A jornalista da RTP, Cândida Pinto, recebeu o prémio Mário Mesquita da Sociedade Portuguesa de Autores.
Na ocasião, a jornalista pronunciou o discurso de aceitação do prémio que seguidamente se reproduz.
Boa tarde a todos,
Muito obrigada à Sociedade Portuguesa de Autores aqui na pessoa do seu presidente José Jorge Letria por este prémio. Também agradeço a presença de Ana Medina Mesquita, filha de Mário Mesquita, que conheci hoje aqui e a quem muito agradeço as palavras que proferiu.
É uma elevada honra e um imenso orgulho receber este prémio com o nome de Mário Mesquita. Sinto-me muito pequena perante quem foi Mário Mesquita.
Não tive a sorte de ter sido aluna dele, mas não há colega jornalista que tenha passado pelas aulas dele e que não abra um sorriso de entusiasmo e ternura para evocar o professor. Pelas qualidades humanas, pelo rigor e exigência que Mário Mesquita colocava no que fazia. Pelas oportunidades de pensamento que abria, pela curiosidade com que contaminava os que andavam à volta dele. Pelo ser livre que era. O académico, o teórico, o jornalista. Uma personalidade inspiradora e prestigiante que tanto fez pelo jornalismo em Portugal.
O jornalismo é sempre um exercício arriscado onde é preciso ter a mente aberta para interpretar sem preconceitos ou ideias preconcebidas a realidade. E a realidade está sempre em mudança, ultrapassando tantas vezes a ficção. Ao mesmo tempo o jornalismo dá-nos esse privilégio de andar sobre a fina linha da atualidade, de vibrar com os acontecimentos, de nos aproximarmos dos factos com paixão e racionalidade e dúvida.
A dúvida. Passei uma boa parte do primeiro semestre deste ano na Ucrânia e, ao início, tive imenso pudor em usar a palavra guerra. Nos primeiros dias não a usava. Tinha dúvidas. Porque tenho muito respeito e desprezo pelo que é uma guerra, o que é que isso implica. Porque apesar de todos os indicadores e avisos, não achava concebível que em 2022 na Europa, não existisse entendimento suficiente para abortar um conflito de grandes proporções. Estava enganada.
Nos locais de conflito avançamos com esse escudo protetor que é o jornalismo. É o que fazemos que nos permite aproximar dos factos , tentar entender, descodificar, interpretar e revelar. E um dos elementos que me fascina no meio do caos que se gera, é encontrar o ser humano mais perto do seu estado genuíno, transparente. A urgência da sobrevivência faz cair máscaras, revela o absurdo e o sublime. Os atos heroicos que não estão à espera de aplausos e a brutalidade mais violenta.
Hoje vivemos num mundo instantâneo, ou seja, sabe-se quase tudo o que passa em quase todo o mundo, ao mesmo tempo. Na Ucrânia, por exemplo, convivem as trincheiras que lembram a Primeira Guerra Mundial, com a internet que nos permite estar em permanente contato.
A multiplicidade de redes de informação, de redes sociais, debita todo o tipo de dados com informações fundamentais no meio de construções falsas, de manipulações. O escrutínio é por isso essencial e os ensinamentos de Mário Mesquita indispensáveis: ir ao local, estar presente, questionar as fontes, cruzar perspectivas, levantar hipóteses, ter exigência e rigor. Por tudo isso acho que não há nada que substitua a presença de um jornalista no terreno. É cada vez mais importante e necessário.
Sempre interpretei o "estar no sítio" e a profissão de jornalista como uma responsabilidade e um dever de serviço público seja em que meio de comunicação social for. O destinatário a que nos dirigimos é o público que está em casa na comunidade a que pertenço, que vive em Portugal ou fala português noutros lugares. E temos a missão de lhe dar elementos para entender melhor o mundo que nos rodeia, dar contexto, seguir o evoluir dos acontecimentos em diferentes geografias.
O facto de "estarmos no sitío" seja onde for, implica essa responsabilidade de transmitir uma informação fidedigna, confiável, tão próxima dos factos quanto possível. Para isso a formação do jornalista é essencial e nunca está acabada, constrói-se dia-a-dia.
Por isso os ensinamentos que Mário Mesquita foi distribuindo ao longo dos anos por tantos estabelecimentos de ensino superior, são preciosos.
Ao receber este prémio fico também muito feliz porque acaba por colocar o foco na área onde me movo há décadas e que constitui o miolo do meu trabalho: a reportagem internacional. Talvez por sermos geograficamente periféricos, talvez por outras razões, o internacional tem normalmente um lugar menor, mais restrito no dia-a-dia do que é emitido ou publicado. A não ser em momentos especiais de conflitos de larga escala ou ocasiões eleitorais ou noutros eventos de grande amplitude.
