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Abusos sexuais em Portugal. Os números e os maiores escândalos

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Foto de Artyom Kabajev na Unsplash

Só na Igreja Católica, o número de vítimas de abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes é superior a 400. Fora da Igreja, ultrapassa as dezenas de milhares. Segundo os dados da Polícia Judiciária, há uma média de 2.400 processos de abusos sexuais de menores todos os anos. O escândalo na Igreja é o mais recente em Portugal, mas ao longo das décadas têm surgido vários casos. Entre os mais mediáticos está o processo da Casa Pia e o caso conhecido por "Ballet Rose", que abalou o regime de Salazar.

Depois de ter sido criada uma Comissão Independente para realizar um estudo sobre os abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes no seio da Igreja Católica Portuguesa, centenas de testemunhos foram tornados públicos pela primeira vez em décadas, destapando o pano sobre um assunto tabu e que há muito se tentava encobrir.

Em janeiro, a Comissão Independente tinha validado 424 testemunhos, mas admitiu que o número de vítimas pode ser muito superior. O relatório com as conclusões da comissão será apresentado esta segunda-feira, dia 13.

O fenómeno não se passa apenas na Igreja e se foram contabilizadas as vítimas de abusos sexuais na sociedade, o número ultrapassa os dezenas de milhares.

Só até final de setembro do ano passado, a Polícia Judiciária contactou com 1601 menores vítimas de crimes sexuais, uma média de seis crianças ou jovens por dia.

Segundo os números revelados pela PJ à RTP, há uma média de 2400 processos de abusos sexuais de menores todos os anos. Nos últimos cinco anos, os novos processos foram sempre superiores a 2100 casos.

Em 2017, a PJ recebeu 2192 inquéritos relacionados com criminalidade sexual contra crianças e jovens, no ano seguinte 2103, em 2019 o número situou-se nos 2753, em 2020 foi registado um pico com 3773 processos e em 2021 foram 2405 averiguações.
No total, nos últimos cinco anos, a PJ recebeu quase 15 mil inquéritos relacionados com crimes sexuais contra crianças e jovens.

Carlos Farinha, diretor nacional adjunto da PJ, disse à RTP que estes números traduzem um maior conhecimento da realidade, à medida que estes crimes permanecem cada vez menos ocultos.

Os dados da PJ permitem ainda concluir que mais de metade dos crimes ocorre no interior das famílias e os detidos são na maioria do sexo masculino. O número de detidos passou de 163 em 2017, para 207 em 2021 e a PJ admite que a tendência é que continue a aumentar.
Marcas psicológicas persistentes
As vítimas de abusos sexuais ficam com duras marcas psicológicas e as depressões e tentativas de suicídio são comuns entre sobreviventes.

O impacto psicológico, emocional e desenvolvimental é particularmente grave numa criança. Luísa Branco Vicente, psiquiatra, explicou à RTP que uma criança vítima de pedofilia fica com a “sexualidade e identidade comprometida”.

“Para a criança, quanto mais precoce for a idade mais grave é”
, disse Luísa Branco Vicente durante uma entrevista para o programa da RTP "A Prova dos Factos".

“Se houve uma violação sexual numa criança, por mais exitosa que seja a terapia, é sempre muito difícil que que fique tudo resolvido.
A vida sexual futura fica comprometida, as gravidezes ficam comprometidas”, explica.

A psiquiatra explica ainda que o sentimento de culpa entre as vítimas é também muito frequente. “O violador muitas vezes seduz a criança, a própria criança saudavelmente tem atitudes sedutoras, o que gera um mecanismo de culpabilidade brutal”, afirma.

Luísa Branco Vicente fala na importância de os amigos e familiares saberem ouvir as vítimas e terem uma atitude empática, “para que o outro sinta que estamos sintónicos com a dor e o sofrimento”. “Não devemos ser policiais nem moralistas e devemos respeitar os silêncios”, explicou.
Os casos mais mediáticosCasa Pia
Um dos escândalos de abusos sexuais mais mediáticos em Portugal foi o da Casa Pia. O caso veio a público em setembro de 2002 e refere-se a abusos de menores envolvendo várias crianças acolhidas pela Casa Pia de Lisboa, uma instituição do Estado português que presta serviços de educação e de acolhimento a crianças necessitadas e órfãos.

O enorme escândalo estalou há 21 anos, quando um aluno da Casa Pia deu uma entrevista onde alegou ter sofrido abusos sexuais por parte do funcionário da instituição Carlos Silvino, conhecido pela alcunha de “Bibi”. As denúncias foram aumentando e entre os acusados estavam vários nomes conhecidos, como o apresentador de televisão Carlos Cruz e o embaixador Jorge Ritto. O humorista Herman José, o político socialista Paulo Pedroso e o então ministro da Defesa Paulo Portas também chegaram a ser acusados no processo. No total, a Polícia Judiciária estima que mais de 100 rapazes e raparigas acolhidos na Casa Pia nessa altura possam ter sido vítimas de abusos sexuais.

O julgamento teve início em novembro de 2004 e ainda hoje tem pendências processuais, sendo um dos mais longos e mediáticos processos da justiça portuguesa.

O julgamento, que acabou com sete arguidos (Carlos Silvino, Carlos Cruz, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes) prolongou-se por cerca de cinco anos e oito meses, teve 461 audiências, 980 testemunhas e mais de 70 mil documentos.

O coletivo de juízes deu como provado os abusos sexuais dos menores em questão. À exceção de Gertrudes Nunes, dona de uma casa em Elvas onde alegadamente decorreram abusos, que foi absolvida, todos os restantes arguidos foram condenados a penas de prisão efetiva em primeira instância.

Carlos Silvino foi condenado a 18 anos de cadeia (que baixaram para 15 por decisão da Relação), Carlos Cruz e Ferreira Diniz a sete anos, Jorge Ritto a seis anos e oito meses, Manuel Abrantes a cinco anos e nove meses. Hugo Marçal, condenado pela primeira instância a seis anos e dois meses de cadeia, foi absolvido.
"Ballet Rose"
Em 1967, um outro escândalo de abuso sexual de menores estalou e abalou a ditadura salazarista. Marqueses, condes, empresários, ministros e até um membro do clero estavam envolvidos numa rede de prostituição e abuso sexual de menores.

A rede já tinha começado a atuar muito antes de 1967, mas foi mantida como um segredo até aí. O escândalo, que ficou conhecido como “Ballet Rose”, foi tornado público pela imprensa estrangeira, uma vez que a comunicação social portuguesa estava sujeita à censura.

Entre os envolvidos neste escândalo estavam altas figuras do regime de Salazar, nomeadamente José Gonçalo Correia de Oliveira, na altura ministro da Economia. Entre os vários nomes apontados sobressaíam também o de Quintanilha Mendonça Dias, à data ministro da Marinha; Santos Júnior, então ministro do Interior; Víctor Emanuel, filho do rei Humberto II, de Itália e o conde de Monte Real.

Também Mário Soares foi envolvido no caso. O advogado foi acusado de passar informações à imprensa estrangeira sobre o escândalo e foi detido pela PIDE em 1967. Conseguiu ser libertado cerca de dois meses e meio depois, mas foi deportado para São Tomé e Príncipe.

Enquanto no estrangeiro o escândalo português de abusos sexuais fazia correr tinta na imprensa, em Portugal Salazar procurava abafar ao máximo o caso. Nem mesmo após o 25 de abril se fez justiça para as vítimas.

Quando o caso foi a julgamento, apenas foi aplicada uma multa a um dos homens envolvidos, os restantes foram absolvidos.
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