A avaliação de Marcelo aos últimos meses. "Um ano praticamente perdido"

por Graça Andrade Ramos - RTP
"Praticamente um ano foi perdido, numa legislatura um pouco patológica" Nuno Patrício - RTP

Nos sete anos de Presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, nunca tantas controvérsias marcaram a vida portuguesa como as dos últimos 12 meses. Da TAP a um novo Executivo, dos abusos sexuais na Igreja a uma guerra e uma crise económica, diversos temas marcaram a entrevista dada esta quinta-feira à RTP e ao jornal Público no Palácio de Belém, no dia em que o presidente terminou o sétimo ano de mandato e iniciou o oitavo.

O chefe de Estado fez um balanço desalentado dos últimos meses, “um ano praticamente perdido” e marcado por dificuldades, iniciado pela interrupção inesperada de uma legislatura seguido pela eleição de uma “maioria requentada” e “cansada”, à imagem “da segunda maioria do professor Cavaco Silva”.

Marcelo Rebelo de Sousa frisou as dificuldades criadas pelo eclodir da guerra na Ucrânia ao novo executivo, dominado nos primeiros seis meses pela necessidade de responder à crise internacional, um “tempo perdido”.

“Podemos dizer que é quase um ano em que, por causa destes fatores, uma maioria, que é uma maioria que nasce já com o desgaste de seis anos de governo, a guerra, as consequências da guerra, a forma como nasceu o Governo, a orgânica do Governo, o tempo ocupado pela gestão da guerra, leva a que praticamente um ano foi perdido, numa legislatura um pouco patológica”, considerou Marcelo.

A consequência, reconheceu, foi a impossibilidade de concretização do seu apelo de 2018, de que, mais do que se reconstruir, Portugal necessitava de se reinventar, com ênfase para “o atraso da segunda fase do PRR”.

“Obviamente, as consequências da guerra, do aumento dos preços, a inflação, que está por aí ainda, tudo isso teve essas consequências económicas, financeiras, sociais, prejudicaram a coesão social que se sonhava ser possível em pós-pandemia, e prejudicaram o reconstruir, o reinventar”, afirmou o presidente.

O que se passa em Portugal estende-se ao resto do mundo, considerou Marcelo. “Estamos a gerir o dia-a-dia e portanto a olhar para o curto prazo e não para o médio prazo”.
Veja aqui na íntegra a entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa.Agitação social
Para o presidente, são a guerra e a inflação os fatores que mais influenciam a contestação registada em Portugal, “mesmo se os números são melhores do que se esperava”. O crescimento do ano passado, assente num patamar “muito baixo”, na subida das exportações e na recuperação do Turismo, “já não é repetível em 2023”, alertou.

“A inflação em Portugal está a descer muito pouco, e mesmo noutros países, em que aparentemente desceu, não deu sinais de quebrar”, o que implica “naturalmente, o sacrifício de mais pobres dos mais carenciados, mas também o aumento dos juros, o que apanha a classe média-baixa, a média, e menos a média alta”.

Problemas de difícil solução para o Governo, que tem mesmo assim conseguido “controlar” a inflação. “É evidente que a realidade económica e social depende de muito como correr a guerra e como correr a evolução da inflação e da economia cá dentro, na Europa, no mundo”, considerou, lembrando que Portugal tem uma economia aberta e não vai “arrancar sozinho”.

Nestas circunstâncias, cabe ao Governo “encontrar as soluções para compensar. nessa gestão do dia-a-dia, o que não está a correr bem”, acrescentando que, enquanto “o primeiro-ministro olha para o lado cheio do copo, eu olho para o lado vazio”.

A preocupação com as “contas certas”, que “são fundamentais”, até para evitar castigos da Europa, não deve apesar de tudo ser o núcleo da ação do Executivo, até porque a ajuda externa “não é suficiente”. “Há uma parte de gestão, nossa, que é fundamental” afirmou o presidente.

