O que as redes sociais e as fake news fizeram às mentiras de 1 de abril

por Graça Andrade Ramos - RTP
Em 2013, um ator sul coreano "transformou-se" em Kim Jong Il, e deixou que muitos turistas se fotografassem com "o líder da Coreia do Norte". Reuters

A piada de identificar as notícias que eram mentira publicadas no dia 1 de abril, a cada ano, era uma brincadeira tradicional até há poucos anos. Nem todos lhe achavam graça mas, agora, assumiu laivos de perigo e a palavra de ordem entre os jornalistas é contenção.

Antes, até era fácil identificar a mentira, habitualmente tratava-se da notícia, mais ou menos estranha ou divertida, que só um dado jornal, e mais nenhum, publicava. Era um desafio à imaginação do(s) autor(es) e uma comunicação direta entre jornalistas e os seus leitores.

A realidade, agora é outra, com muitos jornais a recusarem publicar notícias falsas por brincadeira, em tempos de fake news e de redes sociais.

As regras mudaram. Uma mentira, mesmo de brincadeira, pode de repente assumir credibilidade e semear a confusão e a desinformação, devido a um sem número de partilhas nos dias seguintes a 1 de abril.

Em Portugal, Pedro Aniceto, internauta pioneiro e seguido por multidões ávidas do seu fino humor, publicou, a 1 de abril de 2018, a história de uma travessia a pé que iria conseguir fazer daí a dias, entre a ilha Terceira e a Ilha do Pico, nos Açores, graças a uma conjugação planetária rara que iria afetar as marés e tornar possível a proeza.

Meses depois - talvez ainda hoje - continuava a receber comentários interessados, de outros internautas crédulos, apesar de, entre os milhares de comentários, ele próprio e muitos dos seus seguidores habituais, alertarem de vez em quando para o facto de ser "brincadeira de 1º de abril".
Os algoritmos também têm culpa
A culpa nem sempre é dos internautas desatentos às datas de publicação destas "notícias".

Os célebres algoritmos, responsáveis por selecionar o conteúdo que surge nas pesquisas da Google ou nos murais dos utilizadores, também assumem a sua quota parte no fim da tradição, até porque sentido de humor (ainda) não é com eles.

O jornal francês Le Monde citou segunda-feira, num artigo de análise, dois casos, franceses, em que notícias de 1 de abril - a desistência de um candidato à presidência da Câmara de Paris para seguir uma carreira na Amazon, e o artigo de um blog a anunciar a troca de programa de dois pivots rivais - surgiram em primeiro lugar nas pesquisas do motor de busca da Google.

Também a Apple News caiu na armadilha do jornal Le Point e difundiu amplamente entre quem a lê em França, a notícia da "descoberta da primeira espécie inteligente que se auto-destruiu", sobre uma pesquisa que nunca se realizou.

O jornal concluiu o artigo com a frase "Le Point deseja-vos um bom 1º de abril!". Apesar disso, para o jornal foi a sorte grande, graças ao grande número de visualizações que, devido ao algoritmo da Apple, a história registou... e talvez continue a registar.
A verificação... que ninguém faz
De facto, o aviso no final do artigo do Le Point não terá sido lido pela maioria dos leitores. De acordo com estudos de entidades dedicadas a pesquisas numéricas e estatísticas - por exemplo à rede social Twitter -, seis em cada 10 internautas partilham conteúdos e informação sem sequer ter lido ou confirmado o que partilham.

A Google permite que qualquer pessoa verifique a origem de uma fotografia, para despistar se está a ser usada para ilustrar uma notícia falsa e poder denunciar a situação e interromper o ciclo da mentira.

Infelizmente, o efeito da medida é semelhante ao de uma gota de água num oceano tempestuoso.

Se no próprio dia 1 de abril muitas pessoas desconfiam de antemão e presumem até que uma história extraordinária é mentira, nos dias seguintes esta atenção perde-se e a credulidade aumenta.

Por isso, nesta era digital, muitas mentiras de 1º de abril mantêm-se a circular anos depois, enredando novos incautos na armadilha.
Semear a dúvida
Com o advento da propagação de informações falsas ou produzidas com objetivos de propaganda, através das redes sociais, as chamadas fake news, o 1º de abril está assim a tornar-se, nas redações, um dia de maior prudência.

A maioria dos jornais começou, de mansinho, a renunciar à produção da "sua" mentira, já que a história, apesar de todos os avisos, poderá vir a ter um desagradável efeito boomerang.

Outra razão é o perigo, cada vez mais real, de semear a dúvida na mente dos leitores, numa época em que a credibilidade dos meios de comunicação anda pelas ruas da amargura. Não é bom alimentar a fera, explicaram jornais e bloggers da França à Escandinávia.

Basta olhar para o meme da primeira página do fleumático Financial Times, com a notícia de que o Governo britânico proibira as mentiras do 1º de abril "devido ao estado da realidade".


A imagem já está a fazer o seu caminho nas redes sociais e a provocar gargalhadas. Mas, quantos acreditaram que era verdade? Sinal dos tempos.
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