Mas creio que só nos engrandece dar atenção ao que se passa à nossa volta no mundo. Há muitas realidades esquecidas, situações que nos escapam ao radar. Hoje vivemos num tempo de grandes interdependências em que o degelo da Antártida nos vai afetar, em que as secas prolongadas geram conflitos, em que as alterações climáticas significam fome. A nossa frágil condição está toda ligada.
Há cerca de duas décadas, no virar do século muita coisa mudou para o trabalho dos jornalistas sobretudo em contexto de conflito. O ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001, a posterior intervenção militar ocidental no Afeganistão e a invasão do Iraque em 2003 elevaram a complexidade das coberturas jornalísticas. Surgiram perigos maiores, o terrorismo começou a ganhar uma nova dimensão. No verão de 2003 foram atacados o edifício das Nações Unidas e a sede da Cruz Vermelha Internacional, ambos devido a atentados em Bagdad.
Instituições que até aí eram alvo do respeito internacional. Estes dados alteraram a percepção dos conflitos, tudo ficou mais vulnerável. Houve uma altura em que os jornalistas em Bagdad não eram aconselhados a permanecerem num local mais de 45 minutos, por risco de engenhos explosivos improvisados serem colados nos carros. A proteção dos civis e dos jornalistas passou a ficar em causa.
Os civis. É rente ao chão que estão os civis em qualquer conflito. Muitas vezes calados, com medo. Sobretudo nas sociedades opacas onde a liberdade de expressão é uma miragem.
Mário Mesquita conheceu os rigores da falta de liberdade de expressão, da ditadura antes do 25 de abril contra a qual lutou de forma militante e empenhada como politico e como jornalista. No nosso contexto atual a falta de liberdade de expressão parece uma realidade longínqua, que faz parte da história. Mas quando se pisam territórios onde o medo e o risco de falar é uma realidade, dá-se um outro valor ao que é a Liberdade.
Nunca me esqueço de uma professora universitária que na baixa de Tripoli, na Líbia em 2011, festejava o que na altura era a primavera árabe e o derrube de Khadafi. E festejava por duas razões : porque acreditava que teriam acabado os súbitos desaparecimentos de pessoas e porque achava que tinha conquistado uma nova identidade como cidadã livre para expressar-se. Mas depois da primavera, a Líbia voltou a mergulhar no caos.
Foi pela Líbia que muitos milhares de refugiados da Síria tentaram chegar ao Mediterrâneo e à Europa em 2015. O impacto dessa crise teve muitas ondas de choque com países da Europa a erguerem muros. Mais uma vez viam-se, nas portas da União Europeia, civis desorientados, sem saberem onde estavam, à beira do precipício, à procura de equilíbrio. E perguntavam-nos: "Onde estou?'"
Entre a intolerância e a empatia temos de saber onde estamos. Por vezes parece ser difícil colocarmo-nos na situação dos outros, dos que tudo perderam e que munidos de uma extraordinária coragem e resiliência procuram reerguer-se no local onde vivem ou partem à procura de um futuro, de um chão firme que não lhes saia debaixo dos pés. Mas todos somos seres vulneráveis.
O jornalismo é hoje mais necessário do que nunca dada a complexidade das sociedades e dos conflitos. A simplificação e a falta de tolerância levam muitas vezes a reduzir situações complexas a um sim ou um não, a apreciações precipitadas , sem contexto. As ameaças, a intimidação, a violência, a insegurança humanitária fazem parte do nosso presente. Há risco mas nada é pior do que situações, conflitos calados e esquecidos. E a democracia é um regime sob ameaça onde todos os dias devemos cuidar da liberdade, da diferença e da tolerância.
Aos jornalistas compete todos os dias estar disponível para recomeçar, recomeçar sempre. Manter aquela inquietação para ver de perto, a curiosidade que nos impele a seguir em frente. Nunca entendi a partida para uma zona difícil como um dado adquirido, ou seja, que se domina. Antes como um desafio. Claro que a experiência dá-nos algumas ferramentas para trabalhar. Mas os contextos mudam, as tecnologias mudam, as formas de fazer mudam. Há sempre coisas novas para aprender com o passado e com as novas gerações. E as borboletas no estômago estão lá sempre.
No dia 27 de Maio de 2022 quando Mário Mesquita nos deixou, estava a voltar de Zaporizhzhya para Kiev , na Ucrânia, com o repórter de imagem David Araújo, grande companheiro, integro, inteiro, cúmplice, disponível. Aliás ao longo dos anos nunca trabalhei sozinha. Sempre com um colega de equipa . A eles também devo um agradecimento especial e a partilha deste prémio porque sem eles não conseguiria ter feito o caminho que fiz. E aos outros colegas de trabalho, e às empresas que acreditaram no que estavamos a fazer e nos deram oportunidades. E à família e aos amigos que me rodeiam e apoiam e estão lá nos bons e nos maus momentos.
Obrigada a todos e vida longa ao prémio Mário Mesquita.
