A feira e os livros

Se a cultura, como afirmou um dia Alberto Pimenta, é o desporto da classe média, então a Feira do Livro bem poderia ser a primeira liga do comércio livreiro. E já foi, quando este se fazia nos lugares de culto e de cultura que eram as livrarias. Mas os tempos mudaram, os livros e os lugares deles também, e o campeonato feroz da literatura deu lugar a um torneio amigável.

Tenho com os livros uma relação antiga, que vai para além daquilo que existe neles e se estende à matéria em si mesma. Passa-se o mesmo com alguns discos. Cada qual tem uma história própria, expressa nas dobras e nas marcas de uso, nos riscos e nas manchas, testemunho de andanças e memórias que lhe conferem personalidade e o tornam uma coisa única.

Pensarão que exagero, mas o certo é que, por razões que não sei explicar (ou talvez saiba), tendo a olhar cada livro – qualquer livro, mesmo os maus – como se fosse uma espécie de ser vivo. Se calhar por isso, nunca fui capaz de colocar um livro no lixo, nem sequer aqueles que já eram lixo quando foram feitos. E são muitos, para nosso mal e da mãe-natureza. Mas até esses são livros, e sempre achei que é preferível ler um mau livro do que não ler livro nenhum.

Isto é a gente a falar, claro, pois há coisas que é mesmo melhor nem ler. Mas há muitas mais que vale a pena ler, e reler. A relação de amizade com os livros também se faz assim, pelo número de vezes que voltamos a eles, a ponto de se tornarem essenciais nas nossas vidas. Esses são livros raros, mas ai de quem não tem pelo menos um de que possa dizer: eu seria outra pessoa, talvez pior, se não o tivesse lido.

Sou dos que gostam de frequentar livrarias, sobretudo daquelas onde os livros se reconhecem pelo cheiro, carregados de história e de memória, e onde quem os vende os trata com o rigor e o cuidado que cada um deles merece pelo simples facto de ser o que é. Por força das implacáveis “leis do mercado”, as velhas livrarias têm vindo a extinguir-se, e com elas acaba-se também o saber (e o sabor) que diferenciava o comércio dos livros da veniaga vulgar.

Esta alteração de paisagem sente-se também na Feira do Livro – que anualmente se disputa em Lisboa, mas também no Porto, e em maior ou menor escala em quase todas as capitais de distrito e noutras cidades do País – onde a concentração editorial transformou o espaço, ou boa parte dele, num grande hipermercado a céu aberto: Pedro Chagas Freitas e Margarida Rebelo Pinto piscam o olho ao leitor na secção de pronto-a-comer, António Lobo Antunes brilha na prateleira das carnes frias, Valter Hugo Mãe disputa com José Luís Peixoto um lugar no expositor das pizzas, e assim sucessivamente. Este ano, havia até uma bimby ao dispor dos estimados visitantes – pois não foi Natália Correia quem disse que a poesia é para comer?

Não é de estranhar, portanto, que onde era um auditório no alto do parque exista agora uma zona de lazer e comes-e-bebes frequentada inbdiscriminadamente por gente avulsa e famílias inteiras, velhos e novos, solitários e solidários, bebedores e abstémios. Seria, aliás (e foi quase) o lugar indicado para rever o poeta Eduardo Guerra Carneiro e as suas “Mil e Outras Noites” – antologia organizada pela Língua Morta, apresentada este sábado na Feira.

O Eduardo é um velho camarada da caneta e da vida, que há 14 anos decidiu voar para outra dimensão. Reveio agora em forma de antologia poética que traz de bónus dois textos do também já não presente, porém nunca ausente, Vítor Silva Tavares. Regresso efémero, sabemo-lo todos.

Os poemas e as prosas de Guerra Carneiro não serão notícia nas minguadas secções culturais dos jornais, e nas televisões e nas rádios é curto o espaço e a gente para falar de livros.

Num recanto da Feira, em discreto pós-prandial, reuniram-se alguns amigos do Eduardo, felizes por saberem que ele continua por aí. Malandro e azougado, com certeza, a verve certeira, o grito ágil na madrugada: “Anda-me, garoto: vai / em frente. Não tenhas medo, nem / percas calendários. Não sentes o ar / ligeiro onde brilham borboletas?”

O mundo em volta avisa-nos que o tempo não está de feição para “um jornalismo corpo e ânimo de literatura, domiciliado na boémia” (palavras de VST, no texto final desta edição), mesmo se é aí que está o que de melhor foi feito nos jornais, nas rádios e nas televisões. Disso sabem os amigos e os leitores do Eduardo Guerra Carneiro, os que aqui se juntaram e os outros.

“Continuar. Sim, continuar. O tempo que dói nos ombros.” Afago o livro (edição limitada a 300 exemplares) que há-de emparelhar na estante com os de outros amigos ausentes. São já bastantes, mas não me canso de os revisitar, pois que afinal “isto anda tudo ligado” e os livros (estes livros) servem também para os manter por perto. Ou, como o Eduardo também diria: “Olha-me em frente o sete-estrelo e parte / ao encontro de novas galáxias”.

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