Zeca no Panteão? Tenham juízo!

Talvez seja apenas um efeito colateral do estado de silly season permanente que tomou conta do mundo nos últimos anos, mas a moda do momento parece ser mandar ilustres portugueses falecidos para o Panteão Nacional. Depois de Amália e Eusébio e Sophia, agora há quem queira empandeirar para a triste igreja de Santa Engrácia os restos mortais de José Afonso.

Nunca percebi qual a utilidade prática de um mamarracho como o Panteão Nacional. Aquilo não é esteticamente apelativo; é uma casa fria e cinzenta e feia; não tem sequer o encanto nostálgico que existe em alguns cemitérios. Não serve para nada, a não ser para jantares da Web Summit e para umas altas figuras do Estado se pavonearem, de tempos a tempos, a pretexto de mais uma transladação.

A verdade é que os livros de Aquilino ou de Sophia não passaram a ser mais lidos em virtude da distinção, e dos locatários mais antigos é o que se sabe: se Almeida Garrett ainda diz alguma coisa às pessoas (mais que não seja pelo tantos anos obrigatório Frei Luís de Sousa) serão hoje muito poucos os que alguma vez leram um texto de Guerra Junqueiro ou João de Deus – e é pena, porque não sabem o que perdem.

O Panteão não enobrece, nem apouca, apenas – quanto muito – pode reconhecer o valor de alguns dos nossos excelsos antepassados. Aliás, o plano delineado por Passos Manuel no século XIX, de reunir num mesmo espaço grandes figuras da História, só faria (algum) sentido se fosse mesmo assim. Mas para isso era preciso que lhe fosse dado tempo, à História, para decidir, serena e desapaixonadamente.

Em vez disso, o Panteão tornou-se (ou foi sempre) mais um palco para a exibição de protagonismos vários, por vezes sem outro sentido que não o simples interesse imediato, político ou outro qualquer. Só assim se entende a pressa que houve em lá colocar Amália ou Eusébio. Ou a freima que há por aí em fazer o mesmo com Mário Soares.

Não discuto a grandeza de qualquer dos «eleitos» (estes ou outros), nem os critérios de escolha, nem tão-pouco a justeza do acto. E sei que o espectáculo proporcionado pelas transferências inter-cemitérios anima sempre o povo. Mas acredito que há maneiras mais úteis de ocupar o tempo. E de honrar os mortos.

A mais recente candidatura ao mausoléu pretende apadrinhar a transferência para Santa Engrácia do criador de «Grândola, Vila Morena». Uma proposta porventura bem-intencionada, mas absurda. Não só porque se trata do tipo de distinção que Zeca sempre repeliu – ele até recusou receber uma mais do que merecida Ordem da Liberdade, lembram-se? – como, sobretudo, porque resultaria numa institucionalização inaceitável do homem que foi e da obra ímpar que nos deixou. A antítese de tudo aquilo por que lutou o artista e cidadão José Afonso.

E não adianta argumentar que o Panteão vale como lugar simbólico de reconhecimento nacional. Porque, enquanto tal, a simbologia em perspectiva perante a sugerida entrada de Zeca no redondel de Santa Engrácia não podia ser pior: convenhamos que colocar o autor da canção-senha da Revolução dos Cravos ao lado de Carmona (e de Cavaco, que daqui por uns anos terá lá com certeza uma assoalhada), era uma condenação a título perpétuo.

O Panteão está muito bem como sala-de-eventos, e dizem os números que é um dos lugares muito visitados pelos turistas. Óptimo, sempre ajuda no combate ao défice. Mas José Afonso repousa na terra que escolheu para viver e morrer. Junto do povo – esse que, há 31 anos, dele se despediu transformando Setúbal num mar de gente viva – e do mundo, como deve ser. Como só pode ser. Zeca merece, e nós também.

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