Na madrugada de 25 de Abril de 1974, a fragata Gago Coutinho estava a sair para o mar, integrada num exercício da NATO, quando recebeu ordens de voltar para trás. O Estado-Maior da Armada mandava-a colocar-se diante do Terreiro do Paço e preparar-se para fazer fogo contra os blindados de Salgueiro Maia. A fragata não disparou, mas mantém-se até hoje a discussão sobre o que se passou a bordo nas horas seguintes.
O dossier sobre o episódio da fragata já vai longo, e encontra-se quase todo depositado no Centro de Documentação 25 de Abril. A peça fundamental desse dossier é o Auto de Averiguações levado a cabo pela Marinha, em 1976, sob a responsabilidade do almirante Fernando Santos Silva, oficial prestigiado e a quem reconheciam qualidades de isenção todos os envolvidos na polémica sobre a fragata. No relatório que dele resultou, Santos Silva emite um conjunto de apreciações que hoje continuam, em grande parte, a ser válidas.
Em dois artigos relacionados com este (vd. ao lado), procurei actualizar essas apreciações com o valor que lhe acrescentaram depoimentos posteriores, e alguns muito recentes. Aqui limitar-me-ei a passar em revista as conclusões que, à luz do relatório de 1976 e desses depoimentos posteriores, podemos tomar como certas e aquelas em que continuam a existir versões diferentes, nomeadamente a do então comandante da fragata, Seixas Louçã, e a do então imediato, Caldeira dos Santos.
A ordem de fogo sobre o Terreiro do Paço
Por volta das 7h40 da manhã, o navio recebeu ordens do vice-chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Jaime Lopes, para fundear diante do Terreiro do Paço e para se preparar para fazer fogo contra a coluna da Escola Prática de Cavalaria. Foi o comandante quem levantou objecções à ordem de preparação para fazer fogo: havia muita gente no Terreiro do Paço e vários cacilheiros no rio.
O comandante manteve além disso o navio em movimento, aliás mais acelerado do que era habitual, ignorando a ordem para fundear. Desse modo pretendeu reduzir a probabilidade de o navio ser alvejado com êxito por eventuais forças hostis. E mandou colocar as peças de artilharia em elevação máxima, para mostrar que não apontava para qualquer alvo em terra.
O imediato reconhece que o comandante se opôs à ordem de preparação para fazer fogo com munições de combate e admite, ao menos no Auto de Averiguações, que a decisão de colocar as peças em elevação máxima era uma decisão “prudente”.
Mas há duas versões contraditórias sobre o que ambos terão discutido, sem mais testemunhas. Em depoimento prestado em 1974, a versão do imediato ainda coincidia com a do comandante, negando ambos a existência de qualquer conversa nesse momento do dia. Mas a partir de 1976 o imediato passou a sustentar que tinha informado o comandante sobre um alegado compromisso “da Marinha”, de manter uma atitude de “neutralidade activa” para com o “Movimento”. O comandante, por seu lado, sustenta que, depois de ter levantado aquelas objecções, ouviu da boca do imediato palavras de aprovação pela sua resposta ao Estado-Maior, e nada mais do que isso.
Pouco depois, o comandante convocou uma reunião de oficiais, em que lhes apresentou as várias hipóteses de comportamento do navio no caso de este ser atacado. Nenhum dos oficiais presentes faz qualquer referência ao dito compromisso de “neutralidade activa” ou à natureza, objectivos e composição do movimento que se encontrava em curso. Nada foi dito sobre estes temas, nem pelo imediato, nem por nenhum dos presentes.
A ordem de fogo de salva
Em nova comunicação, o Estado-Maior da Armada dava entretanto ao navio uma ordem para fazer tiros de salva, para o ar. O comandante transmitiu essa ordem ao chefe do Serviço de Artilharia, com a variante de se tratar de tiros de exercício – em qualquer caso de pólvora seca. Segundo o relato do comandante, este oficial manifestou timidamente relutância em cumprir a ordem, ao que o comandante lhe perguntou se tinha problemas com as peças. À resposta afirmativa, o comandante mandou-o verificar o que se passava.
Entretanto, o comandante foi dizendo aos outros oficiais presentes que não havia problemas nas peças, como todos sabiam, e que era preciso pensar o que dizer ao Estado-Maior perante uma previsível insistência deste. Quando o Estado-Maior voltou a comunicar com a fragata, o comandante disse-lhe que o fogo de exercício não era possível, devido a problemas nas peças, que não especificou.
