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"Já devíamos ter planos". Subida do mar vai afetar cerca de 150 mil portugueses

O nível do mar está a subir e Portugal está "a empurrar o problema com a barriga para a frente". Na costa portuguesa, esta subida do mar irá refletir-se em cerca de 30 centímetros em 2050 e afetará mais de 100 mil portugueses que vivem em zonas costeiras vulneráveis. As conclusões são de um estudo que tem como um dos coordenadores Carlos Antunes, professor de Engenharia Geoespacial da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). O investigador alerta ainda para um aquecimento do planeta em 1,5 graus antes de 2030: "Devíamos estar muito mais preocupados na adaptação do que propriamente na mitigação".

Não restam dúvidas de que o planeta está a aquecer e muitos têm sido os sinais de alarme enviados pela Terra para despertar o mundo. Progressivamente estão a ser adotadas medidas para lutar contra este problema. Realizam-se cimeiras, criam-se pactos, fazem-se manifestações. Mas estarão essas medidas em pé de igualdade com a realidade?

Em conversa com o engenheiro geógrafo Carlos Antunes, percebemos que muitas das metas que foram estabelecidas para combater este problema são, na verdade, inatingíveis e que a vitória nesta batalha contra as alterações climáticas poderá estar fora do nosso alcance.

Nos dias 2 a 14 de dezembro de 2019, decorreu em Madrid a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP25). Depois de dias de negociações, chegou-se a uma conformidade para o cumprimento do Acordo de Paris, o qual estipula um esforço global para o impedimento da subida da temperatura média do planeta acima de 1,5 graus Celsius neste século.

No entanto, esta é, segundo argumenta o professor Carlos Antunes, uma meta impossível. “Nós vamos atingir os 1,5 graus antes de 2030, com 99 por cento de confiança, e dois graus próximo de 2050”, assegura o professor.

Para esclarecer esta conclusão, Carlos Antunes explica que o dióxido de carbono (CO2) que é emitido à superfície leva, em média, cinco anos a atingir as camadas superiores da atmosfera, onde existe o efeito de estufa máximo, “o que significa que o dióxido de carbono que estamos a medir globalmente na atmosfera é o dióxido de carbono que foi emitido até 2014/2015”. O CO2 que estamos a emitir atualmente só se vai refletir num futuro de dez a 15 anos. “Se o dióxido de carbono que está na atmosfera já nos garante um aquecimento de 1,4 graus, só precisamos de aquecer 0,1 graus para chegar a 1,5. Ou seja, em 2023 estará na atmosfera o dióxido de carbono suficiente para aquecer a Terra em 1,5 graus”, conclui o professor da FCUL.

A neutralidade carbónica é outra das metas na lista das impossibilidades. Questionado sobre se acredita que conseguiremos atingir o objetivo da neutralidade carbónica em 2050 acordado no Pacto Verde Europeu, o professor Carlos Antunes responde que não se trata de uma questão de acreditar, mas sim numa “análise matemática e numérica que aponta para essa impossibilidade”.

Transformando as fórmulas matemáticas em palavras, o professor universitário explica que, para ser possível reduzir 50 por cento das emissões de carbono em dez anos, é necessário diminuir as emissões em sete por cento por ano – ou seja, reduzir o consumo das energias fósseis em sete por cento. Sendo que, por ano, se produz cerca de 136 milhões de gigawatts por hora (GWh) de energia fóssil, seria preciso reduzir em cerca de dez milhões de GWh por ano.

A subida do nível da água do rio Águeda devido à chuva forte provocada pela depressão Elsa provocou a inundação da zona ribeirinha de Águeda | Paulo Novais - Lusa
Foto: Paulo Novais - Lusa
A energia renovável, por sua vez, produz apenas seis milhões de GWh a cada ano. “Portanto, de 2020 para 2021, teríamos de passar a produção de energia renovável, globalmente, de seis milhões de GWh para 16 milhões de forma a suprimir a redução de sete por cento da produção de energia primária de origem fóssil”, esclarece Carlos Antunes.

No entanto, há ainda uma outra variável a entrar nestes cálculos: a economia. A nível global, a economia cresce a uma velocidade anual de três por cento, o que significa que é necessário um aumento de energia primária de dois por cento. “Portanto, para além de ser necessário aumentar em 150 por cento as energias renováveis em termos globais de 2020 para 2021 para suprimir a redução de energia fóssil, teríamos ainda que aumentar os dois por cento a mais de energia global em renováveis para suprimir a demanda do aumento da procura”, clarifica o professor. “É um paradoxo”.