Também sobre os apoios à população devido à inflação, Marcelo Rebelo de Sousa considerou necessário analisar, por um lado, o impacto do custo da energia e, por outro, “um aproveitamento da conjuntura” que deve ser fiscalizado de forma sistemática, sendo que será a evolução da Economia, interna e externa, a decidir o “tipo de intervenção” necessária, algo que “cabe ao Governo”.

”Eu não tenho resposta porque eu sou mais pessimista do que a perspetiva do copo meio cheio. Eu acho que ele está meio vazio e, portanto, estou de pé atrás. Acho que se devem preparar dois cenários. Preparar o cenário para um copo meio cheio e para um copo meio vazio. Se for meio vazio, então, naturalmente, aquilo que se tem de fazer de intervenção social tem que ser mais evidente”, aconselhou Marcelo.

Perante um cenário de “oito mil diligências judiciais separadas, um ano letivo na escola pública praticamente comprometido, a paralisação de setores importantíssimos do nosso sistema de transportes”, como referiu Manuel Cardoso, diretor do Público, e à pergunta sobre “até que ponto o país se encontra de alguma forma bloqueado”, Marcelo Rebelo de Sousa respondeu com o facto que ainda não se estar perante eleições antecipadas.

O presidente explica a circunstância com o facto de o desemprego estar a ter uma evolução “contida, não desfavorável”.
Professores. "É preciso negociar"
O presidente considera contudo “justas” as lutas dos oficiais de Justiça e igualmente a dos professores.

Quanto a estes, “o caminho é negociar”, aconselhou. “O Governo faz mal se romper, mesmo que tenha no bolso o que pensa que é uma solução unilateral”, tal como “os sindicatos fazem mal se romperem as negociações ou se esticarem, para além de um determinado limite, aquilo que é a sua luta” e “mantendo a sintonia com a opinião pública”.

“Tem de haver um acordo” o qual terá de incluir “além dos pontos setoriais em que já houve acordos parcelares ou aproximações de pontos de vista, duas questões fundamentais, uma é a recuperação do tempo de serviço”, mesmo que apenas parcial, sendo outra “corrigir as desigualdades entre professores”.

O presidente da República sublinhou ainda vários aspetos novos da luta sindical que não estão enquadrados na legislação vigente, tendo de “se definir de forma legal e atempadamente para que a sociedade saiba o que pode contar em termos de legítima contestação social, mas também de legítimas expectativas daqueles que na sua vida acabam por ser afetados”.
Saúde. "Uma corrida contra o tempo"
Já quanto ao setor da Saúde, Marcelo Rebelo de Sousa apoiou a criação de uma direção executiva, nomeada há três meses.

“A máquina clássica já não tinha a capacidade necessária, a agilidade necessária para fazer a gestão”, explicou, acrescentando ser “preciso montar uma nova máquina, com autonomia, com independência para gerir essa realidade”.

“Mas eu disse logo, a ideia é muito boa mas temos pouco tempo, porque os portugueses esperam um bocadinho e depois desesperam. Temos pouco tempo para aprovar as leis que é preciso aprovar para transferir competências, para definir competências e tal, porque a antiga máquina vai sempre torpedear e porque as expectativas vão sempre aumentar”.

O primeiro passo da direção executiva, de gerir as maternidades, foi destacado pelo presidente, que considerou contudo mais difícil de gerir o segundo, referente às urgências. “É preciso ir aos cuidados primários porque é preciso ter uma reconstrução sistémica do Serviço Nacional de Saúde para que não se esteja muito tempo a intervir ponto a ponto”.

E antes de se atirar mais dinheiro para cima dos problemas, Marcelo Rebelo de Sousa recomenda a definição “de ideias” e de “prioridades” para o SNS.

“É muito difícil, porque esta equipa, por muito competente que seja, tem três anos à frente, três anos à frente. É uma corrida contra relógio”, afirmou, lembrando que a conjuntura não irá melhorar.

