José Manuel Ribeiro - Reuters

Cavaco Silva, 40 anos de um "não político" na política

Apresenta-se como um homem que se encontrou na política. Uma participação que nunca teria desejado, apesar de se ter tornado uma das principais personalidades do país nas últimas décadas. Político ou não, o facto é que Aníbal António Cavaco Silva está na política há quase 40 anos. Agora que se avizinha a despedida, recuperamos o percurso.

Tudo parece ter acontecido por acaso. Cavaco chega a chamar-lhe “fado” ou “destino”. Maria Cavaco Silva prefere falar de uma vida marcada por uma "mudança de planos".

O que é factual é que o Presidente cessante soma dez anos em São Bento e dez anos em Belém, sendo das personalidades que mais tempo passou no poder.

Mesmo depois de dez anos à frente do Executivo, Aníbal continuava a ver-se como um “não político”. Manterá esta visão depois de uma década em Belém?

A resposta poderá figurar no muito provável terceiro volume da autobiografia de Cavaco Silva. Nos dois primeiros, o algarvio enuncia como quer ser recordado e redige a sua versão da história: do trajeto que o levou do Algarve a Lisboa, de Inglaterra ao Terreiro do Paço e da Figueira da Foz a São Bento.


Documentário "Políticos Portugueses" sobre Aníbal Cavaco Silva (1998)

No Governo, Cavaco foi o primeiro-ministro dos fundos comunitários e das grandes obras rodoviárias. Já em pequeno, os grandes projetos influenciavam a vida de Aníbal.

Aos cinco anos, a casa onde residia, junto ao cruzamento da Estrada Nacional 125, foi demolida para permitir o alargamento da via. A família Silva passaria a viver frente à estação ferroviária.

Em Boliqueime, Aníbal diz ter vivido uma “meninice típica de uma criança de uma família de fracos recursos”. Vê-se como um rapaz irrequieto e vivaz.

A história, a astúcia e a política levaram-no aos mais altos cargos da Nação. Longe vão os tempos do menino, visto pelos amigos como discreto e calado e que, ainda criança, perdera um chapéu na busca por ameixas alheias.

Reportagem de Sílvia Mestrinho (2006)

Os amigos falam de ameixas. Para a história, Cavaco ficará sempre associado ao Bolo-Rei. Na sua autobiografia, é o gosto por cerejas que o agora Presidente destaca.

Garante que chegara a gastar o dinheiro do almoço nesta fruta, passando o resto do dia em “penúria alimentar”. Comprava-as em Faro, no tempo em que passou na capital algarvia.
"Nem as despesas pagava"

As viagens diárias a Faro começaram com 11 anos, quando foi admitido na Escola Técnica Elementar Serpa Pinto, para iniciar o ciclo preparatório. No livro que publicou em 2002, Cavaco diz que apanhava o comboio às 5h30. Regressava às 18h00.

Os resultados escolares não eram os melhores. Aníbal chumba no terceiro ano em Faro, já na Escola Comercial e Industrial. Uma retenção que o marcou e que o afastou das habituais lides veraneantes na praia de Olhos de Água. Foi “um verão muito duro”, passado a trabalhar na agricultura.

Longe dos amigos, mas também distante daquela que viria a ser Maria Cavaco Silva. Já naquela altura, aos olhos de Aníbal, “a mais bonita e inteligente” do grupo.



“Ganhei uma fortíssima vontade de lutar por um futuro diferente e arranjei coragem para pedir aos meus pais que me dessem mais uma oportunidade”, escreve Cavaco.

Assim diz ter sido. Afirma ter passado de repetente a “um dos melhores alunos da turma”. Aos 17 anos, já em 1956, partiria para Lisboa.

Na capital, admite que passará muitas horas em cafés e a preencher os boletins do Totobola. A sorte, apesar do conhecimento matemático, não lhe sorria. Uma falha que lhe foi registada no livro de curso, em jeito de poema.

Tinha ele outra mania:
P’ra ganhar no totobola,
Tinha um sistema infalível…
No fim, que grande cachola!

Que cachola, que boné,
Só uns tostões ele ganhava!
O que ganhou, creio até,
Nem as despesas pagava.

Na altura, os lucros do Totobola é que se apresentavam insuficientes. Outras despesas marcam agora a sua passagem por Belém. “Tudo somado, quase de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas”, afirmara em janeiro de 2012, enquanto Portugal enfrentava o resgate.

