Eu tinha começado a trabalhar como jornalista há coisa de ano e meio, no jornal Diário de Lisboa, ao Bairro Alto. Vivia na Reboleira (Amadora) e apanhava o comboio todos os dias de semana, para entrar às 8h30 no jornal.
Parecia um recuo na vida. A minha infância tinha sido toda passada em casa dos meus avós, na Rua Nova da Trindade, em frente ao Teatro Ginásio, a meros passos do Chiado, na sobreloja de uma agência funerária do meu avô. E desde que começara a trabalhar, voltava todos os dias aos mesmos sítios, às mesmas ruas, mas agora como alguém que desembarca do futuro, dos arredores, porque era lá que havia casas mais baratas.
Os rituais de criança tinham sido todos ali, no Chiado. De manhã, ia com o meu avô à pastelaria Trevo, no Largo do Camões, onde ele bebia um café com cheirinho em copos de vidro. Depois, comprávamos um pacote de milho num balcão à entrada de um prédio e íamos para a estátua do Camões atirar os grãos aos pombos que mergulhavam em enxame aos nossos pés. Brincadeiras, havia o Grandella com as suas escadas rolantes para subir e descer (ou estarei já a inventar?). Lojas de brinquedos, nada batia a secção dos Armazéns do Chiado, com os seus tectos altos (para mim), o chão de ripas corridas, as suas longas prateleiras de jogos e bonecos, as vitrinas – já não com santos e mártires, camelos, vacas e presépios que o meu avô vendia – mas com cavaleiros medievais, homens de armadura, castelos de plástico, besteiros, archeiros, cowboys e índios, a pé e a cavalo, tipis e diligências. Passava lá horas, apesar dos empregados me chatearem se queria alguma coisa, coisa que acontecia só quando acumulava várias semanadas de 5$00.
Comprava semanalmente a revista de banda desenhada Timtim numa banca onde hoje está um quiosque. Aos sábados, era arrastado pela minha avó nas suas voltas pelas bijuterias e lojas de tecidos. Passava horas a visitar as livrarias do Chiado e da Rua do Carmo, sem comprar nada. Acho que foi à porta de uma delas que a minha avó me apresentou a umas pessoas da Oposição ao regime salazarista que por ali circundavam, como o miúdo do Pedro Ramos de Almeida (o meu pai passara à clandestinidade) e que eu me escondera atrás dela, envergonhado. Ou então ia para os cubículos de madeira e vidro da Valentim de Carvalho, ouvir LPs e singles da moda. Foi lá que comprei o meu primeiro LP – uma coletânea de 1967 dos Beatles.
Não sei se pensava nisso quando reparei naquilo. Subia as escadinhas do Duque em direção ao Largo da Misericórdia e devo ter reparado em qualquer coisa, não me lembro. Talvez no fumo, talvez nas pessoas. Por acaso, nesse mesmo dia, tinha decidido passar a andar sempre com a máquina fotográfica. Era daquelas decisões que se tomam e que depois se esquece. Mas nesse dia, levava a máquina à tiracolo.
As primeiras fotos mostram isso. Pessoas aglomeradas na rua, à janela, paradas nas ruas de sacos de plástico na mão, absortas no espanto. E o fumo a erguer-se. Decidi contornar e descer à Rua Garrett. Um polícia da PSP barrou-me o caminho. Mas eu já tinha uma carteira profissional e ele deixou-me passar. Hoje, as minhas memórias são estas fotos a preto e branco.
Fui descendo a rua. Digo isto pelo que vejo das fotos. Ao princípio, um pouco a medo. Será que me deixam fotografar? Depois, fui avançando. E quando cheguei à esquina com a Calçada do Sacramento, a loja de vários andares do Eduardo Martins ardia a fogo solto, sem controlo. Nessa altura, já eu só queria era mesmo apanhar as chamas de perto. Mas não me deixaram passar mais para baixo. Fui pela Rua Ivens. Aí, um bombeiro é levado em braços por outros bombeiros. Fui atrás deles e deixei-os. Voltei para trás e desci as escadinhas até à Rua Nova do Almada. É de lá que se vê aquelas fotos com o fogo a descer em explosão. Quando alguma coisa rebentou, consegui carregar no botão. Ficou um clarão e todos apanhados de surpresa. Uma rapariga à minha frente conseguiu o mesmo plano. Que será feito dela?
O Chiado estava todo desfeito. Mas nem pensava nisso, nem na minha infância. Os bombeiros actuavam sem contemplações e sem pensar que era o Chiado que ardia. Acho que eles próprios estavam também espantados e baralhados. Mais tarde, vieram os protestos às decisões camarárias de Krus Abecassis, de ter polvilhado a Rua do Carmo com bancos de pedra para os turistas descansarem e que impediram os carros de subir a rua e atacar as chamas. Os Armazéns do Chiado arderam por completo. O Grandella desfez-se com ele. A foto do dia seguinte, mostra a Rua do Carmo completamente devastada, bombardeada, qual Médio Oriente. Uma pessoa morreu, se bem me lembro.
Fui então a correr para o jornal. O Diário de Lisboa era vespertino e a redacção tinha de ser fechada às 12h30. Quando lá cheguei, fui falar com o José Eduardo Rebelo que era o chefe de redacção e disse-lhe todo orgulhoso que tirara fotografias do incêndio. Ele mandou os repórteres do jornal revelarem os rolos. E quando o jornal apareceu a fotografia da 1ª página era minha. O Eduardo Martins a arder sem amanhã, com labaredas a sair dos olhos do prédio.
As obras de reconstrução demoraram séculos. O Fundo que o Governo dissera que iria disponibilizar ficou parado, congelado, a capitalizar algures, já não me lembro porquê, nem por quem. Acho que o repórter José António Cerejo escreveu sobre esse escândalo. Ele era o meu subeditor na secção de Economia (com o Daniel Reis como editor e mais ninguém, até vir o Eduardo Pereira). Hoje, o Chiado bem reconstruído foi invadido por lojas de marca, iguais em todo o lado, por turistas aos magotes. Os indígenas foram expulsos do Centro e já as associações imobiliárias, a cavalgar a subida dos preços, têm o desplante de dizer que quem não tem dinheiro não pode viver ali.
Às vezes, faz-me pensar que algumas coisas em Lisboa de hoje precisariam, não de um incêndio como o de 1988, mas de uma forte mangueirada até que se pare para pensar de novo, regradamente e sem negócios, no que deve ser uma Cidade.