“As necessidades em termos saúde tendem sempre a agravar-se, porque nós envelhecemos. É uma população que envelhece e, portanto, é mais doente”, referiu. E “nós empobrecemos, é uma população mais pobre, é mais doente e mais carenciada. E o Serviço Nacional de Saúde é, conjuntamente com as pensões de reforma, é o que há de seguro de vida remanescente dos mais idosos e dos mais pobres em Portugal, que são milhões”.

“Portanto, é uma corrida contra o tempo”, concluiu, acrescentando que se está a fazer “o possível”, alvitrando que uma solução possivelmente seguida por um Governo de direita, com maior recurso eventualmente aos privados, poderia não ser a melhor para uma população como a portuguesa, de parcos recursos.

“Todos somados somos poucos, temos somar esforços, mas a coluna vertebral é o SNS” e este ao ser repensando tem de o ser “rapidamente”, resumiu.
Habitação. Soluções têm de ser "exequíveis"
Outro problema “urgente” na sociedade portuguesa é o da habitação. O o“melão”, como já lhe chamou o chefe de Estado, proposto pelo atual Governo já foi aberto, resta saber o que contém o do Partido Social Democrata.

“Do melão do Governo nós já podemos retirar algumas ideias. E a primeira ideia que eu retiro é que, andar sete dias para discutir não sei quantos diplomas depois de sete anos de espera, é uma coisa do outro mundo”, ironizou. "Foi anunciado o pacote há um mês mas foi apenas no dia 3 deste mês que conhecemos os textos".

Entre o que se sabe das propostas socialistas e social-democratas, o presidente vê “pontos de convergência possíveis, em matéria administrativa, simplificação, flexibilização, licenciamentos, desburocratização”, referindo que “há espaço para conversa nos incentivos fiscais” ao privado.

“Eu confesso o seguinte, como presidente da República vou olhar para isso vendo o consenso que é possível fazer, o debate público e o debate no Parlamento” e “vou olhar sobretudo para a eficiência do que é proposto” assim como para a sua “constitucionalidade” como no caso do que é uma casa devoluta.

Para o presidente, a preocupação não se pretende com questões doutrinárias ou ideológicas, “é saber se as fórmulas que propõem são concretizáveis”, para não se fazerem leis que depois não são aplicáveis.

Tanto o papel dos municípios na identificação das casas devolutas como o arrendamento por parte do Estado são de difícil execução, tal como as ideias, adiantadas pelo PSD, do Estado recorrer ao próprio património ou de reforçar os poderes da Autoridade Tributária na identificação dos prédios devolutos, exemplificou Marcelo Rebelo de Sousa.

“Isto para dizer que é preciso ver como é que ficam as fatias do melão depois do debate parlamentar”, concluiu.
"Habituar-se ao escrutínio"
Sobre a TAP, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se surpreso com algumas conclusões do relatório da Inspeção Geral de Finanças, nomeadamente quanto à natureza do acordo com Alexandra Reis e à duração da colaboração desta com a transportadora. “Provavelmente não tinha direito àquela indemnização”, referiu.

Refletiu ainda que será necessário esperar para ver o desfecho judicial da demissão da presidente do Conselho de Administração da TAP, Christine Ourmières-Widener, e criticou a aparente falta de rigor nas nomeações de Alexandra Reis.

Em termos políticos, Marcelo Rebelo de Sousa disse que o Governo resolveu “à portuguesa” com Fernando Medina a tomar decisões e com o antigo ministro das infraestruturas, Pedro Nuno Santos, a sair.

O presidente retira do episódio que o atual Executivo terá de se habituar a ser escrutinado, e recomenda a todos os ministros, com destaque para o ministro das Finanças, que recuem no tempo e examinem todas as suas atuações políticas e não políticas.

