpistas, criar o Conselho da Revolução, constituir um novo governo, manter a data das eleições e nacionalizar grande parte da economia. Costa Gomes presidiu à assembleia, que só terminou de manhã.
Na explosiva situação do país, era impossível deixar sair para Espanha, em completa impunidade, mais quatro golpistas, entretanto já detectados no seu lugar de refúgio e cercados por centenas de manifestantes, como documentam as imagens do arquivo da RTP. O presidente mandou então comunicar à Embaixada uma categórica rejeição do pedido de salvo-conduto e a exigência de que os quatro golpistas fossem entregues às autoridades portuguesas.
Entrega dos quatro golpistas ao Exército português
A Embaixada ficava obrigada a encontrar rapidamente uma solução. Qualquer perda de tempo podia deitar a perder o trabalho de envolvimento e sedução política pacientemente levado a cabo até aí junto de militares portugueses. E podia, além disso, pôr em xeque a segurança da própria Embaixada.
Atestava-o um incidente ocorrido com o embaixador, à saída das instalações, tal como o relata a correspondência diplomática desse dia: travado por umas cinco centenas de manifestantes, o embaixador teve de deixá-los revistarem-lhe o carro. Ao protestar junto dos militares que guardavam a Embaixada, foi intimidado por estes, de arma apontada.
Apesar de depois ter levado o seu protesto ao Governo português (vd.documento), e de esse protesto ter ocasionado um pedido de desculpas, a Embaixada continuava a não confiar na capacidade das autoridades políticas e militares para controlarem possíveis explosões de violência popular (os próprios interlocutores portugueses iriam confessar-lhe, com desconcertante candura, que não podiam garantir que não voltassem a repetir-se incidentes destes, por já não poderem confiar nas tropas).
Durante todo o dia 12, a Embaixada dedicou-se portanto a convencer os quatro golpistas refugiados de que deveriam entregar-se “de livre vontade”. Pediu algumas garantias à Presidência portuguesa e foi prometendo aos inoportunos hóspedes que as suas famílias seriam autorizadas a partir para a Alemanha, que eles próprios manteriam os seus postos até serem julgados, que o seriam em tribunais regulares e não em tribunais de excepção.
Após várias horas de “lavagem ao cérebro” (ou, em tradução mais literal, “massagem da alma”), os quatro concordaram em entregar-se “de livre vontade”.
A atestar a pouca convicção com que os refugiados decidiram entregar-se, há ainda um recuo do general Freire Damião, no último instante, exigindo garantias de que a sua família já se encontrasse na Alemanha. Mais uma vez foram precisas laboriosas sessões de “massagem da alma” até que os quatro pudessem ser entregues.
Retrato do General António Freire Damião, patente na Galeria dos Antigos Comandantes-Gerais da GNR /Cortesia da Divisão de Comunicação e Relações Públicas da Guarda Nacional Republicana, DR.
Tiveram de ser retirados da Embaixada com protecção militar, em “chaimites” que os subtraíam à ira dos manifestantes ainda presentes no momento do desenlace. O embaixador, por seu turno, só pôde regressar da Presidência da República ao edifício da Embaixada dentro de uma "chaimite". O episódio tinha durado 27 horas, mas ia ter um epílogo longo de quase um ano.
O refúgio na Embaixada visto a partir de Bona
Em Bona, ao ter conhecimento de que os oficiais se refugiaram na Embaixada, o Governo Federal alemão enviara ao embaixador instruções para só os deixar sair em veículos diplomáticos, com um salvo-conduto que garantisse a sua partida em segurança para o estrangeiro. A Embaixada, como vimos, fizera ainda uma primeira diligência para obter o salvo-conduto, mas, confrontada com a recusa das autoridades portuguesas, logo deixara cair essa pretensão e logo se dedicara às tais sessões de “massagem da alma” sobre os quatro hóspedes indesejados.
Não há notícia de o Auswärtiges Amt (o MNE alemão) ter repreendido o embaixador por considerar excessiva a autonomia com que decidiu. Pelo contrário, o AA elaborou um documento recordando os princípios por que se rege a concessão de asilo diplomático e esclarecendo desde logo que nenhum convénio bilateral nem nenhum direito internacional permitia à Embaixada conceder asilo diplomático aos quatro oficiais golpistas. Apenas lhes podia ser concedido, acrescentava o documento, um refúgio temporário perante perigo julgado iminente para a sua segurança física. Para ajuizar da realidade desse perigo, concluía, ninguém melhor do que os diplomatas confrontados com a situação, que teriam por isso de decidir com certa autonomia.
