Num momento em que nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e um pouco por todo o lado várias universidades começam a descartar o Proctorio, face ao caráter iminentemente intrusivo que coloca em causa questões ligadas com a invasão de privacidade, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa exigiu aos seus alunos que instalassem nos computadores pessoais esta ferramenta informática. Trata-se de um software que faz a gravação de som e imagem, e monitoriza o próprio computador, e seria fundamental para fazer exames. Face à contestação dos alunos, a faculdade suspendeu a aplicação do Proctorio.
No último ano, o Proctorio – um programa que regista e grava som e imagem, além de monitorizar os dispositivos pessoais - surgiu como a resposta à disrupção do ensino presencial e aos vários desafios com que se confronta o sector da educação. Inicialmente, apresenta-se como um software que promete repor a normalidade possível face ao desfasamento espacial entre professor e aluno num contexto pandémico que obriga à verificação do distanciamento pessoal como principal barreira para a disseminação do novo coronavírus. No entanto, com a implementação do olho eletrónico que está na base desta ferramenta, outra batalha parece agora sobrepor-se aos problemas da batota nas avaliações: a batalha pela garantia da liberdade e da privacidade do aluno enquanto cidadão livre numa sociedade democrática.
A exigência apresentada durante esta quarta-feira aos alunos de Direito da Universidade de Lisboa para poderem aceder aos momentos de exame está cristalizada num manual de instalação do Proctorio:
“Mantenha a concentração no ecrã do seu computador. O sistema deteta e sinaliza quando desvia o olhar por alguns momentos. Animais de estimação, televisores, locais de passagem são motivos de distração”.
“Mas não se preocupe se o seu teste for de consulta. O docente pode ajustar o sistema para que os alarmes de desvio de olhar sejam mais ou menos rígidos”.
“O sistema grava o som ambiente. Caso seja detetada conversa ou um aumento de ruído é sinalizado o momento para posterior averiguação”.
Estas são algumas das passagens do manual de procedimentos enviado aos alunos para a preparação do programa de avaliação, mas é uma formulação conhecida desde há décadas das primeiras páginas de uma conhecida obra de George Orwell. De facto, se o programa o permite, o manual emitido pela Faculdade remete inevitavelmente para ideia de “um grande irmão” omnipresente na habitação do aluno que se submete a exame. Trata-se de um vigilante que promete registar o ambiente familiar do aluno, ficando a eliminação destes registos dependente da boa vontade dos serviços da faculdade.
Numa primeira reação à implementação do programa Proctorio, o presidente da Associação de Estudantes, Ricardo Vicente, manifestou à RTP a revolta que esta decisão está a gerar entre os alunos e que “a Associação de Estudantes está contra a adoção do Proctorio, face às questões que podem colocar-se com as garantias da proteção de dados”.
Nesse sentido, a AE “vai exigir que o Proctorio não seja utilizado nas avaliações”. Os alunos exigem também “que a data dos exames se mantenha, de forma a garantir alguma previsibilidade aos alunos”.
Em conversa com a RTP, Ricardo Vicente lamentou que um ano passado de pandemia se verifique ainda a falta de preparação [das instituições de ensino] para garantir os serviços”.
“Passámos por várias vagas e não houve [a implementação] das soluções correctas”.
“Big Brother is watching you”
“Big Brother is watching you”
As preocupações da AE de Direito fazem eco dos protestos que desde ontem se fazem ouvir, agora não no campus universitário mas desde a casa de muitos dos alunos da instituição. Alunos que alertam para consequências negativas desta dependência cada vez maior dos serviços das plataformas informáticas que abrem caminho a uma desregulação dos valores públicos em nome do cumprimento de um calendário letivo.
Se os exames online são muitas vezes a única resposta para cumprir o distanciamento aconselhado pelas autoridades de saúde, a urgência de decisão das instituições pode, em muitos casos involuntariamente, deixar cair as garantias de cidadania exigidas em sociedades democráticas, sendo este cenário particularmente preocupante numa escola onde se ensina o Direito, base estrutural que fundamenta as garantias dos cidadãos.
