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A equipa que filmou a revolução portuguesa para a televisão da RDA

por António Louçã, Sofia Leite - RTP

A equipa que realizou para a televisão da Alemanha de Leste a reportagem de maior fôlego sobre a Revolução dos Cravos tem uma história própria. Ela tinha-se imposto no panorama audivisual da RDA por um estilo heterodoxo e nem sempre bem acolhido pelos poderes estabelecidos.

Sabine Katins formara-se em jornalismo e começara a trabalhar na informação diária, mas sempre com uma preferência pelo género reportagem internacional. Quando chegou a orientação para se dar prioridade à informação sobre o mundo socialista, uma prioridade que não lhe interessava tanto, foi fazer o seu doutoramento na Universidade Leipzig, concluído em 1971, sobre o modo de fazer documentários internacionais.

A partir desse doutoramento pioneiro ganhara o seu lugar, de pleno direito, numa coutada até aí predominantemente masculina. Além do estilo, impunha-se também pela produtividade (37 reportagens entre 1972 e 1979). Entre 1972 e 1977 o Grupo Katins e a redacção que lhe sucedeu com o nome Alltag im Westen (O quotidiano no Ocidente) concluiu em média anual quatro ou cinco reportagens, superando largamente a regra tácita observada pelos realizadores leste-alemães - "um homem, um ano, um filme".

O Grupo Katins rodou filmes em África, na Namíbia, na África do Sul. Um deles foi uma vez projectado no Comité de Descolonização da ONU e ocasionou um incidente com um representante da RFA, que se retirou ao saber que se tratava de um filme da RDA.
Uma composição peculiar

A composição do grupo era, também ela, peculiar. Ao contrário de outras equipas de reportagem da televisão leste-alemã, o Grupo Katins contava entre os seus efectivos vários técnicos de países ocidentais, geralmente ligados aos respectivos partidos comunistas. Tilo Prase recenseou oito correspondentes da televisão leste-alemã DFF na Alemanha Federal em 1961 (p. 168), e em data algo posterior correspondentes de firmas fictícias ao serviço da mesma DFF distribuídos em vários países europeus: quatro na Grã-Bretanha, cinco na Alemanha Federal, uma na Dinamarca e dois outros com localizações não especificadas (p. 177)

Um dos membros ocidentais da equipa, o operador de câmara John Green, recorda que se formou na RDA e depois, com dificuldades para obter emprego em Londres devido a esse curriculum politicamente marcado, propôs à televisão da RDA trabalhar para ela como correspondente. Foi aceite e começou por aí, antes de existir o Grupo Katins.

O mais destacado membro ocidental da equipa, Franz Dötterl (na foto), era um militante comunista bávaro, de quem se contava que durante a guerra, como jovem soldado da Wehrmacht, se recusara a matar dois prisioneiros franceses. Por esse motivo, teria sido condenado à morte, apenas escapando graças a circunstâncias fortuitas.

Dötterl começara em 1958 a trabalhar como operador de câmara para a televisão leste-alemã, mas em breve se tornaria o responsável pela rede de correspondentes ocidentais e pela aquisição de diverso material técnico para a televisão da RDA. A coberto de firmas fictícias como a "Nordreporter" sediada em Estocolmo, e com precauções conspirativas, ele furava o embargo ocidental às exportações de tecnologia avançada, como pode confirmar-se na documentação da Stasi a que a RTP teve acesso.

Dötterl esforçou-se por promover com Katins um estilo diferente na realização dos documentários no estrangeiro. Tratava-se para ambos de mostrar o que se passava, com uma presença enraizada nos locais de filmagem, e não simplesmente de falar sobre as situações que eram objecto da reportagem.

Um estilo original

O Grupo Katins brilhava pelo estilo das suas reportagens, assentes em trabalho de investigação, em testemunhos concretos, em imagens, e só muito comedidamente recorrendo ao comentário em voz off.

Numa televisão rotineira, marcada pela langue de bois da propaganda e pródiga em chavões doutrinários, as reportagens do Grupo Katins distinguiam-se por darem voz a pessoas de carne e osso. A narração praticamente só servia para situá-las e identificá-las. As convicções políticas assumidas pela equipa não eram geralmente impostas ao público, antes lhe eram sugeridas pela escolha dos temas e pelo encadeamento de depoimentos.

