Varela Gomes, ou as arestas do carácter

por António Louçã
O coronel João Varela Gomes morreu na passada segunda-feira, aos 93 anos

À porta do cemitério, esteve uma unidade do exército a disparar os sacramentais tiros de salva. Era o mesmo exército que por duas vezes expulsou Varela Gomes, que numa dessas vezes o entregou à PIDE, na outra lhe pôs a cabeça a prémio e, depois, no momento da reconciliação e da amnistia, o acolheu contra vontade, fazendo dele, durante vários anos, o único coronel miliciano do século XX.

Mas os tiros de salva com que o vício homenageou a virtude foram uma excepção, tal como são excepções a mensagem e a coroa de flores do chefe do Estado ou o voto de pesar da Assembleia da República. Dum modo geral, a democracia portuguesa tem pressa em passar à ordem do dia e a maioria dos media tem pressa em dar a próxima conferência de imprensa de Jorge Jesus ou de Rui Vitória.

Quando estão na calha tantas notícias importantes, para quê lembrar este militar que, em 1962, foi o primeiro a pegar em armas quando nada ainda estava ganho, e que, em 1975, foi o último a depor as armas, quando já tudo estava perdido?

Muitos dos inimigos de João Varela Gomes nem sequer conseguiram camuflar os seus sentimentos com tiros de salva. Não esqueceram nem perdoaram os sustos que ele lhes pregou e mantêm hoje o mesmo rancor de sempre.

Já alguém observou, certeiro, que o horror da direita perante o voto de pesar aprovado na Assembleia Municipal de Lisboa é uma honra para o militar revolucionário. Se ele aqui estivesse, poderia juntar às suas condecorações esse ódio velho, incansável, da direita. Em escrito testamental de há três anos e pouco, agora lido no funeral pela sua filha Eugénia, dizia Varela Gomes: “Tomando o ódio democrático/fascista como distinção honoris causa, aceito com orgulho que o meu próximo desaparecimento do número dos vivos passe tão ignorado quanto o de qualquer expatriado anónimo”.

E, permitam-me o parêntesis: embora nunca tenha precisado de recusar a Ordem da Liberdade, porque a democracia sempre preferiu oferecê-la aos serventuários da outra senhora, Varela Gomes era o mais condecorado dos antifascistas, na tradição dos combatentes da guerra de Espanha, que ele tanto admirava: tinha como condecoração as suas cicatrizes.

Na verdade, o regime democrático não se assume como filho do sacrifício de Beja e também essa renegação de raízes deve ser saudada como contribuição para a transparência do relato histórico. Varela Gomes desprezava a democracia dos ricos e poderosos e fustigou até ao último instante “uma classe dominante de renegados, corruptos e afins, fascistas e filofascistas de máscara democrática”.

No momento da despedida, um dos testes de medida infalíveis sobre o valor de quem parte é a sua capacidade para inibir as lágrimas de crocodilo. E, embora algumas sejam sempre inevitáveis, porque há sempre crocodilos a insinuarem-se por todo o lado, havemos de convir que Varela Gomes passa o teste como poucos e que propicia, até entre os seus inimigos, um reflexo de espelho da sua própria frontalidade.

Um dos insurrectos de Beja, o recentemente falecido coronel Eugénio Oliveira, fora uma vez convidado por um companheiro de prisão a aderir à organização mais forte e mais experiente da resistência. O interlocutor que o convidava disse-lhe na altura que, para aderir, só precisaria de “limar algumas arestas”. Em resposta, exclamou Eugénio Oliveira: “Não me levem as arestas, que são o melhor que eu tenho!”.

O jovem capitão, discípulo de Varela Gomes, falava por si, mas poderia ter falado por dezenas de insurrectos, que tinham bons motivos para se orgulharem da capacidade demonstrada para tomar decisões, para assumir riscos, para criar rupturas e, já agora, para fazer tudo isso como prolongamento da acção espontânea daquelas centenas de milhares que tinham enchido as ruas durante a vaga delgadista.

Ora, em matéria de arestas, Varela Gomes era precisamente o exemplo mais inspirador dum estilo e duma escola de comportamento. Chamava os bois pelos nomes, não se escondia atrás de discursos redondos nem de fórmulas consensuais, não usava eufemismos nem circunlóquios. Acusado de “usurpação de poderes” no 11 de Março de 1975, quando ninguém se decidia a combater o putsch spinolista, ele havia de responder aos seus contraditores: sim - era uma usurpação revolucionária.

Tão-pouco receava a polémica: nos anos 1980, quando militou com o grupo da revista “Versus”, ganhou uma fama de “trotskista”, que não correspondia de todo à verdade. Mas é certo que não se deixava tolher por nenhuma urticária antitrotskista e foi por ele que ficámos a conhecer algumas coisas de Trotsky que desconhecíamos. Uma, era a afirmação de que todo o marxismo tem alguma coisa de sectário, porque é a teoria da luta de classes, e não da colaboração de classes. Por outras palavras: não há um marxismo redondo, sem arestas, nem é possível limar-lhas sem o amputar de algo essencial.

O trágico desfecho da Revolta de Beja em nada mudou a atitude de Varela Gomes. Não lhe serviu de emenda. Não tinha emenda: continuou, durante toda a vida, a ter arestas. Os obituários mais respeitosos dizem que foi “polémico e frontal”. Na verdade, comprava muitas guerras, comprava-as difíceis, daquelas que se paga muito caro e daquelas que quase sempre se perde (só houve uma em que facilmente teria colhido louros, mas não a quis nem dada - a guerra colonial).

Com uma perspicácia e uma sensatez política que raramente lhe são reconhecidas, Varela Gomes foi em pelo menos duas ocasiões decisivas o primeiro a intuir que os seus amigos embarcavam em projectos marcados pela improvisação e pela precipitação. Depois de ter tentado em vão dissuadi-los, ficou um comportamento que, a ser traduzido em palavras, seria qualquer coisa como: "Não se atrevam a ir morrer pela revolução sem me levarem convosco".

É quase um escárnio à lei das probabilidades que tenha sobrevivido até uma idade tão avançada alguém com a generosidade que tinha Varela Gomes para se colocar sempre na linha de fogo.

Despedimo-nos portanto de um amigo, companheiro, camarada, que foi para nós um exemplo, um irmão mais velho, para os seus filhos e filhas um primeiro e para outros um segundo pai. Despedimo-nos, recordando em primeiro lugar o que o senso comum prefere esquecer: as suas arestas, que eram uma marca de carácter e que são uma herança irrenunciável.
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