Famílias da Quinta da Serra recusam sair, barracas ficam mais dois anos

por © 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Susana Oliveira (texto) e Mário Cruz (fotos), agência Lusa

Lisboa, 07 Mar (Lusa) - O cheiro das especiarias que temperam o jantar mistura-se com o das águas de esgoto que ainda correm nalgumas ruas da Quinta da Serra, no Prior Velho, onde 200 famílias vivem em barracas sem condições, à espera do prometido realojamento.

Mas se a falta de condições há décadas criou nalguns moradores a vontade de sair o quanto antes, outros pensam duas vezes e dizem que se for para deixar o Prior velho "só regressando à terra".

Nos anos 70 o espaço pertencia a uma quinta onde as crianças do Prior Velho jogavam à bola. Hoje, os miúdos do bairro jogam num campo de terra murado mesmo à entrada do bairro, perto das salas onde a Associação Sócio Cultural oferece apoio escolar e outras actividades.

"Conseguimos que a maioria das crianças do bairro frequente a escola. Têm aqui o apoio para fazer os trabalhos de casa e depois acabam por ficar num dos portáteis com jogos didácticos", contou à Lusa José Maria, mediador sócio-cultural do projecto Abolina.

"A nossa prioridade são as crianças. É claro que também pedimos ajuda aos pais, porque sozinhos não fazemos nada", confessa, acrescentando que o projecto tem também uma creche onde acolhe 48 crianças.

Este cabo-verdiano de 25 anos vive na Quinta da Serra há 17. Espera que aos pais seja atribuída uma das casas do Programa Especial de Realojamento (PER), para que também possa ter "um melhor cantinho".

"Estou inscrito no chamado desdobramento. Como os meus pais estavam inscritos no PER e eu vivia com eles, a minha actual família vai também ter direito a uma casa", explica, apontando para o anexo onde agora dorme com a mulher, que estuda turismo, e o filho, de oito meses.

Confessa que gostava de voltar à escola - fez apenas o 9º ano de escolaridade -, enquanto vai mostrando à Lusa o bairro.

"Isto agora faz-se em 10 minutos. O bairro é muito mais pequeno. É quase metade", diz, com uma certa saudade da "antiga Quinta da Serra", `entalada` entre um conjunto de prédios novos na parte alta do Prior Velho e a auto-estrada do Norte.

Gostava de ficar no Prior Velho e diz que, "apesar de tudo", adora viver na Quinta da Serra.

Os amigos são o que mais o prende ao bairro e se "a vida correr bem" gostava de "voltar a Cabo Verde e montar um negócio".

José pára numa das ruas e mostra com algum a tristeza o entulho das últimas barracas demolidas e que ainda continua a marcar a paisagem do bairro.

Mais à frente, um terreno antigamente ocupado por barracas é agora uma zona enlameada, resultado dos esgotos deitados por algumas das casas ainda sem saneamento.

"A maior parte das casas já têm, mas as da parte de trás não conseguiram chegar à ligação e ainda deitam para aqui as águas", explica.

Ao entrar numa das ruas estreitas do bairro o barulho aumenta e o cheiro a comida também. Vem do único restaurante do bairro. "É tão procurado que abre de domingo a domingo", conta José Maria.

No fim da rua, à direita, um terreno antigamente ocupado por barracas é agora usado para pequenas hortas. "Esta terra é tão boa que aqui tudo cresce. Até bananeiras. Algumas famílias fazem criação", explica.

"Bom dia Zé!", cumprimenta Armindo Mendes, que mora na Quinta da Serra há 31 anos. Os 68 que tem de idade estão bem marcados no rosto, que se fecha quando se fala em realojamentos.

"Se for para ficar aqui [Prior Velho] eu assino, agora para sair só se for para Cabo Verde. Estou velho, o meu divertimento é a pequena horta, conheço toda a gente aqui, o senhor do talho, da mercearia... Se sair vou para onde? Falo com quem?", pergunta, desanimado.

Debaixo de um sol que até parece de Primavera, Lúcia, de 21 anos, faz de cabeleireira de bairro e penteia com paciência uma moradora. É guineense, também está inscrita no PER e há anos que aguarda uma casa para viver com o filho, de nove anos.

Enquanto lava a loiça num alguidar à porta de casa, Maria da Luz deixa escapar que tinha todo o prazer em "não sair da Quinta da Serra".

"Tenho três filhos e um enteado e já estou habituada ao sítio. Não sei como vai ser depois", afirma resignada, enquanto limpa as mãos.

Na rua de baixo um grupo de pessoas acabou de matar e esfolar uma cabra, agora pendurada num arame junto a uma casa onde não chegam as visitas os inspectores da Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE).

O terreno onde vivem estas 200 famílias foi entretanto comprado pelo município, que depois dos realojamentos vai elaborar um plano de pormenor para a área.

A maior parte das famílias que ainda vivem na Quinta da Serra estão abrangidas por programas de realojamento.

Segundo a autarquia, há 57 que entraram no PER Famílias, programa para quem não foi inicialmente recenseado no PER e que ajuda a comprar a casa, responsabilizando a família. Outros 33 casos estão em avaliação.

Aliás, o PER Famílias é a grande aposta da Câmara de Loures, que reconhece que a Quinta da Serra é "o aspecto mais negro do concelho" em matéria de realojamentos.

Como precisa de plano de pormenor e é um caso "mais demorado", as barracas da Quinta da Serra ainda deverão ficar de pé pelo menos mais dois ou três anos.

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