Sucederam-se várias tentativas de emendar o tiro, mas a frase acabaria por ficar-lhe colada.

Também o título de professor lhe ficará para sempre associado. Um título conquistado depois do estudos no Instituto Comercial de Lisboa e no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras.

Foi precisamente nos tempos de estudante que Cavaco foi detido pelas autoridades por danificar um candeeiro público, junto ao Palácio de São Bento.

Maria Cavaco Silva no programa Parabéns de Herman José (1994)

“Eu vim a pé para não gastar oito tostões. Ele pagou 200 escudos pelo candeeiro”, explicara Maria Cavaco Silva no Parabéns de Herman José, em 1994. Uma história que Cavaco também não se esqueceu de agregar às suas memórias.
“Guerra dos Papéis”
Em 1962, Cavaco é chamado a cumprir o serviço militar e parte no ano seguinte para Moçambique. Casa com Maria poucos dias antes de embarcar com destino ao continente africano. A esposa acompanha-o nesta viagem.

Em Moçambique, as armas de Cavaco são outras. O jovem algarvio dedica-se à “guerra dos papéis” e à “descoberta da África Oriental”. Regressa a Lisboa em 1965, trabalhando na Fundação Calouste Gulbenkian e no ISCEF. Ruma a Inglaterra em 1971 para fazer o doutoramento.

Vê ser-lhe concedido este grau com uma tese sobre dívida pública. Regressa a Lisboa em 1974, dez dias antes da Revolução dos Cravos.
Regresso em 1974
Ouve a história acontecer em casa, “agarrado ao rádio”. O “racional, metódico, rigoroso, trabalhador e avesso à confusão e ao caos” Cavaco Silva confessa-se “apanhado pela confusão do pós-25 de Abril”. Um clima que se fazia notar em especial na Administração Pública. Temeu que Portugal seguisse o exemplo soviético.

“Vacinado” contra o comunismo, começa em maio de 1974 a frequentar os círculos do PPD-PSD, no qual se filia em 1976. Em 1979 Sá Carneiro convida-o para ser ministro das Finanças, caso vença as eleições intercalares.

“Não pense nisso!”, alega ter respondido Cavaco. A história conta-nos que acabaria por consentir. É assim que, a 3 de janeiro de 1980, Aníbal lê em público as 18 palavras mais desejadas por quem almeja uma carreira política.

“Eu, abaixo assinado, afirmo solenemente pela minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas”. Seria a primeira de muitas leituras desta mesma frase.

Documentário "Políticos Portugueses" sobre Aníbal Cavaco Silva (1998)

Nas Finanças, Aníbal declara guerra à inflação. Na autobiografia, alega que o rigor nas contas que defende esbarra nas pretensões dos ministérios e nos objetivos eleitoralistas dos social-democratas. Afinal, as eleições de 1979 tinham sido intercalares e um novo ato eleitoral iria realizar-se logo em outubro de 1980.

“Cheguei a utilizar um quadro preto em Conselho de Ministros para explicar o meu raciocínio aos colegas”, garante.
"Choque brutal"
Já na segunda metade de 1980, Cavaco manifesta vontade de sair do Executivo e retomar a carreira académica. Em outubro, elenca por escrito as condições para manter-se no Governo até às eleições presidenciais de 1981. A eventual saída concretiza-se com o “choque brutal” de Camarate e a morte de Francisco Sá Carneiro.

Aníbal manifesta o desejo de abandonar o Terreiro do Paço. Uma vontade apresentada a Freitas do Amaral, que assume as rédeas do Executivo transitório, e a Pinto Balsemão, chefe do Governo de 1981 a 1983. Balsemão acusa o ex-ministro das Finanças de ter uma agenda pessoal. Aníbal fica “desgostoso”. O futuro trará respostas.

Cavaco regressa ao Banco de Portugal e chega também a presidir ao Conselho Nacional do Plano. O próprio, que continua a afirmar-se um “não político”, admite que se deixa “envolver na vida partidária” neste período.

