Os critérios inscritos no diploma da Reforma Administrativa, que enquadra a redução do número de freguesias do país, constituem, para o social-democrata António Capucho, “um disparate completo”. Em entrevista à Antena 1, o antigo conselheiro de Estado critica o Governo por ter revelado “muito pouca cautela” no caso das zonas rurais que estão “a uma distância brutal da capital do concelho”. E considera que o ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, “não é a pessoa certa” para lidar com as autarquias.
A proposta de lei do Governo para a Reforma Administrativa foi hoje aprovada na generalidade. O diploma contou com o apoio da maioria parlamentar e mereceu a reprovação de PS, PCP e Bloco de Esquerda.
Houve, porém, declarações de voto de 22 deputados do PS e Miguel Coelho, ex-líder da concelhia socialista de Lisboa, absteve-se.
O regime jurídico pode ditar a extinção ou fusão de mil a 1.500 freguesias, sobretudo urbanas.
Para encorajar a fusão, que tem por objetivo, segundo o Governo, “dar escala às autarquias”, está previsto um estímulo de verbas adicionais do Orçamento do Estado para freguesias e municípios que optem por fazê-lo.
O Bloco de Esquerda apresentou, por seu turno, um projeto de lei para estabelecer um “regime de audição e participação das autarquias locais e populações no processo legislativo de criação, extinção, fusão e modificação”.
O diploma do Governo estivera ontem em debate no hemiciclo. Debaixo de críticas de toda a Oposição, Miguel Relvas argumentou que “não há objetivamente extinção de freguesias”, mas antes “agregação”.
“De repente aparece uma norma, que é a que está na proposta de lei, completamente cega que é corta ao meio. Se tem seis, passa a três. Se tem 18, passa a nove. É um disparate completo. Depois há a questão das freguesias rurais, em que aí acho que há muito pouca cautela. Porque se podemos acabar com freguesias urbanas, no interior do país é muito complicado, nalguns casos, cortar freguesias que perderam tudo, a escola, o centro de saúde, os correios”, sustentou António Capucho em entrevista à editora de Política da Antena 1, Maria Flor Pedroso.
“O Estado está lá apenas na junta de freguesia, que está a uma distância brutal da capital do concelho, e portanto esta lei, assim, não faz sentido, não vai ser consensual. O PS, evidentemente, não a pode votar”, reforçou.
Capucho entende também que o dossier da Reforma Administrativa está entregue ao governante errado. Miguel Relvas, considera o antigo conselheiro de Estado, não está a lidar bem com os órgãos do poder local. Como demonstra, no seu entender, a recente carta que o ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares assinou como o titular da pasta das Finanças, Vítor Gaspar, a instar as autarquias a revelarem à Inspeção-Geral de Finanças as respetivas dívidas de curto prazo e de médio e longo prazo.
“Ele é uma pessoa muito boa em âmbitos partidários e outros, foi um excelente secretário-geral e tudo isso. É capaz de estar a fazer um lugar muito bom nalgumas áreas, sinceramente não tenho elementos. Não gosto nada da maneira como ele está a tratar as autarquias, nomeadamente esta última carta que ele escreve com o ministro das Finanças é uma vergonha autêntica, embora o fundamento para a carta exista”, reprovou António Capucho, acrescentando que se tratou de “uma jogada para a plateia”.
Faltou “capacidade de persuasão” a Belém
A toada crítica de Capucho estende-se ainda aos cortes nos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores do Estado, uma medida “arbitrária” e “gravosa” que, defendeu, poderia ter levado o Presidente da República a exercer uma maior influência junto de Pedro Passos Coelho. No entanto, o ex-governante admite que um veto presidencial ao Orçamento do Estado para 2012 seria uma “bomba atómica absolutamente descomunal e desproporcionada”.
Cavaco Silva, arguiu António Capucho, “devia ter tido capacidade de persuasão junto do primeiro-ministro no sentido de essa medida ser alterada”. Até porque se trata de uma fórmula de austeridade que “caustica muito um setor da população”: “Ainda por cima irritou-me profundamente que se tivesse vindo à baila com a história de que os funcionários públicos eram mais favorecidos na legislação e na sua situação do que nas empresa privadas, esquecendo-se que as medidas atingem também os reformados, que não têm nada a ver com os funcionários públicos, necessariamente”.
“Agora o que eu achava era que nesta medida, se é de tal maneira gravosa que permita ao Presidente da República ter a intervenção pública que teve então, o Presidente da República pode sempre dizer: meu caro, tudo bem, mas atinja os mesmos objetivos por outro meio, vá buscar o dinheiro que precisa, mas vá também buscar aos rendimentos de capitais e vá distribuir isto por todos.
