Como a Revolução dos Cravos fez de Portugal um tema prioritário para a RDA

por António Louçã, Sofia Leite - RTP
Claude Paccaud

O empenhamento da RDA em acompanhar a revolução portuguesa, minuto a minuto, ao nível da informação diária, e numa perspectiva mais ampla ao nível do documentário, traduzia a importância que o processo revolucionário adquiriu para a política externa da "outra Alemanha", a Alemanha do Leste.

Segundo Frank Bösch, historiador da Universidade de Potsdam, a RDA movia-se entre a obediência às linhas gerais da política externa soviética e um impulso próprio, de procurar uma certa margem de autonomia. 

Por isso a RDA manteve relações com outros países do campo socialista quando a URSS já tinha abandonado irrevogavelmente essas relações, como foi o caso da China, ou valorizou outras quando elas ainda eram para a URSS muito mais problemáticas, como foi o caso de Cuba. Por isso também, a RDA empenhou-se de forma particular no apoio aos movimentos de libertação em Moçambique e Angola. E por isso também a RDA manteve relações com certas ditaduras de direita.

Não deverá portanto surpreender-nos que a irrupção do processo revolucionário em Portugal tenha suscitado na RDA a esperança de uma aproximação com este país até aí algo negligenciado na imprensa leste-alemã, especialmente por essa esperança ter surgido quando ainda não se tinha dissipado inteiramente o trauma causado pelo golpe de Pinochet.

O tipo de relações estabelecido com Portugal deve ser visto no contexto de uma alteração ocorrida durante os anos 1970. Ao passo que na década anterior a RDA mantinha relações com os chamados países socialistas e a RFA as mantinha com o mundo capitalista, a partir de 1973 as duas Alemanhas estão na ONU, procurando diversificar as suas relações - a RDA estabelecendo-as também com países capitalistas e a RFA ganhando alguma margem de autonomia relativamente à política externa dos EUA.

Segundo Frank Bösch, as imagens chegadas de Portugal, mostrando a euforia popular com o derrubamento da ditadura, eram "ambivalentes". Se, por um lado, podiam ser vistas como uma vitória do campo socialista e antifascista, por outro eram imagens de um grande levantamento de massas, que necessariamente suscitavam apreensão, como mais tarde haviam de suscitá-la as imagens do sindicato polaco Solidarnosc.
Rüdiger Steinmetz admite também que a direcção do partido tivesse sentimentos contraditórios sobre uma revolta das massas em regime capitalista, por um lado congratulando-se com o facto, mas por outro desenvolvendo "um pouco de medo visionário de que este sistema também pudesse ser vítima de uma revolução pacífica".

Para Steinmetz, é possível que a denominação de "Primavera portuguesa" não agradasse aos escalões superiores do SED, pelas reminiscências que evocava da Primavera de Praga, mas não se deve inferir daí que Sabine Katins tivesse uma atitude dissidente.

As duas partes do documentário "Primavera portuguesa", cada qual com cerca de uma hora, foram emitidas em horário nobre. Outros trabalhos da equipa de Katins tinham formatos mais pequenos, a rondar os 30 minutos, sobre temas do quotidiano oeste-alemão: as violações de direitos humanos sob o capitalismo, o desemprego, as drogas.
Genericamente, a RDA apostou muito nas relações com Portugal e abriu uma embaixada em instalações provisórias logo que se estabeleceram relações diplomáticas. A embaixada começou por funcionar em três andares alugados num prédio da Avenida de Berna, mas logo tratou de comprar um prédio de nove andares no alto da Alameda Afonso Henriques, por cima da Fonte Luminosa.

Gert Peucktert, chegado a Lisboa em setembro de 1975, vinha fazer um estágio de quatro meses para o que foi a sua carreira de diplomata da RDA. Uma das pessoas que encontrou na viagem foi Ary dos Santos, que lhe passou uma carta de recomendação muito útil no sucessivoAo chegar, foi para a Embaixada, que ainda ficava na Avenida de Berna. 

