Foi padre português, revolucionário brasileiro, cooperante em Moçambique. Privou com os grandes do mundo em Moscovo e partilhou a sorte dos camponeses no sertão nordestino. Preso, torturado, libertado, voltou a Portugal e foi jornalista da RTP. Morreu hoje, aos 88 anos de idade.
Foi depois para o Brasil, a convite do arcebispo do Maranhão. Deu aulas na universidade e fundou uma paróquia. Queria ser entendido e recusou dizer missa em latim. Disse-a depois em português, desafiando uma Igreja que ainda tinha por fazer o aggiornamento do Concílio Vaticano II.
Mas a mensagem nada valia sem a acção: Alípio de Freitas empenhou-se em organizar a criação de uma escola e de um posto médico. Envolveu-se na luta política e apoiou a candidatura de Miguel Arraes ao governo do Estado de Pernambuco, numa ampla coligação de comunistas, trabalhistas e social-democratas. Essa ousadia valeu-lhe um primeiro sequestro por um grupo paramilitar e detenção durante mais de um mês à ordem do Exército.
A detenção não o intimidou, antes acresceu a sua determinação. Naturalizou-se brasileiro e, ao lado de Francisco Julião, tornou-se co-fundador das Ligas Camponesas. Organizou a ocupação de latifúndios no que era um sinal precursor do actual Movimento dos Sem Terra.
O dirigente bloquista Alberto Matos, que militou com Alípio na fase final da vida deste, recordou recentemente a indignação que ecoava ainda na voz do amigo, várias décadas depois, sobre os pistoleiros pagos pela oligarquia terratenente para matarem camponeses pobres, que queriam terra para dar de comer aos filhos.
Depois de ter enterrado vários desses pacíficos ocupantes de terras, Alípio cada vez mais se foi decidindo a organizar a auto-defesa do movimento: pistoleiros e mandantes deveriam doravante recear as consequências dos seus crimes. Viria a ser citado anos mais tarde com o apelo: "Trabalhadores, ontem vos ensinei a rezar e hoje aqui estou para ensinar-vos a pegar em armas e lutar".
Com o golpe militar de 1964, o ex-padre partiu para Cuba, onde recebeu instrução de guerrilha. Antes, em 1962, estivera na URSS, para participar no Congresso Mundial da Paz. Aí conheceu o dirigente soviético Nikita Kruchev, o poeta chileno Pablo Neruda e a lendária dirigente espanhola Dolores Ibarruri.
Na clandestinidade, foi dirigente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Em maio de 1970 foi capturado e sujeito a intensa tortura. Recusou sempre prestar declarações e apenas deve a vida à ampla campanha de solidariedade internacional de que foi alvo. Nessa campanha se inscreve a canção que lhe dedicou Zeca Afonso, no álbum Com as Minhas Tamanquinhas.
Libertado em 1979, após várias intervenções da diplomacia portuguesa, foi viver para Moçambique, e pôs a sua expriência nas Ligas Camponesas ao serviço da reforma agrária no novo país lusófono. Foi alvo de um atentado dos serviços secretos sul-africanos, que, por engano, vitimou um companheiro da mesma cooperativa onde trabalhava.
Regressou a Portugal ainda na década de 1980, tendo trabalhado na RTP até 1994. Foi co-autor de vários programas (“Fim de Semana”, com Mário Zambujal, Carlos Pinto Coelho e José Nuno Martins, “À procura do socialismo”, com Mário Lindolfo). Foi também eleito para a Comissão de Trabalhadores da RTP. A actual CT fez-se representar ao lado de centenas de pessoas, algumas delas trabalhadores da RTP, numa homenagem a Alípio de Freitas, em janeiro de 2017, recordando esse seu mandato precursor.
Embora tivesse perdido completamente a visão nos últimos anos, Alípio de Freitas continuava a ser uma presença constante, sempre guiado pela sua companheira Guadalupe, em movimentos de solidariedade internacional ou de protesto cívico. Ainda há poucos dias, recém-saído de um internamento hospitalar, interveio de forma marcante numa cerimónia realizada no Museu do Aljube.
O velório de Alípio de Freitas decorre na Basílica da Estrela. O funeral realiza-se quarta-feira para o cemitério do Alvito, Alentejo, onde viveu uma parte dos seus últimos anos.