No grupo fechado de Facebook Campbook FDL, uma aluna recorria a um slogan quase centenário para traduzir a situação que se está a viver na Faculdade de Direito de Lisboa: “Big Brother is watching you” (O Grande Irmão está a ver-te). Há ainda quem deixe preocupações mais imediatas: “Quanto à questão do consentimento, os alunos que se recusarem a consentir com estes termos, serão impedidos de realizar a prova?”. Já hoje, de acordo com um testemunho, iniciaram já hoje um protesto mais ou menos organizado entrando nas aulas online com as câmaras dos computadores desligadas e identificando-se com nicknames no lugar dos seus verdadeiros nomes.
Contactada pela RTP em relação à decisão de implementar o Proctorio para as avaliações que aí vêm, a Direcção da Faculdade de Direito não respondeu, mas Ricardo Vicente adiantou que a AE tem mantido conversas com elementos daquele corpo e que poderá haver em breve uma solução para as reivindicações dos alunos. [Nota: já depois da publicação deste artigo, chegou-nos uma declaração da faculdade relativamente à utilização do sistema Proctorio, sendo este suspenso para já, mas não ficando explícito que o será em definitivo.]
Entretanto, para a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) seguiram já queixas individuais de alguns alunos. À RTP chegou um email no mesmo sentido:
“A faculdade de Direito da Universidade de Lisboa impôs aos seus discentes, esta quarta-feira, a instalação de uma extensão no Google Chrome que (…) não é permitida na União Europeia, por não cumprir os requisitos básicos de proteção de dados. Aos alunos é obrigatório a instalação, sob pena de não poderem realizar os exames online”.
De acordo com a denúncia dos alunos, “a extensão tem acesso, durante toda a prova, ao microfone e à câmara do computador do utilizador”, pelo que, além da queixa, ameaçam “tomar medidas mais severas, como em 2017, quando fecharam a faculdade”, na altura também em protesto contra a forma como estava a ser feita a avaliação, em particular com a questão do anonimato das provas, medida aprovado para evitar eventuais enviesamentos nas notas que depois não terá sido cumprida.
Respondus
Não é a primeira queixa na Comissão Nacional de Proteção de Dados. De acordo a edição de 14 de março do Jornal de Notícias, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) já está a investigar pelo menos mais um caso semelhante. Em causa está a utilização do software Respondus, que também foi adotado por algumas universidades portuguesas no processo de avaliação à distância.
Após uma queixa do presidente da Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, a CNPD decidiu investigar a possível violação do Regulamento de Proteção de Dados com a utilização deste programa capaz de captar movimento e som dos alunos quando instalado nos seus computadores. De acordo com o JN, este software faz uso de algoritmos para perceber se os alunos estão a copiar “e não se compromete com a eliminação dos dados, recolhidos pela empresa norte-americana que fornece o serviço”.
O dirigente estudantil pretende que seja considerado ilegal o uso daquele tipo de software por possível violação quer “do direito à reserva da vida privada dos alunos e das suas famílias”, como da violação do Regulamento Geral da Proteção de Dados. A própria CNPD considerou, em resposta ao JN, haver “indícios de violação do regime de proteção de dados”.
Comissão de Proteção de Dados deu instruções há um ano
De acordo com a denúncia dos alunos, “a extensão tem acesso, durante toda a prova, ao microfone e à câmara do computador do utilizador”, pelo que, além da queixa, ameaçam “tomar medidas mais severas, como em 2017, quando fecharam a faculdade”, na altura também em protesto contra a forma como estava a ser feita a avaliação, em particular com a questão do anonimato das provas, medida aprovado para evitar eventuais enviesamentos nas notas que depois não terá sido cumprida.
Respondus
Não é a primeira queixa na Comissão Nacional de Proteção de Dados. De acordo a edição de 14 de março do Jornal de Notícias, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) já está a investigar pelo menos mais um caso semelhante. Em causa está a utilização do software Respondus, que também foi adotado por algumas universidades portuguesas no processo de avaliação à distância.
Após uma queixa do presidente da Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, a CNPD decidiu investigar a possível violação do Regulamento de Proteção de Dados com a utilização deste programa capaz de captar movimento e som dos alunos quando instalado nos seus computadores. De acordo com o JN, este software faz uso de algoritmos para perceber se os alunos estão a copiar “e não se compromete com a eliminação dos dados, recolhidos pela empresa norte-americana que fornece o serviço”.
O dirigente estudantil pretende que seja considerado ilegal o uso daquele tipo de software por possível violação quer “do direito à reserva da vida privada dos alunos e das suas famílias”, como da violação do Regulamento Geral da Proteção de Dados. A própria CNPD considerou, em resposta ao JN, haver “indícios de violação do regime de proteção de dados”.
