Relatório de Segurança Interna. Criminalidade e violência aumentaram em 2023

por Inês Moreira Santos - RTP
Rodrigo Lobo - RTP

Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal, crimes de ódio e violência entre grupos são os principais indicadores apontados pelo Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), que indica o aumento da criminalidade e da violência em Portugal, no último ano. Nas mais de 340 páginas, o documento entregue na Assembleia da República debruça-se ainda sobre questões como as ameaças dos extremos políticos e o tráfico e consumo de drogas, referindo que a criminalidade grave não era tão elevada desde 2019.

Analisando a evolução da criminalidade, o RASI referente ao ano de 2023 verificou que “os valores registados atualmente representam acréscimos”, embora com “uma tendência de descida, tanto na criminalidade geral como na criminalidade violenta e grave”.

“No ano 2023 a criminalidade violenta e grave representa 3,8 por cento de toda a criminalidade participada”, lê-se no relatório, acrescentando que extorsão, resistência e coação sobre funcionários, roubo por esticão, rapto, sequestro e roubo na via pública foram os crimes violentos e graves que mais subiram no ano passado.
Já no que toca à criminalidade geral, “o número total de participações criminais registadas em 2023 (…) foi de 371.995, mais 28.150 participações que no período homólogo de 2022”. Neste âmbito, o relatório destaca a violência doméstica, “a qual continua a ser merecedora de uma especial atenção por parte das Forças de Segurança”.“Este fenómeno regista uma ligeira descida de 0,1 por cento mas continua a apresentar índices de participação muito elevados. O crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo é aquele que observa o maior número de registos entre toda a criminalidade participada”, é indicado ainda.

Quanto à prevenção e investigação da criminalidade grave, violenta, altamente organizada e complexa, o Sistema de Segurança Interna verificou “uma subida face ao ano anterior, tendo-se registado 14.022 participações de criminalidade violenta e grave, representando um aumento de 5,6 por cento”.

De acordo com o RASI, nas questões de criminalidade sexual, “o maior número de inquérito iniciados está associado aos crimes de abuso sexual de crianças, de violação e de pornografia de menores”, sendo o perpetrado, “na sua esmagadora maioria, por indivíduos do sexo masculino contra indivíduos do sexo feminino, que se prevalecem do relacionamento familiar, em particular com vítimas entre os 8 e os 13 anos”.
Violência entre grupos rivais de jovens de bairros da Grande Lisboa
O Relatório Anual de Segurança Interna destaca o aumento da violência associada a grupos juvenis e jovens motivada por rivalidades entre grupos oriundos de diferentes zonas ou bairros da área metropolitana de Lisboa.

“No que respeita à criminalidade grupal foram efetuadas 2.048 detenções (+13,1 por cento). Relativamente à violência efetuada no âmbito grupal, tem-se assistido, no período pós-confinamento, a um acréscimo na conflitualidade e no nível de violência empregue”.

O documento agora divulgado sublinha as dinâmicas decorrentes de grupos juvenis e jovens e as que envolvem grupos criminosos organizados, em especial os que se dedicam ao tráfico de droga. Segundo o mesmo, a criminalidade grupal, definida como o cometimento de crime por três ou mais suspeitos, aumentou 14,6 por cento em 2023, registando um total de 6.756 ocorrências, o valor mais elevado desde 2014.

Também a delinquência juvenil, que compreende crimes praticados por jovens entre os 12 e os 16 anos, registou um aumento de 8,7 por cento, num total de 1.833, número mais alto desde 2017. Os suspeitos, refere o RASI, são jovens com idades compreendidas entre os 15 e 25 anos de idade, sendo um fenómeno que tem tido uma considerável expressão na Área Metropolitana de Lisboa.

“Continuam a verificar-se algumas dinâmicas associadas a rivalidades entre grupos oriundos de diferentes zonas ou bairros da área metropolitana. Esses conflitos costumam ser referidos em músicas e videoclips de subculturas musicais que apresentam referências hiperlocais e hiperpessoais (especificamente a uma área geográfica, ocorrência em particular, indivíduo ou data específica)”, lê-se no documento, que frisa ainda “o papel desempenhado pelo digital, nomeadamente as redes sociais, que se apresentam como extensão do grupo e do próprio bairro".