“Era evidente a minha dificuldade em adaptar-me ao jogo partidário, de que me fui cansando e afastando, ao mesmo tempo que ia desiludindo pessoas que achavam que eu devia procurar conquistar a liderança do partido, o que estava totalmente fora do meu projeto de vida”.
Caminho para a Figueira

Com ou sem projeto, Cavaco ia confraternizando com os “críticos” do Governo de Balsemão. O seu nome é avançado para enfrentar a liderança, mas Aníbal não dá um passo em frente.

Em 1982 as críticas de Cavaco a Balsemão são concretizadas numa carta aos militantes do PSD. Na autobiografia, Cavaco garante que não pretendia assumir a liderança mas apenas “acordar o partido”.“Foi também um certo aliviar de consciência, mas não mais do que isso”

Uma “consciência” que o leva a estar sempre atento e próximo deste círculo. Perante a crise social-democrata, o PSD elege uma nova liderança no Congresso do Montechoro, em Albufeira, em fevereiro de 1983.

Aníbal decide permanecer à margem, mas passa os dias do congresso na sua casa de férias, a 200 metros do hotel. Na autobiografia é o próprio que refere ter recebido alguns congressistas.

O PSD sai do congresso governado por uma troika: Eurico de Melo, Henrique Nascimento Rodrigues e Mota Pinto, este último apresentado como candidato a primeiro-ministro nas legislativas de 1983. O PSD perde e Mota Pinto assume o cargo de vice-primeiro-ministro no Executivo de Bloco Central liderado por Mário Soares.
"Inesperadamente" líder?

Mota Pinto sai do Governo em 1985, abandonando também a liderança social-democrata. Está aberto o processo que dará lugar ao mítico congresso da Figueira da Foz.

Aníbal integra as listas de delegados, mas não é cabeça de lista. O falecimento de Mota Pinto, poucos dias antes do reunião magna social-democrata, impede o que poderia ter sido a sua manutenção à frente do partido e abre a porta a Cavaco.

“Fui peremptório na recusa” em candidatar-me mas, “para surpresa geral, incluindo a minha, acabei por ser eu a ganhar”.

Reportagem de Luísa Bastos (2002)

Escrita por Cavaco, a ascensão a líder do PSD resume-se facilmente. Aproveita o congresso para fazer a mítica rodagem do novo Citroën, inscrevendo-se para fazer uma intervenção. No púlpito, defende que o PSD negoceie com o CDS-PP a candidatura de Freitas do Amaral a Belém. Ou seja, que o partido se apresente contra a candidatura de Mário Soares.“Só um mês e meio depois da minha eleição na Figueira da Foz percebi bem como eu era um desmancha-prazeres e um intruso indesejado na cena política convencional portuguesa.”

O tema cria “uma grande perturbação no congresso” e Aníbal é alvo de “ataques violentos” por parte de outros oradores - nomeadamente João Salgueiro, que era apontado como próximo líder do partido.

Perante as críticas, Cavaco regressa ao púlpito para esclarecer a situação. Perante a insistência de alguns social-democratas, acaba por aceitar apresentar uma moção e candidatar-se à liderança.

“A minha resistência foi-se esbatendo. Havia uma teia que se ia tecendo à minha volta, já fora do meu controlo, e ia-me prendendo. Tinha chegado ao ponto de não retorno. Depois da viragem que tinha provocado no congresso, a candidatura à liderança do partido tornou-se inevitável. Mas eu não tinha nenhuma certeza de vencer”.

Como é sabido, Cavaco vence e é eleito líder do PSD. Intervém na Figueira, desfiando um discurso em “folhas soltas de papel”. “Escritas à mão por mim e por minha mulher, umas a lápis e outras a tinta, com muitos riscos”, descreve.
Da Figueira a São Bento
Acabada a aventura da Figueira, começa a história que o levaria a São Bento. “O que não me passou pela cabeça foi a possibilidade de, menos de seis meses depois, estar no Palácio da Ajuda a tomar posse como primeiro-ministro de Portugal.

“Um candidato ao PSD é sempre um candidato a primeiro-ministro”, deixaria claro, num outro contexto, Pedro Passos Coelho, em fevereiro de 2016.



Uma vez líder do PSD, inicia conversações com Mário Soares. Afinal, o Governo é de Bloco Central e Cavaco deseja mudanças. O diálogo falha e os interesses socialistas e social-democratas não se alinham. Mário Soares e Aníbal Cavaco Silva dão como terminado o Governo de Bloco Central. A batalha seguinte é alinhar a opinião com os interesses de cada partido.