Comissão de Proteção de Dados deu instruções há um ano
A 21 de maio de 2020, face à situação pandémica que começava nesses primeiros meses do ano passado a ganhar contornos que apontavam para um longo período de impasse, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) emitiu um documento sob a designação de “Orientações sobre avaliação à distância nos estabelecimentos de ensino superior” no qual se pretendia acautelar situações maculadas de ilegalidade na gradual adaptação ao dito novo normal.
Admitindo que, “nesse contexto, as instituições de ensino superior definiram, para a avaliação final deste semestre, soluções que, ora combinam a avaliação presencial com a avaliação à distância, ora se centram num ou noutro modelo”, a CNPD pretendeu desde logo “sensibilizar (…) para a obrigação de verificarem e demonstrarem que os tratamentos de dados pessoais que realizam, no âmbito da avaliação, respeitam os princípios e as regras legais de proteção dos dados.
Em causa, a massificação de tratamentos de dados pessoais dos estudantes e também dos docentes, já que estavam pela frente “soluções como a avaliação (…) através de diferentes tecnologias de informação e comunicação, as quais envolvem o recurso a sistemas de videoconferência e de partilha de ficheiros”.
Face à previsível utilização desses instrumentos com vista ao ensino à distância, a CNPD lembra desde logo que, “em primeiro lugar, em função da finalidade visada com o tratamento de dados pessoais, compete às instituições de ensino superior avaliarem se está preenchido um dos fundamentos de licitude previstos no RGPD”.
Admitindo que “cabe à instituição avaliar se há ou não condições para realizar alguns exames em formato presencial”, a comissão sublinha que “o interesse legítimo do responsável não legitima, per se, o tratamento de dados pessoais, uma vez que o RGPD faz depender a consideração deste pressuposto da demonstração da necessidade do tratamento para a prossecução daquele interesse e ainda de uma avaliação da não prevalência dos direitos e interesses dos titulares de dados. Assim, compete a cada uma das instituições de ensino superior, enquanto responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, avaliar e demonstrar que o tratamento é, de facto, necessário, por não existirem, ou não serem efetivamente exequíveis, outros processos de avaliação menos intrusivos da privacidade dos titulares dos dados, e avaliar ainda se os direitos e interesses dos titulares dos dados não devem, em concreto, prevalecer”.
“Cabe também à instituição fazer a ponderação concreta entre o interesse que visa prosseguir com os processos de avaliação à distância selecionados e os direitos e interesses dos titulares dos dados, em especial quando daqueles possa resultar a afetação da vida privada, máxime no contexto habitacional. Tal poderá estar especialmente em causa quando a avaliação à distância envolver a captação de imagens, pelo risco de invasão do ambiente habitacional e familiar das pessoas assim abrangidas”, advertia a comissão no que parece um alerta avisado para a situação que agora se apresenta na Faculdade de Direito.“Vigilância do estudante durante o exame é desadequada”
Relativamente à metodologia a seguir nas provas de avaliação, a CNPD considera que, neste “contexto online, pode ter-se por adequada a utilização de câmara de vídeo para verificar a identidade do estudante (com o fim de garantir que quem está ser avaliado é de facto o estudante identificado e não outra pessoa), já a sua utilização para a finalidade de vigilância do estudante durante o exame de avaliação se afigura desadequada”. Trata-se também aqui de uma recomendação totalmente contrariada, face à metodologia que a faculdade apontou para os exames que se seguem.
“A circunstância de essas tecnologias fazerem remotamente operações no dispositivo eletrónico pessoal do estudante pode ser tida como desnecessária (por existirem soluções menos intrusivas) ou mesmo excessiva (….) Do mesmo modo, tem-se por desnecessária, ou pelo menos excessiva, a gravação de imagens e de som durante a prova (oral e, obviamente, escrita), cabendo ao responsável pelo tratamento adotar as medidas adequadas para impedir a gravação; tal justifica-se para prevenir a reutilização indevida das gravações”, determina a comissão de Proteção de Dados, apelando ainda a uma ponderação nos casos em que esteja em causa “o tratamento de dados de natureza altamente pessoal, como sejam os relativos à vida privada e familiar do estudante”.