Relativamente à delinquência juvenil, o RASI dá conta que ao longo dos anos de 2022 e 2023, foram realizadas algumas investigações e operações levadas a cabo pelas forças e serviços de segurança, mas mesmo assim deve existir “um número considerável de cifras negras (crimes não reportados)".O documento refere também que é nos concelhos de Loures e da Amadora que existe maior número de ocorrências e destaca os locais de crimes junto a centros comerciais e estações intermodais, “potenciando assim a repercussão de notícias em órgãos de comunicação social e consequente sentimento de insegurança”.

"Nota-se ainda uma tendência de episódios (alguns não denunciados) junto de estabelecimentos de ensino, provavelmente porque os autores conhecem algumas rotinas das vítimas e os estabelecimentos que frequentam”, salienta o RASI, dando ainda conta dos grupos associados ao tráfico de droga, nomeadamente os grupos que se dedicam à venda a retalho, com uma presença mais localizada junto dos principais pontos de venda das duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

Segundo o relatório, há um grande número de ocorrências violentas e graves na margem sul do Tejo, principalmente a zona do Barreiro, onde existem ofensas à integridade física, sequestro e rapto de indivíduos associados ao tráfico de droga.

Já na escolas, a Segurança Interna observou “um aumento global de ocorrências em ambiente escolar e de ocorrências de natureza criminal”, incluindo furtos, roubos e tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

“Nesta matéria específica realizaram-se ações de policiamento e de sensibilização junto de escolas, abrangendo a prevenção rodoviária, o bullying, maus-tratos, os abusos sexuais e os direitos das crianças”.
Subida do tráfico e consumo de drogas

O RASI de 2023 revela haver um aumento de 19,4 por cento dos crimes ligados ao tráfico e consumo de estupefacientes, face ao ano anterior. O documento dá igualmente conta de um "aumento substancial” da atividade criminosa de tráfico de droga, bem como das quantidades apreendidas.

O relatório da autoria do Sistema de Segurança Interna regista um total de 37.947 quilos de haxixe apreendidos, 21.721 quilos de cocaína, 41 quilos de heroína e 91.054 unidades de ecstasy. Já no que se refere ao número de apreensões registadas no documento de 2023, o haxixe lidera com 5.806, seguindo-se a cocaína com 2.105, a heroína com 1.073 e o ecstasy com 807.

O documento destaca o crack como responsável por algum alarme social, tendo sido registado nos últimos anos um aumento das quantidades apreendidas. Em 2021 foram apreendidos 36,65 quilos em quatro apreensões, no ano seguinte 4.925 quilos em 325 apreensões e em 2023 foram apreendidos 7.113 quilos em 293 apreensões.

Quanto aos intervenientes no tráfico e consumo, foram registados 9.001, dos quais 7.565 acabaram detidos. Entre os detidos, 6.884 foram homens, dos quais 6.098 com 21 anos ou mais e entre eles 5.986 de nacionalidade portuguesa.

As operações realizadas pelas autoridades policiais levaram à apreensão de 4,51 milhões de euros, 16 embarcações de alta velocidade, 236 viaturas ligeiras, 2.344 telemóveis e 130 armas de vários tipos.

O relatório aponta que, à semelhança do que sucede em outros países, também em Portugal se tem vindo a constatar que diferentes organizações criminosas procuram infiltrar-se em infraestruturas portuárias e aeroportuárias existentes em território nacional, através do recrutamento de trabalhadores de diferentes entidades, designadamente prestadoras de serviços.

