José Ribeiro. O homem da rádio que sonorizou a madrugada da revolução

por Carla Quirino - RTP
Carla Quirino - RTP

José da Silva Ribeiro trabalhava no Rádio Club Português como operador de som e, durante aquela madrugada de 1974, foi buscar os discos proibidos arrombando um armário. Diz-se "amante da palavra e de músicas com conteúdo político" e, por isso, criou uma sonoplastia para marcar a mudança e para que os ouvintes se apercebessem de que a liberdade estava a chegar.

Pela mão de José Ribeiro, há 50 anos, o Rádio Club Português (RCP) amanheceu com as músicas que deixaram de ser proibidas.

E quem é José da Silva Ribeiro? Operador de som, sonoplasta, realizador. Tem 85 anos, nasceu a 3 de dezembro de 1938 na aldeia de Cristêlo-Côvo, no concelho de Valença do Minho.

A residir em Odemira, orgulhosamente refere ser do Partido Comunista desde que nasceu. Resistência e Liberdade são palavras que sempre lhe ressoaram na cabeça e coração. Veste uma t-shirt branca onde está inscrito o número icónico: 46664. “É o número de prisioneiro de Nelson Mandela”, diz, ao receber a RTP.

Com um brilho nos olhos, desfolha de imediato uma pasta cheia de memórias e apresenta-se: “Sou o Zé Ribeiro, filho e neto de presos políticos”.

“A PIDE tentou sempre dar cabo da família dos Ribeiros. Aliás, o Silva Pais, na altura ainda inspetor das Finanças (último diretor da PIDE/DGS), ia muitas vezes à farmácia do meu pai. O meu pai era proprietário de uma farmácia em Paredes de Coura”.

O pai de Zé, Luís Ribeiro, nunca deixou que “lhe cortassem a raiz ao pensamento, sempre protestou e deixou essa herança para lutar pela liberdade”, argumenta.

"Nos dias como o 1.º de maio, a GNR andava sempre a rondar e levava muitos homens presos”, entre eles o pai e avô de Zé. Quando o pai Ribeiro era preso, os cinco filhos, ainda todos crianças, apercebiam-se e a mãe tentava confortá-los : “O papá foi preso mas um dia destes ele volta”.

“A minha avô materna, quando sabia que iam levar o meu pai, reunia-se com outras mulheres como ela e com enxadas e foices e faziam-lhes frente. Iam para a estação do comboio, para não deixarem passar os presos políticos. E gritavam: “mas vocês vão presos porquê”.

“E nós, crianças, ouvíamos as conversas. Aliás, nós tínhamos sempre uma escola política em casa. O meu pai contava-nos tudo, exceto uma coisa - nunca levou uma pancada, nunca levou um encontrão, nem os outros que estavam presos”. Já o avô contava as sessões de tareia quando esteve preso em Angra do Heroísmo, nos Açores, "de onde regressou tuberculoso", explica.

"Era uma coisa esquisita, estava tudo fechado, estando as portas abertas, havia sol e nós só tínhamos frio", decreve Zé.
O primeiro ato político durante a escola primária

Por cima do quadro de ardósia na sala aula estavam os retratos de Óscar Carmona, presidente da República, António Salazar, presidente do Conselho, e um crucifixo no meio. Para Zé (aluno da quarta classe), de ouvir as conversas em casa, já sentia que se tinha que combater aquelas figuras. E relembra: “a minha primeira atitude política foi quando tinha dez anos”.

Um dia, o professor Nogueira deixou Zé Ribeiro a tomar conta da turma pois o rapaz era respeitado por todos devido a sua “valentia”.  Durante esses momentos, Zé reparou que perto da escola tinha passado um rebanho. Decidiu então ir à rua apanhar “bosta de vaca” para trazer para dentro da sala. “Puxei uma cadeira e toca de borrar as fotografias do Carmona e de Salazar”, descreve. 

Quando o professor regressou deparou-se com um cheiro desagradável na aula e ao descobrir o feito, percebeu de imediato que o autor seria o Zé. De castigo, o rapaz teve que ir limpar tudo e o pai foi chamado ao professor. “Luís, olha que o teu filho borrou os quadros do Salazar e do Carmona. Eu estou de acordo, mas isto pode ser perigoso”. E aí o pai repreendeu o filho: "ó Zé, tu tens que ter cuidado. Embora concorde, há coisas que tu fazes que depois quem vai pagar por isso sou eu. Mais tarde, serás tu”.
Contacto com gente da palavra em Lisboa
No fim dos anos 40, o pai Ribeiro foi preso em Lisboa, ora no Aljube ora em Caxias. A mãe arrastada pela prisão do marido acabou por vir para a capital, seguindo-lhe os filhos. Luís Ribeiro acabou por morrer aos 38 anos, fora da prisão. Zé ainda era adolescente.

A par das questões políticas, Zé cresceu com o “sonho do teatro ou cinema que ouvia nas histórias da telefonia". Depois de trabalhar numa tabacaria, Zé descobriu um laboratório de cinema chamado Ulisseia Filmes, em Campolide, que fazia a revelação das peliculas. “Fui lá, bati à porta e pedi um emprego”, conta. “Um dos patrões era Aquilino Mendes”, um conhecido realizador e operador de imagem português.