Mas, no Parlamento Federal, o Governo de coligação com os liberais encabeçado pelo social-democrata Helmut Schmidt encontrava-se sem dúvida sob uma forte pressão da direita. Democratas-cristãos e social-cristãos fizeram-no passar um mau bocado em comissão parlamentar, sob uma barragem de perguntas e reparos por a Embaixada ter entregado os quatro refugiados.
Curiosamente, apesar desta alta protecção, os quatro permaneceram na prisão mais tempo do que a grande maioria dos implicados no 11 de Março. Os pedidos visando a sua libertação foram sendo recusados, com fundamento no risco de fuga para a Alemanha. Mesmo depois do 25 de Novembro, permaneceram ainda na prisão. No início de 1976, recuperaram enfim a liberdade e, entre as suas primeiras iniciativas, contou-se o envio de cartas ou a realização de visitas de agradecimento à Embaixada.
Globalmente, podemos concluir que a Embaixada alemã procedeu com autonomia face ao seu Governo e por vezes optou mesmo por ocultar-lhe detalhes da situação portuguesa. Previa que alguns desses detalhes fossem erradamente interpretados por quem observava de longe uma revolução, sem entender os constrangimentos que esta impunha no terreno. Decidiu, portanto, entregar os quatro refugiados obedecendo a uma dupla apreciação: sobre a segurança da Embaixada e sobre a política alemã em Portugal.
A parte que se refere à política a prosseguir em Portugal viu-se confirmada por um duplo sucesso. Primeiro, uma demasiado visível proximidade alemã aos golpistas teria certamente alienado as simpatias de personalidades civis e principalmente militares que a Embaixada se aplicava em captar. A rápida entrega dos golpistas impediu esse retrocesso.
Depois, um tratamento severo dos quatro oficiais entregues teria exposto a Embaixada e o Governo Federal a uma escalada de críticas da direita alemã e internacional. E também aí a Embaixada soube calcular os riscos: na noite de 11 de Março pediu ainda um salvo-conduto; na manhã seguinte, com informações frescas sobre a assembleia militar dessa noite, a Embaixada entendeu imediatamente que ela nada tivera de “selvagem”, e que entregar os quatro oficiais era mais seguro do que mantê-los no edifício da Embaixada - para si própria e até para os quatro hóspedes.
Apesar de, mais de quatro décadas depois, reemergir regularmente uma acesa discussão sobre as propostas de pena de morte, a Embaixada alemã entendeu em menos de 24 horas que os golpistas iam ser tratados com clemência. O Exército português ia proceder de forma muito diferente do Exército chileno. Ao contrário dos refugiados que fossem entregues, e não foram, em Santiago do Chile, os refugiados que o fossem, e foram, em Lisboa, não seriam torturados nem fuzilados.
Tiveram de ser retirados da Embaixada com protecção militar, em “chaimites” que os subtraíam à ira dos manifestantes ainda presentes no momento do desenlace. O embaixador, por seu turno, só pôde regressar da Presidência da República ao edifício da Embaixada dentro de uma "chaimite". O episódio tinha durado 27 horas, mas ia ter um epílogo longo de quase um ano.
O refúgio na Embaixada visto a partir de Bona
Em Bona, ao ter conhecimento de que os oficiais se refugiaram na Embaixada, o Governo Federal alemão enviara ao embaixador instruções para só os deixar sair em veículos diplomáticos, com um salvo-conduto que garantisse a sua partida em segurança para o estrangeiro. A Embaixada, como vimos, fizera ainda uma primeira diligência para obter o salvo-conduto, mas, confrontada com a recusa das autoridades portuguesas, logo deixara cair essa pretensão e logo se dedicara às tais sessões de “massagem da alma” sobre os quatro hóspedes indesejados.
Não há notícia de o Auswärtiges Amt (o MNE alemão) ter repreendido o embaixador por considerar excessiva a autonomia com que decidiu. Pelo contrário, o AA elaborou um documento recordando os princípios por que se rege a concessão de asilo diplomático e esclarecendo desde logo que nenhum convénio bilateral nem nenhum direito internacional permitia à Embaixada conceder asilo diplomático aos quatro oficiais golpistas. Apenas lhes podia ser concedido, acrescentava o documento, um refúgio temporário perante perigo julgado iminente para a sua segurança física. Para ajuizar da realidade desse perigo, concluía, ninguém melhor do que os diplomatas confrontados com a situação, que teriam por isso de decidir com certa autonomia.