“Desde 1960 até hoje, não houve redução de dióxido de carbono a não ser em períodos de recessão económica. Então, se durante os últimos 60 anos não conseguimos sequer reduzir as emissões, como é que vamos estar à espera de reduzir sete por cento ao ano?”, questiona o professor.
Subida do nível médio do mar
O aquecimento global acarreta uma série de consequências para o planeta. Uma das mais dramáticas é a subida do nível médio do mar.

Em abril de 2019, o professor Carlos Antunes, em conjunto com Carolina Rocha e Cristina Catita, desenvolveu um simulador que pretende “recriar as áreas suscetíveis à subida do nível médio do mar”.

O gráfico faz uma projeção das áreas que estarão inundadas em Portugal em 2025, 2050 e 2100. Para a construção deste “mapa de probabilidades” foram avaliados dois cenários: a inundação extrema, em que são contabilizados todos os fenómenos extremos, incluindo a subida do nível do mar, o extremo da maré e a passagem de temporais; e a inundação permanente, causada somente pelo efeito da maré e da subida do nível médio do mar.

Para além disso, com base nos censos de 2011, a equipa avaliou ainda, por cada distrito e concelho, o número de prédios e de pessoas que até à data de 2011 residiam e ocupavam áreas vulneráveis.



Segundo explica o professor Carlos Antunes, a taxa de subida do nível médio do mar está a crescer de 15 em 15 anos. Em 2050, tendo em conta todos estes fatores avaliados para a construção do mapa, o nível do mar terá subido cerca de 30 centímetros e afetará 150 mil residentes ao longo da costa portuguesa. “A grande mancha de ocupação urbana que é suscetível à subida do nível médio do mar são, de facto, o estuário do Tejo, a Ria Formosa, Ria de Aveiro, estuário do Guadiana, Sado, Lagos e Portimão”, diz o professor.

No cenário mais próximo (2025), Faro é o distrito com mais edifícios vulneráveis, seguindo-se Aveiro com cerca de 12 mil edifícios em estado vulnerável. Em 2100, há mais de 20 mil edifícios vulneráveis em zonas costeiras em Faro.

No entanto, Setúbal é o distrito onde se prevê um maior número de pessoas afetadas. O gráfico demonstra que em 2100 existem cerca de 60 mil residentes em zonas costeiras vulneráveis.

Focando-se em Lisboa, Carlos Antunes desvenda que “o prognóstico é muito mau”. No ano de 2050, a capital portuguesa é o distrito com uma maior área vulnerável à subida do nível médio do mar: 221,4 quilómetros quadrados.

A linha de comboio e do metro são das infraestruturas mais vulneráveis à subida do nível da água. O Parque das Nações é das únicas regiões costeiras protegidas, uma vez que foi remodelada e elevada topograficamente. “Mas toda a zona desde a Praça do Comércio até Algés é uma zona baixa e, portanto, todas as infraestruturas que aí estão vão ser afetadas”, revela o professor da FCUL.

Para além da matéria relacionada com a engenharia, eleva-se uma outra complexidade do ponto de vista jurídico relacionado com a linha de costa. Em termos administrativos do território, existe uma faixa de domínio público marítimo que é estabelecida 50 metros a partir da linha de costa. Com a subida do nível médio do mar, assiste-se a um recuo desta faixa, criando um problema jurídico.

“Se eu tenho um terreno costeiro que era meu, a partir do momento em que a linha de costa recua e o meu terreno passa a estar dentro do domínio público marítimo, o terreno deixa de ser meu e passa a ser do Estado. Ora, isto vai começar a ocorrer cada vez com mais frequência e a uma velocidade maior”, explica o engenheiro geógrafo.
“Empurrar o problema com a barriga para a frente”
Perante todos os alertas que têm sido lançados para uma possível inundação nas zonas costeiras, o professor Carlos Antunes mostra-se preocupado com a falta de tomada de iniciativa por parte dos municípios.

“A complexidade do problema é tão grande que já devíamos estar numa situação de emergência. Já devíamos ter planos”, avisa Carlos Antunes.

Carlos Antunes alerta para uma subida gradual do nível médio do mar e para um dano geral e simultâneo das zonas costeiras. Ao invés de uma procura para minimizar o impacto nestas áreas, o professor de engenharia geográfica afirma que apenas se assiste a uma ocupação cada vez maior dos terrenos junto à costa devido ao seu valor económico e patrimonial elevado.

Atualmente, 55 por cento da população mundial vive em cidades e, de acordo com as previsões, em 2050 essa percentagem subirá para cerca de 70 por cento. Tendo em conta que a maior parte das grandes cidades são costeiras, o que se irá observar é uma maior ocupação e uma maior atividade nestas áreas.

