Idosas repetem caiação todos os anos para branquear paredes e colorir dias
No Alentejo, a pintura das casas com cal ainda é um ritual que as mulheres idosas cumprem todos os anos, numa tentativa de "branquear" as paredes e colorir os dias passados no "monte".
Dizem as alentejanas que a cal tem duas propriedades: deixa as casas "branquinhas" como nenhuma outra tinta e também pode ser aplicada de outras cores, tingidas por pigmentos.
É quase uma questão de vaidade, e até de alguma competição com a vizinhança, o empenho que as mulheres do Alentejo revelam em caiar as suas casas todos os anos.
"Abril, Maio, costuma ser a altura em que as pessoas fazem a caiação, porque já é um tempo seco e não é muito quente. Este ano, como choveu muito, as pessoas caiaram mais tarde", observou o presidente da Junta de Freguesia de Santiago do Cacém, Vítor Barata.
Nesta altura, disse, em jeito de balanço, "a campanha de caiação do município já está quase pronta e superou as expectativas".
Encarregue de aceitar as encomendas de cal e entregar o produto, bem como os pigmentos necessários para as barras azuis (no campo) ou amarelas, rosa ou cinzentas (no meio urbano), Vítor Barata conta que a campanha demorou a "aquecer" este ano.
A iniciativa não é nova no município, que antigamente promovia a campanha de caiação todos os anos.
"Isto esteve parado durante sete ou oito anos, porque os pedidos de cal já eram incomportáveis e só foi retomado agora", explica o autarca.
Alimentando o costume de caiar a casa por fora e manter a tinta só "das portas para dentro", Alzira Sobral foi uma das dezenas de munícipes que aderiu à campanha de apoio à caiação, retomada este ano pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém.
Alzira Sobral e a família moram na Quinta da Fatiota, uma zona rural a meia dúzia de quilómetros de Santiago do Cacém, onde os usos da caiação ainda estão enraizados.
"Se as paredes não forem caiadas, começa logo a ver-se tudo a cair e a rachar. Não gosto nada disso, gosto é de ver as casas todas caiadinhas", faz questão de deixar bem claro.
Sentada num banco improvisado, feito de um madeiro e assente entre os galinheiros e um casão de arrumos, no seu monte, a idosa, de 75 anos, conta que este ano já caiou "deste lado e daqueloutro". Foi a filha que o fez, mas a tarefa ainda não está concluída.
"Já caiei, mas não acabei tudo, porque eu não posso já...", lamenta-se, contando que ultimamente as "dores" lhe têm dificultado estas tarefas caseiras que tem o hábito de fazer desde sempre.
Mesmo com os males próprios da idade, Alzira Sobral não desiste do seu propósito de ver tudo branquinho.
"A minha Ermelinda pintou aquela parte da casa dela, mas esqueceu-se da chaminé. Já lhe disse: Agora, tens de caiar a chaminé. Eu, já mesmo sem poder, caiei aquela velha, toda a cair", diz, apontando para cima.
A casa principal, essa tem na mesma as barras azuis, "à alentejana", que este ano "ainda não foram caiadas, mas têm de ser, no final, para não ficarem com as pingas de cal branca".
"A cal conserva muitos as paredes, seja do que for, não só das habitações", explica com ar de sapiência, enquanto aponta para os diversos anexos, também eles pintados com o branco da cal.
"Uma demão todos os anos é o bastante para ficar tudo limpinho", lembra a idosa, confessando que não se "ajeita" muito com a tinta, mais grossa e, portanto, mais "custosa" de aplicar.
As vantagens da aplicação da cal em vez da tinta têm a ver com questões económicas, mas também com o conforto.
"A casa fica logo mais fresca. No outro tempo, caiava-se tudo, quem é que pintava com tinta? Era muito cara e quase ninguém usava isso", assevera.
Este ano, a arroba de cal necessária à pintura da casa de Alzira Sobral foi oferecida pelo município, que assegurou os materiais aos residentes interessados (cal, pincéis e pigmentos).
Vítor Barata conta que das dezenas de pedidos de cal registados, todos foram feitos por pessoas "com um mínimo de 40 anos de idade" e apenas "uns dez" respeitam a casas na cidade, até porque "as casas do meio rural são caiadas e no meio urbano não".
"Há várias razões que concorrem para isso: as pessoas na zona rural vivem e trabalham nas suas casas e por esse motivo têm tempo para caiar. No meio urbano há menos tempo e as pessoas optam pela pintura, que aguenta mais tempo", vinca.
A escolha da cal em detrimento da tinta está também relacionada com o material de que são feitas as habitações: "a cal liga bem com adobe e taipa, mas não com betão armado", justifica.
Alda Conceição, de 73 anos, vive numa casa antiga no centro histórico de Santiago do Cacém e também tem o hábito de caiar a fachada.
Este ano, doente e sem coragem, a idosa conta que está à espera que "alguém da câmara" se encarregue desta tarefa.
"Quando eu podia, tinha sempre tudo caiadinho e limpinho, mas uma vez caí do escadote e agora já não o faço", refere, acrescentando que tem em casa "a cal e o pincel à espera".
O embelezamento do núcleo antigo de Santiago do Cacém foi um dos propósitos do município com o relançamento da iniciativa, asseverou Álvaro Beijinha, vereador da Câmara Municipal.
"Considerámos que a autarquia podia dar um sinal aos proprietários dos imóveis do centro histórico para que eles possam contribuir para o embelezamento da zona, através desta campanha de incentivo à caiação, na qual a câmara faculta a cal e os materiais para a sua aplicação de forma gratuita", disse à agência Lusa.
Desde o início da campanha, que decorre desde Abril e se prolonga até ao final de Outubro, o município ofereceu já 500 quilos de cal, o que, a juntar aos demais materiais e divulgação, se traduziu num investimento de "1.500 a 2.000 euros".
No próximo ano, a câmara tenciona prosseguir com a iniciativa, alargando-a então a outras freguesias do concelho, com prioridade para "as que têm centros históricos, como Alvalade e Cercal do Alentejo".
Impermeabilizante, repelente de insectos e isolante térmico são algumas das características da cal, que se revela ainda um género de pintura muito económico, utilizado com frequência nos núcleos urbanos do Sul da Europa e nos montes alentejanos.
A preparação da cal obedece a um processo que demora pelo menos meia hora.
"Põe-se uma gota de água dentro de uma bilha com os torrões de cal e arranja-se um pauzinho ou uma cana para mexer. Daí a bocado, a cal começa a ferver e a gente começa a mexer e vai metendo água para ela ir morrendo a pouco e pouco", descreve Alzira Sobral.