Abusos sexuais na Igreja. "Poucas coisas foram feitas" após trabalho da comissão independente, aponta Daniel Sampaio

por Andreia Martins (jornalista), Pedro A. Pina (fotografia e vídeo), Nuno Patrício (edição) - RTP
Pedro A. Pina - RTP

Com uma vasta carreira na psiquiatria e vários livros publicados, sobretudo nos campos da terapia familiar e da adolescência, Daniel Sampaio dedicou-se, na sua mais recente obra, a refletir sobre os casais e, em particular, a dificuldade em manter relações duradouras estáveis nas sociedades contemporâneas. Nesta entrevista à RTP foi também mencionado o trabalho da Comissão independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica portuguesa, que o psiquiatra integrou. Meses depois da apresentação do relatório, Daniel Sampaio considera que continua quase tudo na mesma e que a Igreja não seguiu as recomendações. O impacto da Covid-19 na saúde mental e as dificuldades no acesso aos serviços de psiquiatria no SNS foram outros temas também abordados.

“O casamento é um estado horrível, a única coisa pior é ser solteiro”. O mais recente livro de Daniel Sampaio tem como epígrafe uma frase paradoxal daquele que afirma ser o seu mestre, o médico e terapeuta familiar norte-americano Carl Whitaker. Estar sozinho pode incrementar problemas de ansiedade, mas "viver acompanhado durante anos é difícil", salienta.

Enquanto psiquiatra e escritor, Daniel Sampaio dedica-se há décadas à terapia familiar e ao estudo das famílias, casais e adolescentes portugueses. “Para Tão Curtos Amores, Tão Longa a Vida” é o seu mais recente livro, editado em setembro deste ano, em que procura responder a várias questões: o que leva um par romântico a separar-se? Qual a importância de uma relação saudável para a estabilidade emocional?

"Para Tão Curtos Amores, Tão Longa a Vida" dá o mote ao Clube de Leitores da RTP3 que se realiza este sábado, 2 de dezembro, pelas 17h00, no Pátio das Letras, em Cabrela, Montemor-o-Novo. A obra, em que junta a ficção à teoria para ilustrar os seus argumentos, conclui que o fenómeno do divórcio se banalizou em Portugal e que os casais têm a tendência de se separarem "à primeira crise".

Nesta entrevista à RTP, Daniel Sampaio aborda também a questão dos abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal. Tendo estado integrado no trabalho da Comissão Independente, considera que pouco ou nada foi feito para corrigir e evitar os erros do passado nos meses que se seguiram à apresentação do relatório, no início de 2023.

Quanto à saúde mental dos portugueses, quando passam quatro anos desde a eclosão da pandemia, a Covid-19 continua a ser mencionada como catalisador para vários problemas como a ansiedade e a depressão, particularmente para os jovens e adolescentes.

Daniel Sampaio defende que o número de pedopsiquiatras em Portugal é insuficiente para enfrentar a dimensão do problema e propõe que os psiquiatras de adultos se dediquem também aos adolescentes a partir dos 15 anos de forma a aumentar a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.

Pergunta: Começo por perguntar sobre o seu novo livro. "Para tão curtos amores, tão longa vida", a trocar aquele verso de Camões. ["Para tão longo amor tão curta a vida"] Diz no seu novo livro que o fenómeno do divórcio se banalizou em Portugal e que há uma tendência cada vez para que os amores sejam mais curtos e instáveis. Porque acha que isso acontece?

Resposta: Justamente, os curtos amores são quase o habitual hoje em dia. Há muitas razões. Uma das razões é porque há muita expectativa em relação ao casamento ou ao viver em conjunto, a união de facto, que é agora muito frequente.

As pessoas têm uma grande expectativa e pensam que vão ficar apaixonadas para sempre, que vai correr tudo bem e muitas vezes, na minha perspetiva, não fazem aquilo que é importante, que é construírem a relação. Porque uma coisa é a fase de paixão, em que a pessoa sente atração e quer partilhar o mundo com a pessoa amada, mas depois há o dia-a-dia da vida, em que é preciso a pessoa estar muito atento ao outro.

Basicamente, eu diria que há duas coisas fundamentais, que é estarmos atentos ao outro e termos a possibilidade de sentir o que é que o outro está a viver em cada momento. Depois há outra dimensão muito importante que é a da nossa vulnerabilidade. Quando estamos mais vulneráveis, podemos contar com outra pessoa ao nosso lado, como se fosse um porto de abrigo. Quando estamos mais humilhados, mais ofendidos, mais tristes.