No laboratório, cruzavam-se muitas pessoas ligadas às artes do palco, cinema e escrita. Um dia “conheci um homem espantoso, homem da palavra, era poeta e chamava-se José Gomes Ferreira. Ele apercebeu-se que eu era um analfabeto de poesia mas interessado. Falou comigo como um professor. Era o que me interessava, estar ao pé de pessoas que me dessem um curso sem ter que ir para as aulas, até porque eu não tinha hipótese nenhuma pois tinha que trabalhar. E o que eu gostava de o ouvir”.

Gomes Ferreira acabou por dizer umas linhas em tons de liberdade e Zé agradeceu e comentou: “a polícia não deve gostar dessa escrita”. Gomes Ferreira, admirado questionou-o. “Como sabes disso? Eu respondi que quando o meu pai falava em liberdade era preso”. Criou-se de imediato laços ideológicos entre os dois, dando a Zé ainda mais vontade em lutar contra a ditadura.

No percurso da adolescência do Zé, durante a década de 50, sucederam então várias etapas. Vai trabalhar no cinema com Aquilino Mendes que ia fazer um filme com Arthur Duarte (realizador). Aí conheceu Rogério Paulo e Fernando Curado Ribeiro, "meus grandes amigos", diz. 

No fim das filmagens, Curado Ribeiro leva o jovem para trabalhar no seu teatro para crianças, no ABC, no Parque Mayer. Depois de três anos, entre a venda de bilhetes e ajudar nos cenários, José acabou, mais uma vez, pela mão de Curado Ribeiro, por ser levado para a Rádio Renascença. Em 1958 entrou como telefonista mas rapidamente aprendeu a mexer com os gravadores e equipamento de som. Passou então para operador de som e a fazer as emissões.


Primeiro cartão de funcionário do RCP | Carla Quirino - RTP

No ano de 1965, é convidado para integrar os quadros do Rádio Club Português - RCP: “agora, eu já era um homem da rádio”. Sem esquecer a herança política, Zé mantinha-se com sede de liberdade. E as noites do Zé encheram-se de ainda mais ideais. Aproveitava as emissões de madrugada para colocar canções “proibidas”.
Encontros clandestinos
Na década de 60, já estava identificado pelo regime de Salazar como comunista.

Os dias e as noites de Zé levaram-no, cada vez mais, para os encontros antifascistas, muitas vezes vigiados pela polícia politica. Aproximou-o da resistência clandestina e dos que usavam a palavra como arma.

Entre as peças de teatro encenadas com Rogério Paulo, nas caves do Hospital de Santa Maria, que sonorizava com as músicas e poemas sobre a luta, Zé também frequentava concertos e tertúlias onde a palavra liberdade era repetida. José Afonso era um dos fios condutores. E os laços cresceram entre os resistentes.
O amigo Esoj Osnofa ou Zeca Afonso
A maioria dos discos proibidos pelo regime fascista estava guardada num armário trancado. Porém, Zé Ribeiro tinha alguns vinis que “escondia entre a roupa” do seu armário, nomeadamente, os de Zeca Afonso.
 
 
Fotocópia de lista de funcionários da rádio feita pela PIDE. À mão, está anotado junto ao nome de José da Silva Ribeiro: "diz-se abertamente elemento comunista" | Carla Quirino - RTP

Na época, o nome de código para se falar no cantor era Esoj Osnofa, ou seja José Afonso dito ao contrário. Este nome de código era referido no suplemento a Mosca do jornal Diário de Lisboa, com frequência, e utilizado por quem sabia o significado.

Muitas vezes era repreendido pelos censores que lhe lembravam: “há um edital no corredor com a lista das músicas que não podem ser passadas, mas eu dizia que não tinha visto”. Quando repetia certa faixa, “os censores vinham com o prego e riscavam o disco”, explica Zé.  

Entre os censores, Zé reporta que havia um que ganhou a "alcunha de Moita Divina".



Frequentador das mesmas reuniões ou concertos clandestinos, Zé tornou-se amigo do Zeca. Praticaram judo juntos e conta um dos episódios curiosos sobre a sua amizade. Passou-se na RCP ainda antes do 25 de abril. 

Um dia Zé estava a trabalhar e foi chamado à porta. Lá estava Zeca Afonso que lhe pediu para entrar para fazer a barba. Zé ficou admirado e disse-lhe: “Há uma barbearia mais acima” mas o cantor insistiu: “Arranja-me uma casa de banho com água, anda lá”. 