Ainda assim, contrapôs Capucho, se o Orçamento não passasse no crivo de Belém, “isso em termos de mercados, em termos de União Europeia, era a mesma coisa que apresentarmo-nos com a corda no pescoço, enforquem-nos e não nos emprestem mais dinheiro e no dia seguinte os mercados iriam punir-nos”.
Partidos são “barrigas de aluguer”
Igualmente crítico do atual desempenho dos partidos do arco da governação, Capucho lamenta que os aparelhos funcionem hoje como meras máquinas de poder. E quanto à sua formação política, o PSD, o ex-autarca vai mais longe: “O partido não existe”.
“Neste momento, o partido está um bocadinho transformado. Já não existem as sedes, não têm qualquer vida e estamos perante um fenómeno muito complicado que é a tendência para uma coisa que eu não gosto de referir em público, mas que vou dizer, que é para que os partidos se transformem em termos eleitorais num partido de barrigas de aluguer”, afirmou.
“Ou seja, com esta capacidade que cada um de nós tem de pagar as quotas dos amigos para irem votar na nossa lista, isto torna-se um bocadinho complicado. Não alteraram os estatutos neste sentido. Pediram-me um contributo. Agora no essencial, tanto quanto sei, nenhuma das minhas propostas de alteração, que visavam moralizar o partido, teve acolhimento para este congresso. Já o Rui Rio, quando foi secretário-geral, adotou a limpeza dos cadernos eleitorais e iam-no matando, quando ele tinha toda a razão, aquilo era uma fantochada, e agora criam ainda por cima uma história, que eu não sei o que é, que são os simpatizantes”, condenou António Capucho.
“O partido não existe. Existe muito pouco. Qualquer dos partidos, tirando evidentemente os partidos de esquerda, que têm a sua pujança normal. Neste momento, o partido está no Governo e é o Governo que tudo determina. Tem notícia de alguma importante decisão da Comissão Política Nacional do PSD, se é que ela se reúne?”, perguntou.
“Votado ao ostracismo”
Para que a participação dos deputados nas decisões políticas ganhe maior cunho democrático, defendeu ainda António Capucho na entrevista à rádio pública, impõe-se alterar a lei eleitoral. Enquanto não ocorrer essa “grande reforma”, o país vai ter parlamentares que “votam de acordo com as direções dos partidos e vamos ter partidos que não são mais do que prolongamentos do poder governativo”.
“Não votavam todos como rebanho, como verificámos a propósito, por exemplo, da indigitação do Fernando Nobre para presidente da Assembleia”, sublinhou, para lembrar que se recusou “a ser deputado por força dessa indigitação”.
Capucho atribui, de resto, o “ostracismo” a que diz ter sido “votado” à sua posição sobre a primeira escolha de Pedro Passos Coelho para a presidência da Assembleia da República, “uma nulidade” política, nas suas palavras. E considera mesmo que está “a atravessar o deserto” por influência da maçonaria.
“Aquilo que eu também disse é que ele jamais seria eleito e acertei, porque manifestamente, por muita solidariedade maçónica que pudesse haver de outras bancadas, não era suficiente para ultrapassar a rejeição de uma dúzia de deputados”, enfatizou. “Estou a atravessar o deserto por força disso, penso eu, admito que sim, a partir do momento em que afrontei. Comunicaram-me que ele iria ser o candidato a Lisboa. Eu encolhi os ombros, pareceu-me um disparate mas, enfim, admito. Isso sem prejuízo da enorme categoria pessoal que a pessoa tem, que eu estimo muito e que respeito imenso, mas não como político, evidentemente, porque era uma nulidade, como se viu”.
“Para cabeça de lista por Lisboa eu estava indigitado, ou na calha, e propuseram-me outra cabeça de lista qualquer. Eu disse que não me cairiam os parentes da lama. Quando me sento a ver um jogo de futebol, às três da tarde, vejo a passar na televisão que o senhor estava convidado para presidente da Assembleia e comuniquei ao líder do meu partido que assim não faço política”, recordou Capucho.
“Saí do Conselho de Estado tomando conhecimento pelos jornais. Acho estranho é saber pelos jornais. E depois também acho estranho não me aproveitarem absolutamente para nada, depois de 38 anos de dedicação ao partido e com o currículo que eu tenho, que, sem falsa modéstia, não conheço mais ninguém que tenha o currículo tão diversificado”.
Ouça na íntegra a entrevista da jornalista Maria Flor Pedroso a António Capucho