Essas duas dimensões têm que ser construídas. Essas dimensões não fazem parte da paixão, têm que ser no relacionamento e na construção do amor. O que se passa em muitos casais hoje em dia e que, depois de ultrapassada a fase de paixão, que é efémera, que é inevitável, essa construção é difícil e, portanto, as pessoas não partem para essa construção e separam-se à primeira crise.

O livro conta a história de um casal que viveu 50 anos juntos, que está a comemorar as suas bodas de ouro. A ideia é que justamente esse casal tem uma relação longa, muito importante, mas teve crises e teve particularmente crises de infidelidade de um e de outro, mas conseguiram superar essa situação de crise porque têm um património comum. Aquilo que viveram em conjunto, desde o nascimento do filho, aquilo que viveram da sociedade, a nível profissional, depois o aparecimento dos netos, é esse património comum que permite sustentar uma relação longa.

Argumenta que as crises são inevitáveis em relações duradouras e que é preciso saber geri-las, já que a existência de uma relação amorosa prolongada é um ingrediente essencial para o bem-estar psicológico do indivíduo. Recorre aqui à teoria da vinculação. Como é que se explica esta importância de uma relação amorosa prolongada na estabilidade psicológica?

Uma dimensão psicológica fundamental é a segurança. Nós, quando pensamos na segurança biológica, vemos que as pessoas têm que sobreviver, têm que se alimentar, têm que lutar contra a adversidade, por exemplo, do clima agora que é tão importante em tantas regiões do país, dos países, lutar contra essa adversidade.

De acordo com a teoria da vinculação, a necessidade de contacto humano é uma resposta normal ao longo da vida. Se, numa primeira fase, este contacto é particularmente importante para os bebés, para quem o apego às figuras cuidadoras é determinante para a sua sobrevivência física e emocional, esse sistema de vinculação também existe em relação a um parceiro amoroso num relacionamento de longa duração, defendem vários estudiosos. A segurança psicológica é diferente. Essa teoria da vinculação que referiu tem a ver com a ligação do bebé à sua mãe, ao seu pai nos primeiros tempos de vida. O bebé tem necessidade de ter um adulto com quem se vai ligar, vincular e ficar seguro nessa relação.

Essa teoria foi depois mudada para os casais, para o par romântico, e o que se verificou é que nós, quando temos uma relação romântica com o nosso par amoroso, temos necessidade dessa segurança psicológica, e essa segurança dá-nos estabilidade emocional.

Portanto, o facto de podermos contar com uma pessoa que está ao nosso lado, atendendo às vicissitudes da vida, que são inevitáveis, essa segurança é muito importante para o nosso bem-estar.

Por isso é que os viúvos e os solteiros têm mais problemas de ansiedade e depressão do que as pessoas que vivem acompanhadas. Mas, ao mesmo tempo, viver acompanhado durante anos é difícil. É preciso vencer as dificuldades, ultrapassar as crises e ter uma perspetiva de utilizar esse património comum como construção para o seu futuro a dois e para a possibilidade de ficarem muitos anos juntos.

Considera que essas dificuldades em manter uma relação estável e duradoura, essas dificuldades advêm de uma sociedade cada vez mais individualista e do indivíduo cada vez mais virado para si próprio?

Sim, há várias causas para que as pessoas não estejam muito tempo juntas, mas essa é uma das razões. A sociedade atual privilegia o bem-estar individual, o bem-estar com o seu corpo, o bem-estar com o seu espírito, a sua satisfação pessoal, as suas conquistas pessoais, tudo isso é importante. Chama-se o autocuidado, cuidarmos de nós próprios, mas temos que cuidar do outro que está ao nosso lado.

Esse movimento de sairmos de nós próprios e de cuidarmos da pessoa que está ao nosso lado é mais difícil na sociedade atual, porque as pessoas estão muito individualistas e às vezes, mesmo narcisistas, querem o seu prazer individual. E o narcisismo é uma coisa que não é boa para a relação a dois.

Em relação à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica, em que participou, o relatório foi apresentado no início deste ano. Qual é o balanço que faz de sua participação como é que viu o que se tem passado nos últimos meses?

Bom, eu tenho que dizer que foi um trabalho muito importante. Tenho orgulho nesse trabalho e ter pertencido a essa comissão, foi uma honra para mim. Foi muito bem coordenada pelo Dr. Pedro Strech e conseguiu uma coisa que muitas vezes não se consegue, que é um trabalho multidisciplinar. Nós éramos de várias áreas e ele conseguiu unir as pessoas a sua volta e construir um relatório que teve um grande impacto na altura e que foi um relatório muito importante, porque era uma realidade que não se conhecia. E graças ao relatório e à maneira como nós construímos o nosso testemunho, nós pusemos a nu numa realidade terrível que se passava em Portugal e que era desconhecida. Portanto, teve esse mérito.