Nas palavras da própria realizadora, a originalidade metodológica do grupo sintetizava-se assim: "Não afirmamos nada que não seja dito pelas pessoas que foram filmadas. A nossa narração não é mais inteligente do que elas, não dá lições ao espectador, limita-se a apresentar contextos e informação de base que são precisos para compreender. Em última análise, comentamos através da montagem (que deixa entender claramente a tomada de partido do autor) e com isso conseguimos que a verdade seja transmitida sem ser imposta".

Segundo o historiador Tilo Prase, que em 2002 foi co-autor de um livro sobre o tema, "Katins considerava que a sua ‘marca de água’ era trabalhar para a imagem filmada, literalmente dependente da imagem. Não falar em cima da imagem, mas fundamentalmente deixar ao próprio espectador o trabalho de comentar". (Prase, p. 270)

Matthias Steinle, especialista de História do cinema que voltou ao tema dois anos depois, emitiu um juízo semelhante: para Katins, diz ele, "a realidade tem de apresentar-se como é encontrada e não como devia ser – o que, ao mesmo tempo, constituía uma dura crítica à praxis do jornalismo televisivo da RDA de até então".

Steinle lembra a esse respeito a divisa preferida de Sabine Katins - a frase de Semionov que se encontrava afixada no seu gabinete de trabalho: "Só se impressionam pessoas com pessoas". É, aliás, este o método aplicado no documentário maior sobre Portugal. Segundo Rüdiger Steinmetz, hoje professor catedrático da Universidade de Leipzig, a primeira parte de "Primavera portuguesa", muito baseada em histórias de vida de comunistas portugueses libertados da cadeia, constitui uma ilustração da estética peculiar do Grupo Katins, apostada em revelar problemas de fundo a partir de casos individuais.
A inovação introduzida teve resultados espectaculares. Segundo Steinle, a medição de audiências concluiu que uma das principais reportagens do Grupo Katins, "O que pensa o cidadão da Alemanha Federal sobre a RDA?", foi vista em finais de outubro de 1974 por 3,2 milhões de espectadores, o que representava um sucesso extraordinário para um país com 17 milhões de habitantes, geralmente desinteressados do que passava na televisão oriental.

Em depoimento prestado à RTP, Steinle considerou que os documentários do Grupo Katins, com audiências de 30 a 35%, ocupavam um lugar único na televisão leste-alemã. Por outro lado, a convicção de ser portador de um método bem sucedido, por oposição à prática corrente na RDA, não tornava o Grupo necessariamente benquisto entre oficiais do mesmo ofício.

A mimetização com um certo estilo ocidental não era fabricada por Katins a partir do nada, antes correspondia a uma necessidade profunda da propaganda do SED (o partido no poder) e a uma oportunidade política. Ao partido não passava despercebida a impopularidade de uma propaganda demasiado recheada de chavões, mas pobre na forma e no conteúdo.

Procuravam-se soluções que tornassem a televisão leste-alemã mais atraente para o público. Já antes do Grupo Katins, a dupla Heynowski & Scheumann enveredara pela via de reportagens mais factuais e com menos comentário explícito.

Com o render da guarda na liderança do SED – Walter Ulbricht substituído por Erich Honecker, em junho de 1971 -, os primeiros tempos foram de expectativa numa maior abertura da política cultural. O Grupo Katins foi dotado de meios financeiros invulgarmente generosos e de grande autonomia relativamente à estrutura da televisão da RDA.

Em parte a autonomia era explicada pelos imperativos de filmagens clandestinas em países como Namíbia, África do Sul, Israel, Turquia ou mesmo na Alemanha Federal.

As más vontades e desconfianças que esse estatuto especial suscitava eram, na fase inicial, neutralizadas pela protecção ao mais alto nível de que o grupo gozava: as suas decisões obtinham alguma cobertura de Werner Lamberz (na foto, à esquerda), o mais alto responsável partidário pela agitação e propaganda e também, para alguns, um potencial sucessor de Honecker (na foto, à direita).



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