“Era importante que os portugueses compreendessem a decisão do PSD e não o vissem como o responsável pela crise política. Eu receava o comportamento da comunicação social estatizada, onde era forte a influência do Partido Socialista.”



A dúvida permanece alguns tempos sobre o que decidirá o Presidente Ramalho Eanes: avançar com a dissolução do Parlamento ou com um governo transitório. Eanes cede às pressões dos que querem chamar os portugueses a votar, nomeadamente Aníbal Cavaco Silva.
 
As legislativas realizam-se em outubro de 1985. O PSD vence sem maioria absoluta, conquistando 29,87 por cento dos votos e elegendo 88 deputados. Cavaco Silva lidera este primeiro Governo até 1987, quando é derrubado por uma moção de censura.
As maiorias
Vence as legislativas com maioria absoluta em 1987. Em 1991, consegue nova maioria absoluta. São os anos do cavaquismo: dos fundos europeus, das obras, da televisão privada, do IRS, do IVA e do IRC. Aníbal sai de São Bento em 1995.

Reportagem de Elsa Marujo (1995)

“Em democracia qualquer cargo é temporário”, comunica Cavaco em 1995, apresentando a decisão de não se recandidatar a líder do PSD e, portanto, a primeiro-ministro. A decisão agrada a muitos, nomeadamente a alguns habitantes de Boliqueime.

“Tem sido um desastre. Sou conterrâneo dele, sempre fui do PSD mas estou em desacordo com este Governo”, confidencia um conterrâneo de Cavaco à RTP. Após dez anos de Cavaquismo, Aníbal está desgastado.

O segundo mandato fica marcado por casos e crises sucessivas. São os escândalos que envolvem ministros, o atrito com o Presidente Mário Soares e marcos como o bloqueio da ponte 25 de Abril e a luta contra as propinas. O pai de Aníbal, Teodoro Silva, acata a decisão.

Reportagem de Alexandra Trindade e António Hilário (1995)

“Estou de acordo com todas as decisões que ele toma. Porque ele é pessoa muito competente, muito bem formada e consciente do que está a fazer”, afirma aos jornalistas naquela tarde de 23 de janeiro de 1995.

Garante que não sabia da decisão e que não está triste por ver Aníbal não tentar uma nova conquista do Palácio de São Bento. Cavaco Silva sai e cede o lugar ao socialista António Guterres.
Trocar de palácio

Com São Bento para trás, Cavaco lança-se à conquista de um novo palácio. Depois de primeiro-ministro, Aníbal aponta a Belém e candidata-se às eleições presidenciais de 1996.

Documentário "Políticos Portugueses" sobre Cavaco Silva (2008)

O slogan “Em nome de Portugal” revela-se insuficiente para derrotar Jorge Sampaio, que vence com 53,91 por cento dos votos.

“Não perco os meus direitos cívicos só por não ter ganho estas eleições presidenciais”, explica nesse mesmo dia aos jornalistas. Para a História não fica só a derrota de Cavaco. É nesta campanha que, para fugir às questões dos jornalistas, o ex-primeiro-ministro se refugia no Bolo-Rei. Vinte anos depois, a imagem ainda perdura.



Gorada a primeira tentativa de conquista de Belém, Cavaco regressa ao ensino e ao Banco de Portugal, envolvendo-se também na campanha contra a regionalização. É pré-anunciado o fim do Cavaquismo.
À segunda é de vez
Mas Aníbal ainda tinha mais para oferecer. Espera dez anos até que, em 2006, se candidata a Belém. Vence e volta a ser eleito em 2011.

“Vemos neles sempre uma pessoa que tem direito a estar onde está mas sem aquela proa alta”, manifestava nessa ocasião um dos seus colegas de infância. Um elogio à "humildade" para um Presidente que agora abandona em baixa o Palácio de Belém.

Em 2016, Aníbal Cavaco Silva é o político menos popular, quando comparado com os líderes partidários. Sai de cena, cedendo lugar a Marcelo Rebelo de Sousa a 9 de março de 2016. Precisamente dez anos depois de ter tomado posse.

Com Aníbal do alto dos seus 76 anos, o cavaquismo parece ter definitivamente chegado ao fim. Não significa que Cavaco não queira continuar a fazer-se ouvir.