Passado quase um ano da apresentação deste relatório, eu tenho que dizer que poucas coisas foram feitas em relação às nossas propostas e lamento que assim seja, porque havia muito a fazer no sentido de identificar as causas do problema, de trabalhar essas causas e, sobretudo, dar uma resposta à sociedade em que se verificava que havia uma mudança importante a nível da Igreja. Acho que essa mudança não se verificou. Tenho esperança que o grupo Vita, que está agora a fazer esse trabalho, possa continuá-lo e promover a mudança que seja necessária para fazer e que é uma mudança muito importante.

Nesse trabalho que desenvolveu, houve alguma coisa que tivesse sido surpreendente, que não esperasse?

Sim, todos os psiquiatras contactam com o abuso sexual, é uma coisa com que nós contatamos ao longo da nossa vida. Mas devo dizer que me surpreendeu o impacto psicológico e muitas vezes até físico do abuso sexual. Foi um impacto maior do que aquilo que eu tinha conhecido na minha vida clínica, porque os testemunhos eram de pessoas que tinham sido abusadas há muitos anos e que durante muitos anos foram profundamente traumatizadas por essa situação e, sobretudo, não tiveram ninguém com quem falar.

Mesmo pessoas que estiveram em consultas de psicologia e psiquiatria não falaram aos psiquiatras e psicólogos nessa situação. Portanto, é um sofrimento muito escondido e a revelação é uma revelação muito importante.

As pessoas sentiram-se acompanhadas pela Comissão, sobretudo porque foi de facto, uma comissão independente e, portanto, os meus votos é que esse trabalho possa ser continuado por o grupo atual. Tenho muita esperança que assim seja e tenho esperança que haja mudanças importantes a nível da Igreja que possam evitar essa situação.

E que mudanças seriam essas?

O mais importante é falarmos do assunto. Na altura falou-se muito do assunto. Agora fala-se pouco. É importante falar do assunto. É importante criar canais para que as vítimas possam fazer o seu testemunho. E, sobretudo, é preciso ter muita atenção à formação dos padres e das freiras, as pessoas que dedicam a sua vida à religião e que vão ter a seu cargo crianças e adolescentes.

Essas pessoas necessitam de uma preparação muito especial que o nosso relatório demonstra que essa preparação não estava a ser feita e, portanto, tudo o que seja fazer uma formação a nível psicológico e sociológico dos candidatos a padres e freiras é fundamental e temos que investir nisso em termos do futuro.

Passou pelo Covid-19 pessoalmente, mas queria perguntar sobre as mudanças que vê a nível de saúde mental na sociedade, a nível de comportamentos? Que mudança é que vê nestes últimos anos, quase quatro anos desde o início da Covid-19?

Bom, eu acho que a Covid-19 teve um profundo impacto na saúde mental dos portugueses. Sabemos que aumentaram muitas situações de ansiedade e depressão.

Por exemplo, a propósito do tema do meu livro, houve muitos divórcios na altura do confinamento, que é uma situação que também vemos pensar nisso.

90 em cada 100 casamentos acabaram em divórcio.

Exatamente, portanto, uma dimensão muito grande no ano em que a pandemia esteve mais ativa, digamos assim.
Em 2020, 91,5 em cada 100 casamentos acabaram em divórcio, de acordo com a PORDATA. No ano seguinte, houve 59,5 divórcios por cada centena de casamentos.
Há um impacto muito grande, como eu estava a dizer, em termos de depressão e de ansiedade. E, de facto, há poucos recursos no Serviço Nacional de Saúde. Há muita espera para as consultas e, sobretudo em relação aos adolescentes. Há muito poucas respostas no sentido de nós podermos ter consultas especializadas para crianças e adolescentes, porque, sobretudo a nível dos jovens, o impacto da Covid-19 foi muito grande.

Na adolescência é fundamental a socialização. Portanto, os jovens têm que conviver uns com os outros, isso faz parte do desenvolvimento e, portanto, ficaram privados disso, tiveram aulas online, não contactaram com os seus colegas e com os seus amigos.

Em termos do desenvolvimento psicológico, o que nós vemos agora é os jovens com muita ansiedade, com depressão, com insegurança, com dificuldades nos seus relacionamentos. Portanto, embora se fale mais de saúde mental, - isso é uma coisa boa - não há respostas suficientes em relação à dimensão do problema, particularmente no que diz respeito aos jovens.

E a nível do SNS o que acha que era necessário fazer?

Especificamente, era necessário ver mais recursos espalhados pelo país. Nós demos uma resposta a nível das grandes cidades, mas as pessoas que vivem em territórios mais do interior têm muita dificuldade de acesso às consultas e, sobretudo no que diz respeito à saúde mental da adolescência.