Zeca era sobejamente conhecido por ser um músico antifascista e já ter estado preso, por isso atraía os olhares. Zé acabou por acompanhá-lo. Com a maior das descontrações, lâmina em punho e sabonete na pele, Zeca lá desfez a barba. “Pronto, está porreiro” agradeceu e seguiu caminho. “O Zeca era assim”, descreve o sonoplasta, sorrindo.
Mensagem musical da revolução

Zé não estava a trabalhar nessa madrugada do 25 de Abril de 1974. Foi acordado com um telefonema da Clarisse Guerra (locutora e primeira mulher do RCP que leu comunicados do MFA) para avisar Zé para ouvir o RCP. A emissão deveria estar ocupada com o programa “A noite é nossa” de Ruy Castelar, porém em vez disso, estava a passar marchas militares. De imediato, Zé dirigiu-se à sede da RCP, na Rua Sampaio e Pina.

Quando chegou, viu o jornalista Joaquim Furtado que estava de serviço nessa madrugada e perguntou: “Quim, o que é que se passa?”. O jornalista respondeu que vários elementos das Forças Armadas tinham entrado rádio adentro a dizerem que “estão do lado do povo”.

Cerca das 3h15 o RCP tinha sido ocupada pelo Grupo de Comandos N.º 10. A ação foi apoiada por uma Companhia do Batalhão de Caçadores 5. Entre os oito oficiais estava o major José da Costa Neves.

Zé acabou por se aproximar dos militares a arriscar a pergunta: “de que lado estão”. “Viemos libertar o país do fascismo e da ditadura” deixou claro o major Costa Neves, recorda.

De acordo com a memória de Zé, estavam ainda Franklim Rodrigues e Fernando Humberto, que também eram operadores da rádio. O primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA) foi lido pelo jornalista Joaquim Furtado às 04h26, e o segundo vinte minutos depois. 

"O ambiente dento da rádio entre os militares era como uma família, todos muito amigos, o grupo agia na perfeição". Zé recorda que um outro militar, capitão Artur Mendonça de Carvalho, apontou uma arma a Joaquim – "Está descarregada. É só para caso, se alguém entrar, vai achar que eu estava a forçá-lo". 

Nessas primeiras horas prevalecia o receio de alguma coisa correr mal na operação contra o regime fascista e para proteger a equipa do RCP, era encenado um quadro de coação. "Não há nada como prevenir" concluiu o militar, e o "segundo comunicado foi lido", relata Zé.

Lembra-se que chorava e pensava que seria a melhor prenda para o falecido pai. Lembrou-se também que ninguém iria acreditar que estas movimentações militares eram antifascistas.

Era urgente alterar o tipo de música para os ouvintes reconhecerem os sinais de liberdade, e por isso Zé sugeriu aos oficiais: “vou buscar os discos que estão proibidos e começar a emiti-los. E também é preciso arranjar um indicativo para anteceder os comunicados”.

A escolha do sonoplasta para o tal indicativo recaiu sobre a marcha “A life on the ocean wave”, composta pelo britânico Henry Russel. Após acompanhar os comunicados do MFA em abril de 74, a música perdurou para além deste período e ficou associada ao Movimento, até aos dias de hoje.

Por sua vez, Zé Ribeiro precisou de arrombar as portas do armário para tirar os discos proibidos pela ditadura.

Esse episódio foi resgatado em 1977, quando a então recém-estação de rádio, a Rádio Difusão Portuguesa (RDP), emite um programa especial para assinalar três anos passados da revolução. Com realização e locução de Luís Filipe Costa (que também leu comunicados do MFA três anos antes), o programa chamado “A canção antes e depois do 25 de Abril”, entrevista José Ribeiro sobre a nova mensagem musical que se passou a ouvir nessa madrugada.


"Embrulho perfeito"
Na vésperas do 50.º aniversário do 25 de Abril, Zé Ribeiro explica à RTP a fotografia tirada por um fotógrafo do Diário de Lisboa que registou o momento de resgate dos vinis proibidos. Ao longo da conversa, José foi fazendo várias paragens para se recompor da emoção das memórias. 

Entre o conjunto de músicas e a marcha do MFA que cruzaram nessa madrugada pela mão de Zé, o sonoplasta sublinha: “esta foi a minha pequenina parte, que ofereci ao grupo que fez o 25 de Abril".

Se a operação militar arrancou ao toque de "E depois do adeus" e "Grândola Vila Morena", Zé acaba por revelar algumas das faixas que alinhou no gira-discos que composeram o “embrulho mais perfeito” de músicas que podia ter escolhido para marcar a mudança e enviar sinais aos ouvintes dos “Rumos Novos”. As primeiras escolhas passaram pelas palavras musicadas de Zeca Afonso, José Saramago e Manuel Freire, recorda.



Entre os papéis e fotos que tem em cima da mesa, Zé encontra uma nota manuscrita com alguns versos. Depressa conta que fazem parte de um poema escrito por Manuel Alegre e cantado por Adriano Correia de Oliveira, a "Trova do vento que passa". E a propósito destas palavras, este guardião de memórias acredita que haverá sempre alguém que diga não ao fascismo.



50 anos depois, Zé Ribeiro relembra que “as democracias estiveram sempre em risco. Uma democracia não é um símbolo de aço e ferro. É preciso estarmos de volta dela. É preciso haver um braço que esteja estendido ao outro braço para ela não se desmantelar”.


Vídeos: Imagem e edição de Carla Quirino
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