Comissão Independente. Quando os abusos sexuais na Igreja passaram a ser tema em Portugal
O relatório publicado esta segunda-feira sintetiza um ano de trabalho sobre os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa. O pedopsiquiatra Pedro Strecht foi o rosto mais visível da Comissão Independente, que contou, entre outros, com o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida - nomes de peso, com notoriedade e não ligados à igreja. A comissão iniciou trabalhos a 11 janeiro de 2022, quando começaram a receber contactos de vítimas de abuso sexual.
Nos primeiros quatro dias de funcionamento da Comissão, 100 testemunhos de vítimas validados. A mostrar como havia assunto e vontade de cidadãos em falar nele. A mostrar que os abusos sexuais na Igreja portuguesa eram bem mais do que uma "sucessão de casos pontuais", como a hierarquia católica sustentou oficialmente até 2021.
A criação de uma Comissão Independente - decidida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) em Novembro de 2021 - foi aliás resultado de uma negociação dentro da própria cúpula da Igreja, com os setores mais progressistas a vencer a resistência de bispos e setores mais conservadores.
As histórias chegaram à Comissão através de encontros presenciais, por via telefónica, videoconferência ou no preenchimento de um inquérito online. Até à última contabilização publicada, em outubro, houve 424 testemunhos validados. No estudo da Comissão Independente portuguesa a base de trabalho são as denúncias directas. Diferente, por exemplo, da metodologia seguida pela comissão em França, onde o número de pessoas abusadas são uma extrapolação a partir de estudos estatísticos gerais anteriores, onde havia uma amostra representativa da população francesa.
Em Portugal, como em outros países, a grande maioria dos casos denunciados têm décadas, e estão prescritos juridicamente. Dos 424 casos validados, a Comissão Independente enviou menos de 50 para a justiça investigar. Mesmo nesses, a maior parte foi arquivada pelo Ministério Público. Por prescrição, mas também por falta de elementos para desenvolver a investigação.
Bastante analisada pela Comissão Independente foi também a ocultação dos casos de abuso sexual por parte da Igreja. Várias vítimas de abuso testemunharam como foram desconsideradas quando tentavam denunciar à hierarquia. Aliás, ao longo de 2022, várias reportagens (ver Rostos e Histórias) contaram exemplos de encobrimento, inclusive por bispos ainda no activo. No fundo, a igreja portuguesa a repetir a estratégia usada em todo o mundo - desproteger as vítimas, em nome da protecção da instituição Igreja Católica Apostólica Romana.