Este guia documental, coordenado por Maria João Collares-Pereira, professora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c), é mais dos que um simples livro. Serve como forma de mostrar as espécies existentes, as ameaças a que estão sujeitas e como as podemos preservar.
Os peixes de água doce são um dos grupos de vertebrados mais ameaçados em todo o mundo e Portugal não é exceção, com mais de 60 por cento das espécies nativas em risco de extinção.
No dia-a-dia, olha-se para o ambiente circundante e não se dá muito valor ao que se passa em redor. A rotina - casa-trabalho-casa - é uma constante e só em alguns períodos pontuais, como fins de semana e férias, é que nos aproximamos de circuitos mais próximos da natureza.
Se a atenção a várias espécies acessíveis ao olhar mais direto já é diminuta, outras mais ocultas pela natureza só se mostram a quem profissionalmente lida com elas. É o caso da fauna dos cursos fluviais. A preocupação com a salvaguarda deste ecossistema circunscreve-se a um pequeno grupo da população.
Neste sentido, querendo dar a conhecer mais sobre estas espécies, a professora Maria João Collares-Pereira, da FCUL, juntou um vasto grupo de investigadores para responder a um conjunto de perguntas sobre este "tesouro" submerso.
Quantas são as espécies de peixes existentes nos cursos fluviais do país e onde as encontramos - foi este o mote para a elaboração do “Guia de Peixes de Água Doce e Migradores de Portugal Continental”.
Uma informação que até existia, embora sem atualização, encontrando-se, como explica Maria João Collares-Pereira da FCUL, dispersa por grupos e a ganhar “pó” nas prateleiras das universidades.
Ainda que a adaptação seja uma constante, a investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa explica que não é por estas espécies serem peixes que basta haver água para que sobrevivam.
“Nós temos espécies que vivem exclusivamente em água doce, dez destas só vivem em Portugal. Outras espécies são endemismos e só existem na Península Ibérica e 19 elementos desta comunidade, considerados exóticos, foram introduzidos nas nossas águas e depois temos um conjunto de espécies migradoras”.
Neste contexto, fazendo uma análise global das ameaças e conhecendo a sua diferenciação, podemos encontrar as mais evidentes. Desde logo as espécies residentes, acantonadas às águas doces, são ameaçadas fundamentalmente pela perda e destruição do habitat natural. Mas não só.
A investigadora explica que a classe dos migradores também é afetada a jusante dos cursos de água, por exemplo quando se fala da construção de barragens ou de obstáculos nos leitos.
“Esses grandes migradores, como o salmão, a lampreia, o sável, o esturjão (agora extinto), entram nos cursos de água doce para realizar o seu potencial biológico, ou seja, para se reproduzirem. Se não conseguirem entrar nos rios e em muitos dos seus habitats mais favoráveis para reprodução, estão a centenas de quilómetros da foz do rio, se eles precisam de fazer toda uma migração no rio e se tiverem obstáculos e não houver passagens específicas para estes peixes, algo que é possível tecnicamente e faz-se em muitos países e infelizmente em Portugal, os existentes não estão a funcionar, temos logo à partida aqui um obstáculo e uma perda de habitat muito significativa para estes migradores”.
Elementos prejudiciais que por vezes são comuns a espécies migradoras e residentes, que procuram zonas dos cursos de água mais oxigenados e que estão a montante e mais próximas das nascentes.
Mas existem outras ameaças, como a extração de areias, captação de água em períodos de seca, agravadas com as alterações climáticas, bem como a introdução de espécies exóticas, sendo a maioria carnívoras.
Ao olhar para a distribuição da fauna no ecossistema terrestre, não será fácil depreender a evolução endémica das espécies nos meios aquáticos. Algo que acontece com maior frequência e regularidade do que nos animais que vivem ao ar livre, como explica a investigadora da ULisboa. “Temos tantos endemismos – coisas só nossas – porque as nossas bacias hidrográficas funcionam como ilhas em termos evolutivos. Razão pela qual a população que está numa bacia hidrográfica, de uma determinada região ou zona, se diferencia das outras, que podem localizar-se mesmo ao lado, ou a poucos quilómetros de distância”, explica.
“O facto deste funcionamento em ilhas faz com que a evolução aconteça mais depressa e crie caraterísticas exclusivas e únicas daquela espécie”, algo muito raro nas espécies terrestres.
Uma riqueza única e a preservar, diz a investigadora, ao contrário dos cursos e lagos no norte da Europa, sempre com caudais de água em abundância, “porque o clima aqui ajuda muito, porque isola, segrega e a evolução é processada dentro e exclusivamente dentro de grupos diferenciados de indivíduos”, mas sempre garantindo a luta pela sobrevivência.
Embora no dia-a-dia nos deparemos com dezenas de exemplares de peixes nos supermercados, tomamos por certo que muitos destes já são criados e reproduzidos em viveiros, minimizando de alguma forma a consciência coletiva dos riscos de extinção.
De acordo com o último relatório estatístico da Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO), apresentado em outubro de 2020, a produção global de peixes, crustáceos, moluscos e outros animais aquáticos tem aumentado, atingindo já um máximo histórico de 178,5 milhões de toneladas em 2018, mais 3,4 por cento do que em 2017.
A contribuição da aquacultura para a produção total de peixes de animais aquáticos tem vindo a aumentar de forma constante, atingindo 46 por cento em 2018 contra 25,7 em 2000.
