Gestão "incomportável" de cadáveres de animais cai por terra

Durante a crise das vacas loucas, Portugal criou um sistema para permitir a despistagem de casos e garantir o fim da doença. Hoje, as autoridades reconhecem que o risco de propagação é “praticamente zero”. Apesar disso, Portugal gasta 12 milhões de euros por ano num sistema “caro, incomportável e desajustado”, onde um só consórcio faz a recolha de cadáveres. A lei vai ser alterada em breve e os produtores vão poder voltar a enterrar os animais em zonas remotas e de montanha.

Portugal conseguiu baixar o estatuto de risco relativamente à chamada doença das vacas loucas ou BSE (Encefalopatia Espongiforme Bovina), estando agora classificado pela Organização Mundial de Saúde Animal e pela União Europeia como uma região de "risco negligenciável". Isto significa que o risco “é praticamente zero”.

Durante a crise foi criado o Sirca - Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração para permitir a despistagem de eventuais casos e garantir a destruição do agente infeccioso.

De três em três anos são pagos 36 milhões de euros a um consórcio que detém o monopólio da recolha de cadáveres, mas o dinheiro nunca chega para suportar este sistema.

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“A ideia inicial era aproveitar a recolha de cadáveres de bovinos que ocorriam nas explorações para os testar porque estávamos no meio de uma crise: a crise das vacas loucas. O país estava embargado comercialmente. Foi uma decisão da Comissão Europeia e nós tínhamos de demonstrar que os animais que morriam no campo não morriam de BSE. Só vimos uma maneira de o fazer: era recolher esses animais e testar os cadáveres”, disse à RTP Fernando Bernardo, diretor-geral de alimentação e Veterinária (DGAV).

Portugal não abarcava “todo o Universo de animais elegíveis” para fazer os testes da BCE e, portanto, em 2001, começou-se a testar também os cadáveres. Em 2003 alargou-se a outras espécies: suínos, pequenos ruminantes e equídeos, passando a recolher-se todos os cadáveres nas explorações.
"Descativação especial" das Finanças

Fernando Bernardo explicou ainda que com o anterior sistema, ainda em vigor, não se consegue arrecadar mais de quatro milhões de euros por ano, o que está muito longe dos necessários 12 milhões.

“O que foi possível fazer durante o ano de 2016 para diminuir a quantidade de dívida foi obter do Ministério das Finanças uma descativação especial de cerca de cinco milhões do mês de agosto para poder fazer um abatimento da dívida, mas isso porque também no início do ano nos tinham cativado uma grande fatia do nosso orçamento. Portanto, do ponto de vista financeiro foi preciso de facto uma autorização especial do ministério das Finanças para abater parte da dívida que vinha de 2015 e do próprio ano de 2016”.



Para tentar corrigir esta falta de adequação da receita à despesa, o Governo teve de alterar a lei. “Temos que criar um novo modelo, uma nova forma de cobrar a taxa para que ela possa corresponder o mais possível às necessidades de financiamento do sistema”.
Enterro com exceções
De acordo com o documento a que a RTP teve acesso, os produtores vão poder voltar a enterrar os animais em zonas remotas e de montanha. Entre esta estão diversas freguesias do Alto Minho e Parque Natural da Peneda-Gerês; Nordeste Transmontano e Alto Douro; Parque Natural da Serra da Estrela e do Pinhal; Tejo Internacional e serras de Marvão e S. Mamede; Algarve e Parque Natural do Guadiana e ainda uma área remota para suínos em produção extensiva, em diversas freguesias do Alentejo.

“Existem zonas de produção do país onde a densidade da população animal é muito baixa, sobretudo, as zonas pouco produtivas: zonas de montanha, zonas do interior, onde o acesso para se ir buscar um pequeno animal que acabou de nascer e morrer tem uma despesa avultadíssima”, revelou à RTP o diretor da DGAV.

