Pergunta o jornal El Mundo e interroga-me a minha filha, com aqueles olhos grandes e escuros de quem cresce à velocidade de um eucalipto, apesar de ser forte e robusta como um carvalho ou um sobreiro, que me acolhe na sua imensa sombra em dias de inferno.
Tentei responder-lhe, o melhor que consegui. Estende raízes para todos os lados, está sedenta de informação e de dúvidas tal como Pedrogão Grande estava de ajuda e de sorte, naquela fatídica noite de sábado.
Gostava de poder tranquilizá-la. Não sei se consegui. Eu não estou. Não estou tranquila, não estou! A incúria voltou a matar e tenho sérias dúvidas de que a culpa não morra sozinha. Daqui a um ano, infelizmente, dos mortos só vão lembrar-se os que sem eles ficaram. Daqui a um ano… contem com uma cerimónia de números, fachada, por entre uma floresta transformada em crematório que, por essa altura, já terá verde e vida à espreita.
Este texto não é mais do que um lamento, um desabafo, uma catarse. Umas quantas frases de quem já fez o mesmo depois de umas quantas tragédias, algumas enormes, das maiores da História do Mundo, e viu ficar tudo na mesma. Tudo na mesma. “Vamos afastar as casas da costa”, dizem depois de um Tsunami. “Construímos duas pontes num ano”, vangloriam-se, depois de uma década de pedidos de ajuda e da queda de um autocarro e outras viaturas às águas lamacentas de março no Douro. “Mudem-se os materiais dos edifícios, das construções”, gritam depois dos sismos. “Aumentem a vigilância, o controlo”, apregoam depois dos atentados terroristas. “Obriguem a vacinar as crianças”, sussurram no fim de um funeral. “Vigiem mais as praias”, decretam enquanto procuram corpos sem vida no mar. “Façam uma rotunda”, determinam depois de mortes a fio num cruzamento mal sinalizado. “Limpem as matas, cuidado com o ordenamento do território, construam valas, optem por espécies autóctones na reflorestação”, ordenam depois dos infernos de todos os verões. Para quê? Porquê? Vai ficar tudo na mesma. Tudo na mesma. Não nos iludam!
Talvez tenha mentido à minha filha. Tentei tranquilizá-la. Não sei se consegui. Eu não estou. Não estou tranquila, não estou! A incúria voltou a matar e só se tenta culpar quem não errou. Se há pecadores nesta história não são os Bombeiros, não é a GNR, não são as vítimas, os mortos, os feridos, que deviam ter fugido ou que deviam ter ficado em casa… nem tão pouco são os Jornalistas (atenção à maiúscula) que, em situação difícil tentam fazer o trabalho o melhor que podem e conseguem. Fala-vos que já passou por isso e sente, no mínimo, direito a exprimir uma opinião. Dediquei-lhe anos de estudo, no mestrado, no doutoramento. “Os efeitos da projeção mediática em situações de tragédia”. A queda da ponte de Entre-os-Rios, os atentados de 11 de setembro em Nova Iorque e de 11 de março em Madrid, o tsunami no sudeste asiático, tantos, culminado com o atentado em Nice, há um ano. É tão fácil criticar no conforto do sofá quem anda pelo terreno a deparar-se com o inferno em vida. Até as exceções são isso mesmo: exceções e, por mais que se erre (que se admita com humildade, sem arrogância), não se pode desviar a atenção do essencial para o acessório, discutir uma reportagem, uma ordem de uma autoridade, a escolha de quem vê a morte ao lado, a lamber-lhe a pele, em vez do que realmente importa. O que é que falha ano após ano, vida após vida, silêncio (o nosso, consentido) após silêncio, homicídios após homicídio?
Talvez tenha mentido à minha filha. Tentei tranquilizá-la. Não sei se consegui. Eu não estou. Não estou tranquila, não estou! A incúria voltou a matar e aqui, em Espanha, pergunta-se: “Porque arde Portugal a cada verão que passa?”
O El Mundo escreve que no ano passado, num único dia de agosto, deflagraram 455 incêndios em Portugal e “que não surpreende que a maioria dos portugueses estejam acostumados a lidar com estradas cortadas e evacuações urgentes por causa dos fogos que arrasam o território nacional com tanta frequência”. Estão? Pergunto eu. O jornalista cita um estudo da Universidade de Vila Real para justificar a afirmação: “entre 2000 e 2013, mais de metade dos incêndios registados no sul da Europa aconteceram em Portugal. De 19.000 fogos, 10.000 deflagraram em solo luso. No ano passado, mais de 50% do território que ardeu na totalidade da União Europeia foi português”. A quem compara os incêndios nos dois vizinhos da Península Ibérica responde: “enquanto em Espanha, em 2016, se queimaram 65.000 hectares, em Portugal já tinham ardido mais de 160.000 só nos primeiros oito meses do ano.
A justificação para estes cenários do demónio vem no parágrafo seguinte. Diz que estes fatores só agravam um cenário que, pelas temperaturas, ventos
secos, pela imensa floresta e longos períodos de seca, já é muito perigoso. “Depois da Revolução dos Cravos, em 1974, grande parte da floresta nacional foi privatizada, ao ponto de apenas 5% dos parques florestais lusos serem públicos. Em muitos desses terrenos foram replantados eucaliptos – especialmente suscetíveis às chamas – noutros, em mãos de privados, não se tomam medidas adequadas para mantê-los limpos. A desertificação progressiva do interior do país, com sucessivas crises económicas, também contribui para esta situação, com muitos incêndios a terem origem em aldeias abandonadas”.
Foi um raio, dizem em Portugal, e os espanhóis descobriram a pólvora? É preciso ver de fora para dentro para encarar a questão com discernimento e lucidez? Aqui não se trocam acusações bacocas e chama-se a atenção para outro tema essencial: o fogo posto, a mão criminosa. Não terá sido este o caso, no incêndio mais devastador de sempre, em Portugal, mas a Liga dos Bombeiros Portugueses estima que até 75% dos incêndios em Portugal são provocados intencionalmente.
Vão dizer “e o que é que tudo isto tem de novo? ” Nada, respondo eu, por isso mesmo, não estou tranquila, não estou! A incúria voltou a matar e vai repeti-lo, sempre que quiser.