Em contraponto, o aumento das capturas em 2018 foi impulsionado principalmente pela pesca marítima, cuja produção aumentou de 81,2 milhões de toneladas em 2017 para 84,4 milhões de toneladas em 2018.
Do mesmo modo, a quota das águas interiores no total das capturas globais também aumentou de 8,0 por cento em 2018 para 8,0 por cento em 2018, compensando o declínio das capturas marinhas desde o final dos anos 90.
Em 2030, de acordo com as previsões, a população mundial ultrapassará os oito mil milhões. Se, por essa altura, se mantiverem as percentagens de consumo de peixe, cerca de 18 quilos anuais per capita (Portugal consome cerca de 60 quilos anuais per capita), serão necessárias 29 milhões de toneladas de peixe extra, que se juntam às produzidas e capturadas atualmente.
Com a agravante de em 2030 os oceanos apresentarem reservas em rutura e muitas das espécies extintas. A escalada dos combustíveis, aliada à crise alimentar, é para continuar, prevê a FAO.
Elementos que em conjunto com as alterações climáticas, secas, alteração e perda de habitat natural, introdução de espécies exóticas e poluição fazem com que as espécies nativas decresçam ou/e corram sérios riscos de extinção.
“As espécies carismáticas como os grandes peixes, como o salmão a lampreia, a enguia, o sável, a savelha, essas espécies e o esturjão, todos conhecem, pois são emblemáticas. E têm uma importância económica muito grande”, explica a investigadora Maria João Collares-Pereira. “E as outras todas? Que ninguém sabe onde estão e ninguém vê?”, acrescenta.
Uma preocupação que este livro procura ajudar e esclarecer, como contributo na preservação destas espécies, muitas delas únicas em Portugal e na Península Ibérica.
Além deste guia, existem também os designados livros vermelhos, que indicam o estatuto de ameaça das espécies selvagens, de acordo com os critérios que avaliam o risco de extinção, e apresentam informação sobre as populações, ameaças e medidas de conservação. Desta forma, pretendem chamar a atenção para a diminuição da diversidade biológica à escala regional e global.
Relativamente às espécies aquáticas, os principais fatores de ameaça identificados estão de uma forma geral relacionados com a destruição, degradação e fragmentação dos habitats naturais, resultantes das atividades humanas.
. O controlo da poluição (poluição aquática, lixo flutuante, lixo persistente, etc.);
. O restabelecimento do regime hidrológico natural e da continuidade longitudinal dos rios;
. A conservação das galerias ripícolas e das zonas húmidas (ex. charcos, minas de água, lagoas e pauis, estuários e zonas costeiras).
Em Portugal, a última revisão do Livro Vermelho dos Vertebrados teve lugar em 2005 e incluiu a avaliação de peixes dulçaquícolas e migradores, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Daí a criação deste novo guia, que vem de alguma forma ocupar a falha existente neste campo.
Um guia atualizado para académicos e pescadores
O “Guia de Peixes de Água Doce e Migradores de Portugal Continental” é um documento oficial que pretende servir como base atual das espécies vertebradas existentes no território continental, mas também um exemplar de memória futura.
“Este guia é uma ferramenta de elevado valor prático e científico para os que se interessam por esta área, incluindo pescadores lúdicos e desportivos, técnicos e gestores ambientais, professores e alunos, para além do público em geral”, explica Maria João Collares-Pereira.
Com 292 páginas, o guia editado pela Edições Afrontamento contou com o apoio da Ciências ULisboa e da Fundação para a Ciência eTecnologia, através do cE3c e do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da ULisboa, da Universidade de Évora, da Biota – Estudos e Divulgação em Ambiente, e da Câmara Municipal de Lisboa – Lisboa Capital Verde Europeia 2020.
Maria João Collares-Pereira, coordenadora deste guia, contou à RTP que muitas vezes lhe ligavam a perguntar se determinadas espécies existiam em algumas regiões, para estudos académicos ou mesmo para desporto lúdico e pesca. “Agora têm aqui um manual que lhes introduz essas distribuições e que explica diferenças e semelhanças entre as espécies”.
“Algumas espécies, como a lampreia-marinha, o sável, a enguia-europeia e o achigã, são bem conhecidas do público; mas muitas outras, como os barbos, as bogas, os escalos que vivem nos nossos rios, são praticamente desconhecidas da maioria dos portugueses. O valor destas espécies é incalculável, uma vez que são em muitos casos exclusivas dos rios ibéricos ou dos rios nacionais, o que reforça a importância da sua divulgação também do ponto de vista da conservação”, diz Maria João Collares-Pereira.
A descrição de todas as espécies nativas residentes, migradoras e visitantes marinhas descritas à data, bem como das espécies exóticas presentes nos rios e albufeiras de Portugal, num total de 62 espécies, surge acompanhada de ilustrações científicas da autoria de Cláudia Baeta e de Pedro Salgado, sob a forma de aguarelas originais e mapas de distribuição em Portugal.
O guia está já à venda nas livrarias e surge em coautoria com outros investigadores portugueses - Maria Judite Alves, Filipe Ribeiro, Isabel Domingos, Pedro Raposo de Almeida, Luís da Costa, Hugo Gante, Ana Filipa Filipe, Maria Ana Aboim, Patríca Marta Rodrigues e Maria de Filomena de Magalhães. Aparece numa altura em que o agravamento das pressões sobre os ecossistemas fluviais em Portugal e em toda a região mediterrânica, devido à destruição de habitats, à introdução de espécies exóticas e às alterações climáticas, entre outras, requer a mobilização de todos.