"É um exercício ao qual eu não estava habituado em Portugal, que é olhar para trás e ver ponto por ponto ao longo das suas intervenções políticas e não políticas, tudo o que foi o passado para ver se não há nada, nada que seja suscetível de provocar problemas", afirmou Marcelo.

“O Governo tem que ter a noção que vai ser assim daqui até ao fim das suas funções, alvo de um escrutínio rigorosíssimo neste tipo de questões”, aplaudiu o presidente.
Legislatura "até ao fim"
Já sobre as sondagens que deram recentemente a maioria à direita, Marcelo Rebelo de Sousa considerou-as “um juízo crescentemente negativo em relação ao Governo” mas lembrou que “defendeu sempre o cumprimento de legislaturas”, num recado a quem pense vir a ter apoio do chefe de Estado para fazer cair o Governo.

“A minha orientação é essa. Se sentir que realmente há uma coisa patológica, excecional, o tal irregular funcionamento das instituições que ganha uma tal dimensão, que paralisa a existência de orçamento, torna impossível a governação, aí, pondero isso”.

Para o presidente, a execução do PRR será muito importante para perceber se 2023 foi “desbaratado” ou não e se deve ser pensada a realidade política do país.

Por outro lado, se a oposição existe “aritmeticamente”, não existe “politicamente”, considerando por isso o Presidente não existirem condições para substituir o atual executivo.

“Aritmeticamente há uma alternativa mas não é uma alternativa política porque um dos partidos diz que recusa entender-se com um terceiro [a Iniciativa Liberal recusa entendimentos com o Chega], por isso, não se somam os votos em termos de coligação. Podem somar-se no futuro, mas neste momento não”, explicou.

Também na recente questão do Governo dos Açores, que perdeu a maioria de incidência parlamentar esta quarta-feira, dia 8 de março, o presidente considera existirem condições de “governabilidade” e de execução orçamental, não vendo razões para uma intervenção de Belém. “Não obstante, é o povo o soberano decisivo”, frisou.
Conferência episcopal "ficou aquém"
A crise dos abusos sexuais sobre crianças na Igreja levou ainda o Presidente a tecer críticas duras à reação da Conferência Episcopal, a quem acusou de reagir “aquém no tempo”.

“Como é que não responde a Igreja Católica por atos praticados por quem é representante de uma igreja? Como? É incompreensível”, questionou.

O presidente considerou “óbvia” a necessidade de afastamento dos sacerdotes suspeitos dos abusos mas, “além de ser óbvio, mais do que isso, que foi uma desilusão, a posição da Conferência Episcopal, foi o sentimento que ficou. Claramente ficou aquém em todos os pontos que eram importantes."

“Demorou 20 dias a redigir uma coisa que era imediata. Conhecia o relatório antes, nomeou a comissão, fez o relatório a uma comissão estranha à Igreja e depois comunicou que iria continuar a refletir por mais dois meses. Ficou aquém no tempo. Ficou aquém ao não assumir a responsabilidade” e não tomar medidas preventivas, lamentou Marcelo, sublinhando não estar a falar como católico mas como presidente da República.

"Como presidente da República a expectativa que havia era tão simples: era ser rápido, assumir a responsabilidade, tomar medidas preventivas e aceitar a reparação. E de repente é tudo ao contrário, em termos gerais, ou cada um para seu lado", lamentou, acrescentando que a hierarquia falhou em todos os problemas que tinha para resolver.

“Isso a mim, como presidente da República, preocupa-me, porque a Igreja é uma instituição fundamental na sociedade portuguesa, na educação, na saúde, na unidade social”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa.

Há um longo caminho a percorrer, acrescentou. “A Igreja tem melhorado anos e penso que faz falta ao país. E se de repente sofre na sua confiabilidade, na sua credibilidade, numa questão tão básica, isso depois repercute-se na vida dos portugueses. É tão importante o papel da Igreja que agora não há nada como uma reflexão complementar para reencontrar o caminho que se perdeu neste contexto”.
PUB