Fernando Bernardo fez, no entanto, uma ressalva: “O enterramento pode fazer-se com exceção dos bovinos com mais de 48 meses, que são aqueles que têm de ser testados para a deteção do agente da doença das vacas loucas. Esses continuam a ser recolhidos mesmo nas zonas remotas. Os outros animais, bovinos com menos de 48 meses, e outros animais podem ser enterrados”.
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“A nova legislação que está agora para sair visa um melhor equilíbrio porque o sistema é muito deficitário. Nós recolhemos anualmente cerca de quatro milhões de euros de taxa e o sistema custa-nos 12 milhões. Entre aquilo que a taxa paga e aquilo que o serviço custa há um balanço negativo: um défice de oito milhões, que sai do Orçamento do Estado. Este é um custo que não se justifica porque não está em risco a saúde pública”, explicou ainda o diretor da DGAV.
O novo decreto-lei sobre o Sirca vai ser aprovado em breve, ainda durante o primeiro semestre deste ano, assim como um novo sistema de financiamento. Reduzir o esforço dos contribuintes e adequar a receita à despesa é o objetivo da tutela.
Outra das alterações é que, em vez de os produtores pagarem à tonelada, passam a pagar à cabeça, por escala. “Um bovino jovem pesa muito menos e custa menos a transportar do que um bovino adulto. Isso também é uma forma diferente de fazer o cálculo, que até aqui era feito em peso, em massa. A base do cálculo passa a ser o número de cabeças”.

Depois do levantamento do embargo, no final de 2004, Portugal foi baixando sucessivamente o número de casos positivos e, entre 2012 e finais de 2016, só houve um caso positivo: um animal com mais de 20 anos que esteve exposto, nos anos 90, a farinhas de origem animal.

Atualmente “somos um país de risco negligenciável, para as questões da doença das vacas loucas. Mantém-se o Sirca para a vigilância de outras doenças também. Tornou-se de facto uma ferramenta muito interessante para as explorações, sobretudo as intensivas, onde há pouco espaço. Quem produz animais vê-se livre de algo que pode constituir uma ameaça para a saúde dos seus animais", explicou o diretor da DGAV.
Dívidas de mais de oito milhões
Em agosto do ano passado, o Sirca chegou mesmo a ser suspenso por ter chegado ao fim o contrato com as empresas que asseguravam a tarefa (ITS e Luís Leal & Filhos).

Quando o atual Governo assumiu funções existia uma dívida no valor de 8.401.927,12 euros. O contrato trienal, no valor de 36 milhões de euros, é orçamentado anualmente pelo valor de 12 milhões de euros, dos quais quatro milhões são assegurados pelos produtores e oito milhões pelo Orçamento do Estado.
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“O primeiro triénio em que houve este contrato plurianual terminava em setembro de 2016, mas a limite de 12 milhões de euros, que era a verba disponível, esgotou-se um mês antes. O número de cadáveres recolhidos foi muito superior ao que estava programado, ou seja, não foi possível dar cumprimento ao contrato até ao seu término, que era a 9 de setembro. Essa foi a razão por que se suspendeu em agosto”, referiu Fernando Bernardo.

Os primeiros casos de BSE diagnosticados em Portugal remontam a 1990. Desde essa data e até final de 2016, foram registados 1060 casos no País. Em média são retirados das explorações pecuárias mil cadáveres de animais por dia. Espera-se agora tornar mais eficaz este serviço e reduzir o esforço dos contribuintes.



“A legislação vai alterar não nos pressupostos da recolha de cadáveres, mas no pagamento do sistema. O contrato mantém-se até 2019. Atualmente, a taxa que se cobra é uma taxa feita em função do abate de animais. É uma taxa Sirca que corresponde a uma determinada percentagem do peso do animal mas é de facto uma taxa um pouco inconsistente porque quem paga o sistema é quem produz melhor. Há aqui de facto uma incoerência no sistema”, explicou à RTP o responsável pela DGAV.

No passado recente, os serviços de recolha de cadáveres de animais foram alvo de fiscalização por parte do Tribunal de Contas, conforme se pode ler no relatório, datado de março de 2015.



De acordo com as conclusões que constam do mesmo documento, “a prestação de serviços foi efetuada em desrespeito pelas normas da contratação pública, bem como das regras relativas ao cabimento e ao compromisso orçamental. Esta situação de ilegalidade manteve-se ininterruptamente até ao início da execução do contrato celebrado em 23.04.2013, na sequência do concurso público internacional efetuado para aquisição do serviço em apreço, para os anos de 2013 a 2015, e cujo visto foi concedido em 26.08.2013”, pode ler-se no mesmo relatório.
Sem visto do Tribunal de Contas
Os serviços pagos “no período compreendido entre 01.01.2012 e 20.09.2012” foram “integralmente pagos sem pronúncia do Tribunal de Contas em sede de fiscalização prévia”.