As suas primeiras recordações são do verão quente de 1975 e, depois, o 25 de novembro, com aviões voando a baixa altitude, que lhe recordavam as descrições da Segunda Guerra Mundial. apesar da tensão existente e da apreensão sobre a iminência de uma possível guerra civil, o ambiente era de euforia e o pessoal da Embaixada era contagiado. Segundo Peuckert nunca mais, em toda a sua vida, voltou a viver dias exaltantes como esses do Portugal de 1975. Até hoje, conserva fotografias do tempo da revolução - o cinema Império, a libertação dos presos políticos em Caxias, a avenida Almirante Reis.
Em janeiro de 1976, a Embaixada comprou um edifício de nove andares no alto da Alameda Afonso Henriques. A aquisição  mostra a importância que o governo da RDA atribuía às relações com Portugal. O pessoal da Embaixada invejava um pouco os jornalistas, porque tinha sempre de justificar as suas entradas e saídas do edifício da "Casa Azul", no alto da Alameda. Os jornalistas podiam viver em qualquer parte da cidade.
Havia ainda um andar nas Avenidas Novas que servia como escritório central dos vários órgãos da imprensa leste-alemã presentes em Portugal e, mais tarde, um andar na Praça José Fontana que funcionou como sede a Associação de Amizade Portugal-RDA. Tudo isto traduzia um esforço invulgar para um Estado conhecido pela sua crónica penúria de divisas.

Peuckert recordou em entrevista à RTP que na FDJ – a organização juvenil do partido do Governo, SED – a situação em Portugal era frequentemente discutida e que os filmes chegados de Portugal eram alvo de curiosidade e muito debatidos pelo público. A partir do Verão de 1975, ele acompanhou a informação diária da televisão da RDA, dirigida por Manfred Pohl, e recorda os comentários que outros correspondentes da Europa de Leste lhe faziam, reconhecendo que a televisão alemã era a mais atenta e produtiva de todas.

Steinmetz era na altura estudante em Göttingen e viajou com outros jovens para Portugal, por duas vezes seguidas. Ele recorda os acontecimentos da revolução portuguesa, e mesmo os seus ecos posteriores em 1976 e 1977, como inspiradores para um juventude situada à esquerda no espectro político e que descobrira com este processo uma realidade insuspeitada na Europa.


Thomas Weissmann, investigador na Universidade de Chemnitz, relaciona o fascínio da imprensa alemã por Portugal com o facto de "aqui se poder contar uma bonita história ideológica", encontrando nela a confirmação de temas caros à propaganda leste alemã: um partido que se sacrifica na luta contra o fascismo e que depois combate os contra-revolucionários para impedir a restauração fascista, tal como foi preciso fazer na RDA.
Para Weissmann, o valor de Portugal para a propaganda leste-alemã situa-se também no seu significado como luta antifascista bem sucedida. Os cravos já tinham sido um símbolo na campanha pela libertação de Angela Davis, nos EUA. Quando esta, depois de ser libertada, visitou a RDA em 1973, as crianças enviadas para recebê-la levavam cada uma o seu cravo. A irrupção, em Portugal, de uma Revolução dos Cravos permitiu reactivar esse simbolismo.


Por outro lado, a importância de Portugal também tem que ver com o apoio concedido pela Alemanha Federal à ditadura fascista e pelo apoio da RDA às lutas de libertação das colónias. Inversamente, o PCP, ao entrar para o Governo após o 25 de Abril, também podia encontrar utilidade no exemplo da RDA, como Estado alemão antifascista.
Weissmann lembra o cinejornal produzido pela DEFA, e que era sempre apresentado no cinema no início de cada sessão de cinema. Em 1975, houve um cinejornal sobre Portugal, em que o jornalista Klaus Steiniger desenvolveu largamente o tema do PCP e dos sacrifícios que fizera para defender os interesses do povo.

A "batalha no éter" era assimétrica, porque a televisão da Alemanha Federal era muito seguida pelo público leste alemão, ao passo que a televisão da RDA raramente era vista no ocidente.
Victor Grossman recorda, como leitor da imprensa leste-alemã e telespectador, a grande atenção com que os media acompanhavam o processo revolucionário português. Também para isso contribuiu o trauma do golpe chileno, ocorrido poucos meses antes. Ele próprio acompanhava os acontecimentos com grande alegria e, ao mesmo tempo com preocupação, pela ingerência de potências apostadas em fazer fracassar a revolução portuguesa.


Grossman tinha participado em organizações comunistas nos EUA e, quando estava a fazer o serviço militar na Baviera, foi intimado a voltar aos EUA para responder por isso. Atravessou então a fronteira para a Áustria, atirou-se ao Danúbio e nadou até ao sector do território austríaco sob controlo do Exército Vermelho. Daí, enviaram-no para a Alemanha oriental, onde passou a viver.

Compara a sua fuga a nado com a de Dias Lourenço, dizendo que a do comunista português foi muito mais difícil do que a dele e foi, verdadeiramente, uma fuga para a liberdade. No seu caso, pensava que ia ser preso, mas provavelmente, considera hoje, era um receio infundado. Havia, em todo o caso, um propósito comum entre ambos, de fugir a nado para a liberdade.

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