Passadeiras geram alerta e jardins relaxam. Uma mochila "mediu" emoções em Lisboa

As cidades afetam a saúde mental? Um projeto coordenado por duas faculdades portuguesas quer provar que sim. Quase 90 voluntários andaram por Lisboa enquanto recolhiam dados ambientais e corporais. Os investigadores querem pôr os resultados ao serviço dos cidadãos e da política. Neste trabalho multimédia da Antena 1 e da RTP, siga com pormenor seis das 20 caminhadas realizadas - em Belém, na Lapa, nos jardins da Gulbenkian, na Baixa, na Graça e no Parque das Nações.

As árvores servem de barreira para a rua, mas nenhuma vence o ruído dos aviões que sobrevoam Lisboa. Já o barulho dos carros é fintado no centro do jardim.

“Faz-nos esquecer que estamos numa cidade”, comenta Maria Teresa Cabrita, bióloga, que considera o recinto da Fundação Calouste Gulbenkian uma das “mais bonitas e mais agradáveis” zonas de Lisboa, pela mancha verde e pelos recantos que tem.

Tal como Maria Teresa, o técnico de farmácia Ricardo Pato e o estudante André Alves elogiam a tranquilidade do jardim, só que desta vez o passeio aqui é diferente e não se livram de olhares curiosos e de soslaio.


O estudante e investigador Rafael Ramusga prepara o eletroencefalograma | Foto: Pedro A. Pina - RTP

Enquanto preparam cada um para se tornarem numa espécie de laboratórios humanos, Ana Bonifácio e os dois colegas investigadores deixam escapar um riso (Ana até solta dois) ao explicar o que os voluntários vão fazer nesta experiência.

“Vai andar o mais naturalmente possível, esquecendo que tem uma touca de eletroencefalograma, que tem um eletrocardiograma e uma estação meteorológica nas costas”, diz Ana Bonifácio, do projeto "eMOTIONAL Cities".

A arquiteta e investigadora Ana Bonifácio ajuda André Alves a colar os adesivos com os elétrodos do eletrocardiograma

Da cintura para cima, há fios e mais fios, e cada equipamento tem uma função. As costas dos voluntários captam o ambiente: a temperatura, o vento, a radiação solar e partículas em suspensão PM2.5, que ajudam a medir a poluição.

Na cara, o que parece ser um microfone ouve o ruído da cidade. Mais acima, uns óculos eyetracking gravam o percurso e registam o que chama a atenção dos voluntários.

Como se fosse um polígrafo para avaliar a verdade, há sensores nos dedos que indicam a resposta galvânica da pele - medem o suor e “níveis de alerta” (por outras palavras, o estado de prontidão de uma pessoa).

Também há sensores para vigiar o batimento cardíaco (o ECG) e o cérebro (o EEG).

Ao todo, 32 elétrodos servem “de antena para medir a atividade elétrica”, explica o estudante e investigador João Amaro, e trazem um pormenor desagradável: uns pequenos picos que são essenciais para detetar a informação do cérebro trazida em gráficos que surgem em tempo real num ecrã.


A touca com os picos que vão detetar a atividade cerebral | Foto: Pedro A. Pina - RTP

Depois de mais de um quilómetro e de responderem a um questionário, há uma opinião praticamente unânime: nove dos dez participantes sentiram-se calmos e relaxados.

Ricardo Pato diz que “ficamos bem connosco próprios”, recordando “o vento a bater, as folhas das árvores a telintarem, o cheiro e a água a correr”. O aroma “fez maravilhas à cabeça” de Maria Teresa Cabrita, enquanto André Alves se sentiu “em piloto automático”.

Reportagem de Gonçalo Costa Martins - Antena 1

Uma experiência com pernas para andar

O projeto “eMOTIONAL Cities” (Cidades Emocionais) é coordenado pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território e pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Envolve vários países e Lisboa foi um dos casos de estudo.

Pretendeu-se provar que o ambiente das cidades tem influência na saúde mental, realizando cinco experiências dentro e fora de portas.

A caminhada feita no jardim da Gulbenkian foi apenas uma das 20 realizadas entre abril e outubro do ano passado, com quase 90 voluntários.

Já na reta final do projeto, os investigadores têm os primeiros resultados que partilharam com a Antena 1 e a RTP Notícias.

Focaram-se em seis percursos que pode conhecer em detalhe abaixo, ouvindo também o relato de outros voluntários.
 
Belém
Lapa
Gulbenkian
imagem rua augusta
Baixa de Lisboa
sé de lisboa
Graça
Parque das Nações

Ruído, multidões, trânsito e natureza: tudo mexe com as emoções

Com muitos pontos da cidade expostos a níveis de ruído superiores ao limite recomendável de 65 decibéis, o professor e investigador do IGOT Paulo Morgado sublinha que a natureza pode servir de “barreira”.

“O ruído é um dos gatilhos para maior resposta em termos de stress em espaços urbanos”, aponta, pelo que “uma barreira ou uma cortina de espaço verde, muitas vezes, consegue abafar o ruído emitido através das fontes, como o tráfego automóvel”.

Frisando que o verde “só por si” não dita emoções, Paulo Morgado recorda algumas das caminhadas para dizer que, “se estiver com muita gente, pode não ter o efeito que normalmente lhe está associado no espaço de relaxamento”.

Se a natureza ameniza não só o ambiente, como também as pessoas, as estradas colocam os peões em prontidão.

“Muitas vezes naquelas zonas de cruzamentos, quando a pessoa tem que, por exemplo, atravessar uma passadeira, fica com um estado de alerta”, afirma o médico, professor e investigador da FMUL Bruno Miranda, acrescentando que também pode fazer aumentar o batimento cardíaco. Bruno Miranda (à esquerda) e Paulo Morgado (à direita), coordenadores do projeto "eMOTIONAL Cities"

A partir dos primeiros resultados que têm, Bruno Miranda acredita que sai reforçado o papel que a natureza pode ter como se fosse uma “receita médica”.

“Começamos a ter a tal evidência que é precisa quando dizemos ‘vamos prescrever a uma pessoa com problemas de saúde mental uma caminhada num espaço mais natureza’”, diz.

Depois de recriarem a rua virtualmente, mudaram elementos urbanísticos como a fachada dos edifícios, os passeios, a presença de mais árvores, mais mobiliário urbano e menos carros, o investigador diz que encontraram diferenças.

"Há a evidência de que estas pessoas têm maior capacidade de orientação naquele espaço”, aponta.

Sobre o que chama a atenção no espaço público (os óculos que os voluntários usavam gravaram as caminhadas), Bruno Miranda destaca os “estímulos de muito curta duração e inesperados”.

Exemplifica: “qualquer carro que passa e buzina”, sendo que “olhamos muito para as faces de outras pessoas” e ainda a sinalética, como sinais de trânsito.

Depois de começarem a trabalhar em 2021 nestas questões da neurociência e do planeamento urbano, os investigadores querem pôr o conhecimento adquirido ao serviço da sociedade e da política.

O projeto “eMOTIONAL Cities” vai ter dois dias de eventos nos dias 25 e 26 de fevereiro, no MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa. Pretendem apresentar resultados e demonstrar as tecnologias que usaram nas experiências.