“O objetivo é o de conseguirem, com o apoio de tais trabalhadores, criar o que poderemos designar por verdadeiras ‘vias verdes’ para a entrada de grandes quantidades de estupefaciente em território nacional e, concomitantemente, no espaço europeu”, sublinha o documento, que sublinha igualmente que, para além do tráfico em grande escala, verifica-se também “uma crescente utilização de serviços de correios e de encomendas postais, através dos quais as organizações criminosas fazem chegar as drogas ao consumidor final (sobretudo as sintéticas)”.
Crimes de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal
Os inquéritos relacionados com crimes de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal aumentaram exponencialmente no ano passado, com acréscimos em termos percentuais superiores a 150 por cento e de quase 300 por cento, respetivamente, indica o Relatório Anual de Segurança Interna.

Essa tendência de aumento do número de inquéritos por “tráfico de pessoas” e por “auxílio à imigração ilegal” acontece nos últimos anos. Sobre o crime de “tráfico de pessoas”, com relevância para a exploração laboral, a variação em 2023 observa-se “um acréscimo em termos percentuais de 158 por cento”.

Os inquéritos pelo crime de “auxílio à imigração ilegal” registaram um aumento de 298 por cento, havendo também novas investigações sobre a prática dos crimes de “associação de auxílio à imigração ilegal”.O relatório nota que o aumento significativo das duas investigações também se relaciona com a reestruturação do Sistema de Segurança Interna e a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), resultando na transferência de competências para a Polícia Judiciária.

O aumento das investigações levou também a um elevado número de arguidos constituídos e de detidos no ano passado, especialmente os detidos pela prática do crime de “auxílio à imigração ilegal”.

Além disso, em 2023 aumentaram as sinalizações sobre vítimas dos dois crimes, com Portugal a ser essencialmente país de destino de vítimas (355 registos). Neste âmbito, foram sinalizados 57 menores vítimas desse tráfico, a maior parte associadas a uma operação do SEF (Operação Eldorado) e tratando-se especialmente de rapazes com uma média de idade de 16 anos.

Foram sinalizados ao todo 533 adultos presumíveis vítimas de tráfico em Portugal, a maior parte dos casos confirmados associados à mesma operação, homens com idades entre os 18 e os 23 anos, maioritariamente do Brasil, Colômbia e Guiné-Bissau. Os dados indicam ainda que em 2023 foram acolhidas 57 (presumíveis) vítimas nos Centros de Acolhimento e Proteção, das quais 39 do sexo masculino.

A maioria das vítimas foi alvo de tráfico para fins de exploração laboral (incluindo servidão doméstica) mas outras principais formas de exploração foram sexual, mendicidade forçada, adoção ilegal e escravidão.
Ameaça ligada à extrema-direita
Portugal registou em 2023 um agravamento da ameaça ligada aos extremismos políticos, sobretudo de extrema-direita, com a retoma da atividade de organizações neonazis e identitárias.

“No campo dos extremismos políticos, assistiu-se a um agravamento da ameaça representada por estes setores, sobretudo no âmbito da extrema-direita”, alerta o documento, que acrescenta que, após um período de estagnação, as organizações tradicionais e os militantes dos setores neonazi e identitário “retomaram a sua atividade, promovendo ações de rua e outras iniciativas com propósitos propagandísticos”.“Paralelamente, também foram criados projetos e organizações por jovens que estendem o alcance da mensagem extremista a uma nova geração com um perfil distinto”, adianta o RASI.

Este crescimento da extrema-direita, nomeadamente entre as gerações mais jovens, deveu-se, em grande parte, ao “esforço desenvolvido na esfera virtual”, que constituiu o “principal veículo de disseminação de propaganda e motor de radicalização”, refere o documento.

Este recurso aos meios digitais contribuiu, assim, para a proliferação das narrativas extremistas, que atingem um público mais alargado e diversificado, adianta ainda o RASI, ao alertar que o meio virtual tem sido também o “principal viveiro dos `aceleracionistas´, radicalizados pela exposição à propaganda, pelo universo violento do `gaming´ ou até pelo contacto com militantes de outras geografias, alguns associados a células ou grupos de cariz terrorista”.O aceleracionismo é uma tendência associada à extrema-direita que defende uma "aceleração" do capitalismo e o caos para “derrubar” a ordem existente.