Mas, no Parlamento Federal, o Governo de coligação com os liberais encabeçado pelo social-democrata Helmut Schmidt encontrava-se sem dúvida sob uma forte pressão da direita. Democratas-cristãos e social-cristãos fizeram-no passar um mau bocado em comissão parlamentar, sob uma barragem de perguntas e reparos por a Embaixada ter entregado os quatro refugiados.
Entre os argumentos, veio frequentemente à baila o precedente da Embaixada alemã em Santiago do Chile que, ano e meio antes, recusara entregar os seus refugiados à ditadura de Pinochet. Os deputados da direita entendiam que o mesmo critério deveria ter sido aplicado em Portugal.
A representação do Governo ficou, nesses debates parlamentares, a cargo do mesmo Karl Moersch que estivera em Lisboa nas horas decisivas do 11 de Março. Ele, que nos anos seguintes iria ganhar uma triste notoriedade como encobridor de crimes da ditadura militar argentina, esforçou-se ainda para explicar como a situação portuguesa era diferente da chilena.
Epílogo e conclusões
Ou por genuína preocupação com a sorte dos golpistas, ou por reflexo defensivo face às pressões da direita, ou por ambos os motivos, o Governo Federal esmerou-se em garantir que as famílias dos quatro golpistas da GNR fossem acolhidas na Alemanha e aí encontrassem um condigno apoio nos planos logístico e financeiro.
Apenas cinco membros da família de Freire Damião fizeram uso dessa hospitalidade, ficando durante alguns meses alojados no Land de Baden-Würtemberg. Os familiares dos outros três refugiados entenderam que a situação em Portugal era bastante segura para permanecerem no país.
Por seu lado, a Embaixada manteve contacto com os quatro golpistas detidos no presídio militar da Trafaria, visitando-os, trocando correspondência com eles e colocando à sua disposição um advogado que habitualmente lhe prestava serviços.
Manteve, além disso, um olhar atento sobre todas as implicações que o evoluir do processo revolucionário português pudesse ter para o julgamento dos oficiais em causa. Inquietou-se ocasionalmente com alguma referência do capitão Vasco Lourenço ou do primeiro-ministro Vasco Gonçalves à constituição de tribunais de excepção, mas em geral conservou a cabeça fria e continuou a confiar que o futuro confirmaria o bem fundado da sua decisão de entregar os refugiados.
Curiosamente, apesar desta alta protecção, os quatro permaneceram na prisão mais tempo do que a grande maioria dos implicados no 11 de Março. Os pedidos visando a sua libertação foram sendo recusados, com fundamento no risco de fuga para a Alemanha. Mesmo depois do 25 de Novembro, permaneceram ainda na prisão. No início de 1976, recuperaram enfim a liberdade e, entre as suas primeiras iniciativas, contou-se o envio de cartas ou a realização de visitas de agradecimento à Embaixada.
Globalmente, podemos concluir que a Embaixada alemã procedeu com autonomia face ao seu Governo e por vezes optou mesmo por ocultar-lhe detalhes da situação portuguesa. Previa que alguns desses detalhes fossem erradamente interpretados por quem observava de longe uma revolução, sem entender os constrangimentos que esta impunha no terreno. Decidiu, portanto, entregar os quatro refugiados obedecendo a uma dupla apreciação: sobre a segurança da Embaixada e sobre a política alemã em Portugal.
A parte que se refere à política a prosseguir em Portugal viu-se confirmada por um duplo sucesso. Primeiro, uma demasiado visível proximidade alemã aos golpistas teria certamente alienado as simpatias de personalidades civis e principalmente militares que a Embaixada se aplicava em captar. A rápida entrega dos golpistas impediu esse retrocesso.
Depois, um tratamento severo dos quatro oficiais entregues teria exposto a Embaixada e o Governo Federal a uma escalada de críticas da direita alemã e internacional. E também aí a Embaixada soube calcular os riscos: na noite de 11 de Março pediu ainda um salvo-conduto; na manhã seguinte, com informações frescas sobre a assembleia militar dessa noite, a Embaixada entendeu imediatamente que ela nada tivera de “selvagem”, e que entregar os quatro oficiais era mais seguro do que mantê-los no edifício da Embaixada - para si própria e até para os quatro hóspedes.
Apesar de, mais de quatro décadas depois, reemergir regularmente uma acesa discussão sobre as propostas de pena de morte, a Embaixada alemã entendeu em menos de 24 horas que os golpistas iam ser tratados com clemência. O Exército português ia proceder de forma muito diferente do Exército chileno. Ao contrário dos refugiados que fossem entregues, e não foram, em Santiago do Chile, os refugiados que o fossem, e foram, em Lisboa, não seriam torturados nem fuzilados.