“Se nós tivermos de proteger, adequar ou relocalizar estas áreas, o tempo que demorará será imenso, o custo será elevadíssimo e as implicações na economia e na sociedade serão tremendas. Ora, para planear o recuo de cidades com grande densidade, 100 anos é pouco, 100 anos não é nada”, sublinha Carlos Antunes.

Excetuando o município de Loulé, que já está a delinear planos de adaptação na zona costeira, o professor da FCUL adianta que têm sido progressivamente contactos por outros municípios a nível nacional, mas receia que não seja suficiente.

“Temo que os cidadãos e os municípios se comecem a mexer já depois de o problema estar instalado”
, declarou Carlos Antunes.

“Nós estamos a empurrar o problema com a barriga para frente e a pensar que o último a entrar fecha a porta. Não estamos a ter capacidade de antever o futuro e identificar o que temos de fazer para minimizar o risco e o impacto económico-social”, salientou o professor.
Os tipping points
Tal como elucida Carlos Antunes, o nível do mar sobe porque o oceano aumenta de volume e, para este aumento de volume, existem duas explicações possíveis: o aumento da massa ou o seu aquecimento, que faz com que expanda devido à diminuição da densidade.

O aumento da massa é explicado pelo degelo das calotes polares que contribui para o fluxo de massa de água doce para o oceano.

Por sua vez, a segunda razão para a subida do nível médio do mar – aquecimento do oceano – é justificada pelo facto de 84 por cento da energia que é retida pelo efeito de estufa ser absorvida pelo oceano, o que significa que o aquecimento atmosférico que se está a refletir é provocado apenas por quatro por cento de energia. “A energia libertada por três bombas de Hiroshima é a mesma energia que o oceano está a absorver a cada segundo. Essa energia vai ser absorvida e transferida para o oceano profundo e resulta numa expansão, muito lenta. Mesmo que o aquecimento global acabasse agora, daqui a 500 anos o mar continuaria a expandir”, explica o professor.

No entanto, a subida do nível do mar não é linear, daí Carlos Antunes referir-se ao gráfico que criou como o “mapa das incertezas”.

Na costa portuguesa, por exemplo, o nível médio do mar manteve-se estável nos últimos dois anos. Contudo, tal como explica o engenheiro geógrafo, existiu um período de sete anos em que o nível médio das águas subiu quatro milímetros por ano.

O mesmo aconteceu na Flórida. Entre 1990 e 2010, o nível do mar neste Estado norte-americano manteve-se praticamente estabilizado. Entre 2011 e 2017, o nível do mar junto à Flórida rapidamente subiu, aumentando 14 centímetros, dois centímetros por ano.

Com este exemplo, Carlos Antunes alerta para o facto de o nível do mar na costa portuguesa se ter mantido estável nos últimos dois anos não representa, necessariamente, um bom sinal. “Lá por termos uma subida mais lenta, não significa que a subida do mar está a parar”.

“Se a variação for gradual, o nível médio do mar pode aumentar cerca de 20 ou 30 centímetros. Se houver uma variação abrupta, aí podemos ultrapassar valores inimagináveis”, diz Carlos Antunes.

A resposta para esta subida não linear do nível do mar deve-se à dimensão do oceano e à sua inércia, o que faz com que responda aos estímulos muito mais lentamente do que a atmosfera, por exemplo.

Inundações na zona da Maia, junto ao Complexo Comercial Maia Jardim | Rui Manuel Farinha - Lusa
Rui Manuel Farinha - Lusa
“Há uma combinação de vários fatores essenciais que causam esta redistribuição não linear da massa e da energia que faz com que o nível do mar suba ou estabilize”, explica o professor.

Dentro desses “fatores essenciais” fazem parte os chamados tipping points, ou pontos de não retorno.

O aquecimento global a que assistimos atualmente é, na sua grande maioria, provocado por ação humana. No entanto, existem outros fatores - extrínsecos à ação humana - que contribuem para as alterações climáticas. Atingindo um ponto crítico, estes fatores podem conduzir a um ponto de não retorno (tipping point), que ultrapassa a capacidade humana de tentativa de controlo.

“A Terra é um sistema complexo com vários subsistemas. Quando um desses subsistemas passa o tal ponto crítico da irreversibilidade, ele pode estimular os outros subsistemas e eles reagem em cadeia. Ao serem todos desencadeados em cascata, pode de facto levar a um ponto de não retorno do sistema global”, explica Carlos Antunes.