Foram imputadas responsabilidades à então ministra da Agricultura e do Mar, Assunção Cristas; ao secretário de Estado da Alimentação e Investigação Agroalimentar, Nuno Vieira de Brito, e ao diretor-geral da Alimentação e Veterinária, Álvaro Pegado Mendonça. Mas o caso viria a ser arquivado.



“O procedimento do atual contrato, que está em vigor, foi desencadeado no final de dezembro de 2015. Houve um procedimento que passou por uma autorização das finanças, por uma abertura do concurso, pela escolha dos vencedores do concurso e toda a parte administrativa que diz respeito ao concurso e depois de serem selecionados e adjudicados os vencedores do concurso, seguiu-se a tramitação administrativa normal: Finanças, Tribunal de Contas e aprovação”.

Sem querer justificar o que aconteceu no passado, o atual diretor da DGAV disse à RTP que “as previsões de arrecadação de receita que vêm da taxa Sirca foram sempre hiper-estimadas. Pensou-se sempre que a receita que se obtinha seria ajustada para pagar o sistema. Com o exercício que temos tido nos últimos anos verificamos que não é assim”.
Questões por esclarecer
As alterações ao Sirca já mereceram o comentário do presidente da CAP – Agricultores de Portugal. João Machado disse à RTP que o sistema atual é muito caro. Apesar de considerar que as zonas remotas são adequadas, ainda há questões por esclarecer.
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“Temos vindo a dizer aos vários governos que esta matéria merecia uma revisão porque de facto este sistema é muito caro, onera muito toda a fileira, além de ter sido criado num tempo em que era necessário um controle muito apertado por causa da BSE. Neste momento como erradicámos a doença não temos esse risco”.

João Machado é da opinião de que este é um serviço ”demasiado caro” e, não sendo “obrigatório pela União Europeia, não devemos ir mais longe do que aquilo a que somos obrigados”.

A CAP foi contactada há alguns meses pela tutela para expor a sua opinião. No entanto, o representante dos produtores não esconde que gostava de ter dado um parecer quanto ao texto do novo decreto-lei, que está para publicação.

“Agora onde podemos intervir é só nos despachos do secretário de Estado. Veremos se é suficiente para clarificar todas as situações e para ir ao encontro daquilo que são as exigências dos produtores, que é tornar o sistema todo mais barato e mais fácil de cumprir”, concluiu o responsável da CAP.

A Confederação defendeu ainda que se deverá utilizar todas as “derrogações de recolha que a legislação comunitária permite e que se deverá efetuar uma cobrança mais eficaz”.
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Como as regras sanitárias se foram tornando cada vez mais restritivas, obrigaram a que as carcaças dos animais mortos fossem retiradas dos campos para serem eliminadas, o que criou um problema grave de escassez de alimento para as aves selvagens protegidas.
Medida satisfaz ambientalistas

Em Portugal ocorrem três espécies de abutres - o Grifo, o Abutre-preto e o Abutre do Egipto, bem como outras aves com hábitos necrófagos, nomeadamente a Águia -imperial e o Lobo–ibérico.

A Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza – diz que as alterações em curso são “muito positivas” e vêm minimizar “um grave problema”.

“Era uma medida extremamente necessária para proteger espécies que estão em perigo crítico de extinção. São medidas efetivas que vêm minimizar um problema grave causado pela recolha em zonas remotas, em regime extensivo, onde existem estas populações selvagens e estão ameaçadas de espécies protegidas”, disse à RTP Samuel Infante.
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Há muito que a Quercus apelava para que fossem novamente deixadas as carcaças nos campos em zonas de criação de gado extensivo, previamente articuladas com a estratégia nacional de aves necrófagas e salvaguardando as questões sanitárias, mantendo o Sirca em funcionamento apenas nas explorações intensivas e ou onde existe necessidade de recolhas.

“Estas aves necrófagas alimentavam-se e retiravam estas carcaças dos campos e com a introdução do Sirca, que retirava cerca de mil carcaças por dia, ficou-se sem uma importante fonte de alimento. O que se pretende novamente é que em zonas onde não existam problemas sanitários, se possa voltar a deixar carcaças nos campos precisamente para estes animais”, concluiu o ambientalista Samuel Infante.