"A minha mãe disse-me que não posso brincar contigo porque tu és preta". Foi aqui que a pequena Ruby, de seis anos, percebeu o porquê de ter uma sala de aula só para si, vazia. Percebeu o porquê dos gritos e das caras brancas zangadas que estavam à porta da escola quando ela entrava.
Ela foi a primeira criança afro-americana a estudar numa escola até aí frequentada só por brancos. Viveu a resistência de todos os que achavam que as coisas deviam continuar como estavam: escolas só para brancos, as all-white schools, e escolas só para negros, as all-black schools.
Estávamos em novembro de 1960, mas esses dias estão ainda bem presentes na cabeça de Ruby Bridges. Hoje é um ícone da luta pelos direitos civis nos EUA e esteve em Lisboa para partilhar a sua história na conferência "Em que pé está a igualdade?", da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
"Vamos escoltar a sua filha até à escola"
Até aquele dia, os negros não escolhiam a escola que queriam. "Era-nos dito, era-nos indicado", explica Ruby. Mas as coisas começaram a mudar e Ruby começou a entrar para a história no dia em que uma organização de Direitos Humanos bateu à porta de casa e falou com os seus pais.
Aquela organização estava a liderar o movimento para alterar a lei e permitir que todos pudessem frequentar todas as escolas. Perguntaram-lhes se estariam dispostos a mandar a sua filha para uma escola só de brancos, pela primeira vez na cidade. Se estariam dispostos a desafiar o sistema.
"Os meus pais agarraram a oportunidade. A minha mãe, porque o meu pai era contra", admite. O pai tinha estado na Guerra da Coreia e recordava-se que, apesar de todos os soldados combaterem de igual forma na frente de batalha, no fim do dia havia camaratas separadas e zonas de refeição separadas por cor. "Então ele achava que, se nem na guerra havia mudanças, mandar-me para a escola não ia mudar nada". Mas a opinião da mãe ganhou.
"Andem sempre em frente, não olhem para trás"
Ruby só sabia que ia mudar de escola - nada mais. "Os meus pais só me disseram: é bom que te portes bem", recorda, com risos do público. E chegou o primeiro dia. Naquela manhã, bateram à porta. A mãe de Ruby abriu. Disseram-lhe: "Estamos aqui para a escoltar a si e à sua filha até à escola. Fomos enviados pelo presidente dos EUA".
Os vizinhos vieram à janela para ver o momento. Ruby seguiu no carro com os agentes. À chegada, havia grupos de pessoas à porta da escola com cartazes, caras zangadas, gritos, muitos dedos apontados para ela. Ruby ficou surpreendida mas não percebeu. "Eu vivia em Nova Orleães e lá temos uma festa chamada Mardi Gras, que é o Carvaval. Então eu achava que estávamos no Carnaval, com aquele espetáculo todo..", ri-se. "A inocência de criança protegeu-me".
Saíram do carro. Os quatro homens protegeram mãe e filha e disseram-lhes: "Andem sempre em frente, não olhem para trás". Passaram pela multidão, entraram no edifício, os manifestantes foram atrás. "Lembro-me de estarmos no gabinete do diretor e eu via pessoas pela janela a apontarem-me o dedo. Pareciam mesmo zangadas, e eu não sabia porquê".
Chegou à porta da sua sala de aula e lá estava a professora. Lá dentro, apenas cadeiras vazias. "Pensei: Cheguei mesmo cedo!'", ri-se de novo. Mas a sala ficaria vazia durante anos - os pais dos outros alunos optaram por os retirar dali - e seria só Ruby e a professora Henry.
"A primeira coisa em que pensei quando olhei para a professora foi: ela é branca!", ri-se. Também Ruby estava habituada apenas aos educadores negros do jardim de infância, também ela estranhou. "E a professora Henry parecia uma daquelas pessoas que estavam lá fora, irritadas e zangadas comigo. Branca e com o mesmo aspeto deles. Mas, ao longo dos anos, ela ensinou-me sempre com o coração e eu fiquei a adorar a escola por causa dela. Foi aí que aprendi que nunca devemos julgar ninguém pela cor da pele".
Alguns pais optaram por manter os filhos na mesma escola, mesmo com Ruby lá. Mas com as devidas precauções: "Uma vez um menino disse-me: 'A minha mãe disse-me para não brincar contigo porque tu és preta'. E aí eu percebi porque é que não havia muito mais crianças ali. Era tudo por causa de mim", recorda.
Vídeo: Ruby Bridges foi recebida pelo Presidente Obama na Casa Branca, que lhe disse: "Se não fosse por si, provavelmente eu não estaria aqui".
Entretanto, a criança cresceu e tornou-se mulher. No palco do Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, Ruby emociona-se. Revela que foi mãe mas que perdeu o filho como resultado da "violência" que ainda existe nos Estados Unidos. Foi assassinado a tiro por uma pessoa "da mesma cor dele". Assim, remata com o que aprendeu: "A maldade existe em pessoas de todas as cores e feitios".
Para o presente e para o futuro, Ruby sublinha a importância da educação para que o passado não se repita. No silêncio do São Carlos, diz, de olhos postos na audiência: "Há uma coisa que eu sei: nenhuma criança nasce a saber o que quer que seja sobre odiarmo-nos uns aos outro. Cada um de nós veio ao mundo com um coração limpo. Até que alguém pega no racismo ou noutro preconceito e o passa para nós".