Um desses tipping points pode ser desencadeado pela corrente meridional do Atlântico, da qual faz parte a corrente do Golfo. Esta corrente de água quente, salgada e pouco densa tem origem no Golfo do México e viaja desde a costa dos Estados Unidos até à Europa ocidental, aquecendo estes países ao libertar calor para a atmosfera.

Seguindo viagem até ao Pólo Norte, a corrente do Golfo é confrontada com o fluxo de água doce da Gronelândia, que conduz ao seu arrefecimento e a torna mais densa, levando-a para as profundezas do oceano. Com o aquecimento do planeta e consequente degelo dos glaciares, a quantidade de água doce no oceano é maior e influencia a corrente.

“Isso está a fazer com que a corrente do Golfo esteja a diminuir de velocidade. Já perdeu 15 ou 20 por cento da sua velocidade. É um dos tipping points de que se fala”, elucida Carlos Antunes.

O permafrost é outro mecanismo que pode levar a um ponto de rutura. Designa-se de permafrost o solo encontrado nas zonas polares. Esta área gelada é composta por gelo e rochas, mas também por matéria orgânica que não se chegou a decompor e ficou congelada.

Com o aquecimento global, essa quantidade de matéria orgânica que constitui o permafrost descongela e entra em decomposição. Os microrganismos começam a processar a matéria orgânica e libertam metano, o gás que em termos médios tem um impacto 25 vezes superior ao dióxido de carbono nas alterações climáticas. “Existe uma grande quantidade de metano dentro do permafrost, o que significa que pode induzir um efeito de que mesmo que deixássemos de emitir gases de efeito de estufa, o sistema natural, através do permafrost, pode começar a libertar metano e continuar a acelerar o próprio aquecimento global. Este é um tipping point”, diz Carlos Antunes.

Outro dos tipping points consiste no gelo existente no Ártico e o seu papel na refletividade. O gelo, enquanto superfície, tem o poder de refletir radiação solar para o espaço, um processo conhecido por albedo. Tal como se tem verificado no Ártico, quanto menor for o albedo, maior é a energia solar absorvida.

Com o aquecimento global, há menos gelo, logo, menos radiação a ser refletida. O oceano passa a absorver essa energia, levando ao seu aquecimento e a um descongelamento mais rápido dos glaciares. A menor quantidade de gelo resulta, por sua vez, numa amplificação de energia.

Em suma, os tipping points são um conjunto de bolas de neve que conduzirão, em conjunto, a um ponto crítico de irreversibilidade nas alterações climáticas.

“Estes mecanismos já foram todos iniciados e podemos correr o risco de eles, entre eles, causarem mais efeitos de alterações climáticas do que o próprio efeito antropogénico”, declara o professor Carlos Antunes.
“Martirizar” a Terra
“O esforço que nós estamos a planear para a mitigação não vai dar em nada porque nós não vamos conseguir”, diz Carlos Antunes.

Perante o problema do aquecimento global e todos os cálculos por si apresentados, o professor da FCUL não deixa margem para dúvidas ao prever um futuro em que um aquecimento do planeta é inevitável.

Apesar de considerar que o esforço para uma atenuação do aquecimento global é importante, Carlos Antunes considera que “devíamos estar muito mais preocupados com a adaptação”.

“Países como Portugal, que contribuem com menos de 0,1 por cento para o aquecimento global, deveriam dar mais ênfase à adaptação do que à mitigação. Porquê? Porque nós não dominamos a economia mundial, não somos o motor da economia mundial. O esforço que nós devíamos estar a fazer é interno, de planeamento, em adaptar os nossos hábitos de consumo e o ordenamento das nossas cidades”, explica Carlos Antunes.

Olhando para o futuro, o professor Carlos Antunes diz que quem irá sofrer as consequências da atividade humana é a biodiversidade. “A Terra vai subsistir, já passou por muitos colapsos e vai continuar”, conclui.

Tal como explica o investigador, o ser humano está a alterar o equilíbrio da Terra. “O Homem aos poucos foi eliminando todas as ameaças, desenvolveu-se demasiado. Nós demos cabo do ecossistema. Estamos a iniciar um processo de diminuição e degradação da biodiversidade”, afirma.

“Há um equilíbrio estável na Terra e nós podemos estar a alterar esse equilíbrio. Explorámos demasiadamente rápido a fonte de energia que estava mais disponível e mais fácil, que era a energia fóssil. A Terra levou milhões de anos a formar essas fontes de energia e nós destruímo-las em pouco mais de 200 anos”, conclui Carlos Antunes.

O engenheiro geógrafo deixa, por isso, apenas uma questão: “Como é que a Humanidade pode estar a pensar em terrificar Marte, se já martirizou a Terra?”.