Era sobretudo importante que os psiquiatras de adultos se dedicassem também à adolescência, porque os pedopsiquiatras não são em número suficiente para a dimensão do problema. A minha própria experiência é que eu sou psiquiatra de adultos, mas especializei me na adolescência. Portanto, a minha proposta é que muitos psiquiatras de adultos possam ocupar os jovens a partir dos 15 anos, que é a faixa etária onde existem mais problemas, para podermos aumentar a resposta ao nível do Serviço Nacional de Saúde.

Porque os colegas de pedopsiquiatria, que têm todo o mérito e toda a sua especialização junto de pessoas novas, não são em número suficiente para a dimensão do problema depois da Covid-19.

Especializou-se na adolescência, tem feito muito trabalho sobre essa área. Olhando hoje para os jovens e para os adolescentes, fala-se muito, por exemplo, da questão das escolas permitirem ou não o acesso ao telemóvel. O que é que vê como mais preocupante olhando para os jovens e adolescentes?

Em relação a essa questão do telemóvel, o que me impressiona mais é nunca se perguntar aos jovens quais são as soluções que ele tem para o problema. Quando se trabalha com gente nova é preciso ouvir as pessoas. Eu só oiço proibir, restringir, fazer medidas punitivas em relação aos telemóveis.

O que eu gostaria era que o assunto fosse estudado e se fosse junto das pessoas mais novas e dissesse temos esta dimensão.

Há um exagero de utilização dos telemóveis no pátio, na sala de aula… o que é que vocês propõem? Isto é a primeira coisa a fazer.

Depois era preciso transformar os espaços exteriores da escola em locais mais satisfatórios para as pessoas lá estarem, porque muitas vezes são desertos e, portanto, as pessoas têm mais tendência a refugiar se do seu telemóvel se têm um espaço desagradável à sua volta.

Depois, outra coisa que é muito importante é perceber que muitas das situações que aparecem na saúde mental dos jovens têm a ver justamente com os seus relacionamentos.

Portanto, nós temos que investir na educação sexual, na educação afetiva, na educação sentimental, para prevenirmos situações, por exemplo, em relação à violência doméstica isso tem que se começar a trabalhar na altura em que as pessoas começam os seus namoros e é preciso fazer um investimento por parte da escola no sentido dessa educação sentimental e afetiva, ouvindo os jovens e criando programas para que eles possam falar sobre as suas dificuldades relacionais.


E esse é um problema que tem vindo a aumentar?

Sim, a violência no namoro é uma situação preocupante e nós sabemos se não tivermos uma atuação junto dos jovens que são violentos, particularmente os rapazes, mas não só. Se não tivermos uma ação cedo na adolescência, eles vão ser mais tarde. Quando tiverem relações afetivas na idade adulta, vão ser violentos outra vez. Portanto, há aqui toda uma dimensão que é importante…

Por exemplo, soube agora que em Itália estão a fazer programas obrigatórios nessa área e é assim que se deve fazer restaurar a educação para a saúde, que está agora um pouco esquecida nas escolas.

A educação para a sexualidade com esta dimensão afetiva de trabalharmos os relacionamentos entre si e a toda a abertura das pessoas novas para falarem sobre isso. Agora é preciso haver investimento nessa área.


Faço uma última questão sobre o efeito perverso que as redes sociais e o uso excessivo do telemóvel podem ter para os jovens e adolescentes, por exemplo, ao nível da mimetização de comportamentos agressivos e prejudiciais. O que é que falta fazer em Portugal a esse respeito?

Falta fazer a educação para os media. A educação para a internet é fundamental, deve ser começada na infância. Nós devemos começar a falar da utilização da internet a meninos 3 e 4 anos, quando eles começam a ter muita curiosidade pelo telemóvel dos seus pais. Portanto, aí é que nós temos que ver e temos que educar. E portanto, durante muito tempo não se fala, não se falou sobre isso.

É fundamental que se perceba que hoje em dia não se pode viver sem internet, que a internet é fundamental para todos nós, que é muito importante na idade da adolescência, porque abre para o mundo. Neste momento, um telemóvel de um jovem é uma abertura para o mundo, não só para si próprio, mas, evidentemente, tem que se discutir os conteúdos que eles assistem, que eles veem e fazer uma discussão à volta desse tema e uma partilha.

Quando se trabalha sobre internet com os jovens, o caminho não é proibir. O caminho é perceber que o telemóvel é muito importante para ele, mas que há coisas que têm riscos e, portanto, é uma educação para o risco que é preciso fazer como fazemos em relação a atravessar a rua. Temos que ensinar como é que se atravessa uma rua. Também temos que ensinar desde muito cedo na infância, como é que se deve utilizar a internet.
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