Segundo o chefe do Serviço de Artilharia, ao receber a ordem de preparar para fazer tiros de exercício este terá dito ao comandante que o imediato queria falar-lhe – a “deixa” para ser transmitida ao comandante uma combinação com outros oficiais contra eventuais ordens de fogo. Segundo o imediato, este terá então comunicado ao comandante que “a guarnição” se recusaria a fazer fogo de qualquer espécie.
O relatório do almirante Santos Silva dá as duas versões como possíveis, mas considera que, ainda na hipótese de ter havido uma recusa, esta foi torneada pelo comandante “com realismo e sensatez”, evitando desse modo uma ruptura irremediável com os oficiais.
A ordem do “Movimento”
O “Movimento”, que continuava a ser desconhecido pelo comandante com qualquer outro nome ou acrónimo, pôs-se entretanto em contacto rádio com o navio. O tenente Lourenço Gonçalves, seguindo instruções do Posto de Comando da Pontinha, pediu para falar com o imediato – não com o comandante – e deu-lhe instruções para o navio sair a barra do Tejo com as peças em baixo.
Gonçalves não se identificou e o imediato não ficou a saber com quem falara. Mesmo assim, o imediato transmitiu ao comandante a ordem do “Movimento”. Mas, como não dissesse quem tinha sido o seu interlocutor, criou no comandante a convicção de que lhe ocultava alguma coisa. O comandante disse-lhe então que estava “amarelo e cheio de medo” - e que o exonerava. O imediato recolheu “de livre vontade” à câmara e desapareceu de cena.
Entretanto, o comandante pediu ao oficial mais antigo, tenente Varela Castelo, que assumisse a função de imediato, mas este escusou-se. Ao abordar, depois, o tenente Palhinha, este não lhe opôs uma decisão pessoal, e sim uma reflexão mais ampla: considerando que “o pior já passou”, entendia que “é preferível ficar tudo como estava”. O comandante aceitou, aparentemente, as razões do tenente Palhinha e deixou “tudo como estava”.
A “insubordinação”
Pelas 14h30, o balanço do comportamento do navio era o seguinte: por um lado, o “Movimento” não tinha conseguido que o navio saísse a barra do Tejo com as peças em baixo; por outro lado, o Estado-Maior não tinha obtido dele a preparação para eventuais disparos com munição de combate sobre o Terreiro do Paço, não tinha obtido que fundeasse, e não tinha obtido que fizesse tiros de salva, para o ar. Quem tinha dado a cara perante o Estado-Maior era, em todos estes casos, o comandante. Se a revolução falhasse, era a ele que o Estado-Maior pediria contas.
A essa hora, o comandante convocou uma segunda reunião de oficiais, que vários depoimentos interpretam como destinada a acusá-los de “insubordinação”. O comandante, por seu lado, sustenta que a reunião se destinou a discutir, mais uma vez, o comportamento a adoptar durante a tarde, quando não ainda não estava claro que outras emergências poderiam deparar-se ao navio.
A palavra “insubordinação” terá surgido num outro contexto: o de chamar os oficiais - que aí se declararam abertamente contra quaisquer ordens de fogo -, a assumirem, durante a tarde, as suas responsabilidades perante eventuais ordens dessas, mesmo que isso pudesse ser considerado “insubordinação”.
A verdade é que depois de o comandante ter evitado o confronto aberto com os oficiais - com “sensatez e realismo”, como afirma o almirante Santos Silva -, não faria sentido algum vir agora acusá-los de “insubordinação”. E menos sentido faria juntá-los a todos e acusá-los a todos, metendo no mesmo saco os que se tinham manifestado, mesmo “timidamente”, e os que nada tinham dito.
Quanto a um alegado consenso da guarnição, incluindo as praças, o autor do relatório considera sem “consistência” o depoimento do imediato. Pelo contrário, os depoimentos de sargentos e praças constantes do dossier, muito favoráveis ao comandante, permitem compreender porquê este manteve sempre o navio em funcionamento. E convém lembrar que se tratava de fazê-lo funcionar em circunstâncias especialmente difíceis, sem poder aderir a um “Movimento” que desconhecia, e sem querer obedecer a ordens de um Estado-Maior que dava mostras de pânico e de irresponsabilidade nesse estertor final da ditadura.