A Associação de Vítimas de Abuso na Igreja em Portugal manifestou, em carta aberta aos bispos católicos portugueses, "tristeza, desagrado e indignação" pela forma como têm "lidado com o tema dos abusos sexuais na Igreja que conduzem".
Na carta, datada de 02 de novembro, mas conhecida hoje, a associação Coração Silenciado considera que, "nove meses depois da apresentação do relatório da comissão criada (...) para o estudo deste tema, (...) muito poucas foram as ações desenvolvidas e as atitudes concretas levadas a cabo".
Recorrendo a um texto recente da Pontifícia Comissão de Proteção de Menores que expressa "profunda tristeza e inabalável solidariedade, em primeiro lugar, às vítimas e aos sobreviventes de tantos crimes desprezíveis cometidos na Igreja", a Coração Silenciado diz esperar dos bispos "um pedido de perdão humilde e sincero".
Lamentando que, em Portugal, tenha sido a comunicação social a trazer o tema dos abusos para a ordem do dia, "para ser tratado com alguma dignidade, respeito e empenho", a associação das vítimas frisa que todo o abuso "envolve a angústia e a dor de uma terrível traição, não apenas por parte do agressor, mas por parte de uma Igreja, incapaz ou mesmo relutante em levar em conta a realidade das suas ações".
Na carta aberta, a Coração Silenciado afirma que "a Igreja Portuguesa viveu num sistema que permitia os abusos e os encobria" e questiona se "a realidade hoje é diferente".
"Durante meses apoiaram o vosso discurso no facto de a maioria das denúncias serem anónimas e poderem estar a ser `injustos` no afastamento dos sacerdotes acusados. Mas já pensaram em todos aqueles que conseguiram dar a cara e continuam a ver os seus abusadores no ativo? Abusadores que continuam a trabalhar com crianças e jovens? Com este modo de procederem serão poucos os que continuarão a denunciar", interpela a associação numa mensagem direta aos prelados católicos.
Acusando a Igreja de se estar a valer da prescrição dos casos, em termos criminais, a Coração Silenciado avisa: "O sofrimento não prescreve! Só acresce!".
Na carta aberta, os bispos são também questionados sobre quantos "já se reuniram, ao jeito do Papa Francisco, com as vítimas" das dioceses e quantos já entraram em contacto com a associação, enquanto a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) é acusada de não ter ainda formalizado "nenhum convite para diálogo, para saber o que sentem as vítimas, o que precisam, o que esperam da Igreja em Portugal".
"Somos pessoas com rostos, com histórias, com famílias que se tornaram vítimas também. Quantos de vocês já se reuniram com as nossas famílias e lhes pediram perdão?", pergunta a associação aos bispos portugueses.
Para a associação, o compromisso da Igreja com a erradicação dos abusos "não pode passar apenas pela criação do Grupo VITA: recebendo denúncias, serem mediadores para pagamento de consultas e formações".
"Mesmo que os pedidos de desculpa se possam vir a multiplicar, nunca saberemos o quanto são sinceros ou apenas estratégias para abafar o assunto; já as reparações e compensações económicas são um assumir público de que reconhecem cada vítima enquanto tal", escreve ainda a Coração Silenciado, acrescentando que estas indemnizações serão "a materialização da verdade até agora não assumida pela Igreja portuguesa".
A data da carta, 02 de novembro, dia em que a Igreja comemora os Fiéis Defuntos, é aproveitada pela associação para recordar "todas as vítimas de abuso já falecidas, em especial as que colocaram um fim às suas vidas pelo peso do abuso sofrido".
No início de novembro, a associação anunciou que vai apresentar "antes do final do ano" um pedido de indemnização ao Estado, através uma petição na Assembleia da República, adiantou hoje uma das responsáveis.
Em declarações à Lusa, Cristina Amaral, uma das líderes da Coração Silenciado, realçou que "existe um dever de proteção do Estado" e que a intenção passa por "sensibilizar os políticos" para a situação das vítimas.
Paralelamente, existem já, pelo menos, quatro pedidos de indemnização à Igreja Católica portuguesa, submetidos através do Grupo VITA e das comissões diocesanas, segundo a responsável da Coração Silenciado, também ela vítima de abusos sexuais numa instituição católica entre os 5 e os 9 anos de idade.
Numa resposta enviada à Lusa, a coordenadora do Grupo VITA, a psicóloga Rute Agulhas, assumiu que os pedidos de indemnização foram reportados pela estrutura e que a Igreja Católica está a refletir sobre como responder a uma eventual reparação às vítimas.
O Grupo VITA surgiu na sequência do trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que, ao longo de quase um ano, validou 512 testemunhos de casos ocorridos entre 1950 e 2022, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de 4.815 vítimas.