Já quanto à extrema-esquerda, o documento indica que também o movimento anarquista e autónomo retomou a atividade de rua em 2023, após um período de estagnação, associando-se a manifestações de massa em torno de causas transversais à sociedade portuguesa, como o direito à habitação ou a melhoria das condições de vida.

No entanto, estes movimentos imprimiram um “cunho ideológico anticapitalista”, recorrendo a atos de vandalismo e a provocações às forças de segurança que visavam “mobilizar os demais participantes para uma luta contra o sistema”.

No último trimestre de 2023, a causa palestiniana também foi apoiada por estes setores, através da participação em manifestações, mas sem registo de incidentes relevantes, refere o relatório entregue no parlamento.

À semelhança do que se verificou a nível internacional, foi no movimento ambientalista de matriz anticapitalista que se observou uma maior radicalização, através do recurso reiterado a ações ilegais e a atos de vandalismo, bem como de uma “tentativa de sabotagem de uma infraestrutura crítica”.

“A causa ambientalista continuou a revelar-se fundamental para o recrutamento de jovens para diferentes setores da extrema-esquerda”, realça o RASI, ao adiantar que, relativamente aos movimentos antissistema surgidos durante a pandemia da covid-19, “perderam quase toda a relevância” em 2023.

Em relação à análise a uma “ameaça terrorista de matriz islamista”, alguns eventos internacionais – como atos de profanação do Corão e a tensão no Médio Oriente – também “tiveram algum eco no seio das comunidades islâmicas” em Portugal. Embora não tenham sido recolhidos indícios concretos sobre o planeamento de ataques terroristas, foram identificados “casos pontuais de apologia do Hamas e dos ataques contra Israel e, igualmente, reações hostis sobre a profanação do Corão”.

A atual conjuntura internacional, adverte o RASI, “favorece o desenvolvimento de processos de radicalização com propensão para a violência, que poderão resultar na execução de ataques terroristas, não estando Portugal imune a este fenómeno”.
Crimes de ódio

O relatório revela ainda que os crimes de ódio aumentaram em Portugal em 2019 e 2020, coincidindo com a pandemia, e nos anos seguintes o aumento manteve-se, mas de forma mais atenuada.

"A maioria dos casos reportados [classificados como crimes de ódio] ocorreu em ambiente digital”
, refere o documento.

Até outubro do ano passado, concluiu, o nível da ameaça terrorista pendente sobre Portugal continuou a ser moderado. No entanto, com o ataque levado a cabo pelo grupo palestiniano Hamas em outubro e a resposta de Israel, regista-se uma “maior complexidade da ameaça terrorista de matriz islamita na Europa”, tendo sido decidido pelo Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, a 20 de outubro de 2023, “aumentar o nível genérico da ameaça terrorista para o nível 3, classificado como significativo”.

Apesar de o nível de ameaça ter subido, o RASI referente a 2023 refere que “não se registaram indícios concretos que apontem para o desenvolvimento de ações terroristas em território nacional”.

A Polícia Judiciária, através da Unidade Nacional Contraterrorismo, “não deixa de acompanhar a evolução da situação relacionada com o terrorismo e extremismo ideológico”, refere o relatório.

Além disso, a ameaça dos fenómenos de radicalização, extremismos (violentos) e terrorismo “mantém-se a um nível semelhante ao dos anos anteriores na maioria dos Estados membros da União Europeia”.

Em 2023, a PJ e a PSP participaram em várias ações e sinalizações de conteúdo ‘online’ radical, extremista violento e de terrorismo em coordenação com unidades de países da União Europeia.

“Não obstante a eficácia destas ações na remoção de conteúdo extremista e terrorista ‘online’, a disseminação deste género de propaganda por indivíduos e organizações terroristas continua a ser um desafio, pelo que é necessário continuar a reforçar a cooperação internacional, bem como as ferramentas e estratégias para enfrentar a divulgação de propaganda ‘online’ por agentes terroristas”, adianta o documento.

c/ Lusa
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