Essa foi uma linha vermelha que o líder ucraniano traçou sem medo de absolutos.
A concretização do fim da guerra e qualquer diálogo podem "acontecer", admitiu, mas apenas se e quando "os russos começarem a respeitar o nosso direito, o direito de viver na nossa terra, e as forças russas saírem na integra do nosso território", afirmou.
Zelensky não admite, por isso, qualquer tipo de negociações diretas com Moscovo.
"Temos uma posição muito definida e esta posição consta da nossa fórmula de paz, que tem dez parágrafos", explicou Zelensky. "O fim da guerra está previsto após o cumprimento de todos os parágrafos totalmente honestos, justos, que se baseiam na resolução da ONU".
Zelensky não se eximiu de tecer duras críticas àqueles que, como o presidente brasileiro, Lula da Silva, na semana passada na Cimeira dos BRICS, onde está ao lado da Rússia, sugeriu uma paz negociada e o abandono de uma "mentalidade obsoleta da Guerra Fria", propondo que a Ucrânia ceda território para conseguir a paz.
"Para se dizer alguma coisa, é preciso perceber quem é a vítima e quem é o agressor", respondeu o líder ucraniano. E os ucranianos, lembrou Zelensky, são as vítimas da invasão russa e não os atacantes.
Já a fórmula de paz ucraniana com os seus 10 pontos, "não é uma fórmula unilateral, é uma formula do país que sofre com tudo isso, que sofre com a guerra e no território no qual a guerra se desenvolve. Ponto".
Segundo Zelensky, também o mundo inteiro deveria ter pressionado a Rússia quanto ao acordo de exportação de cereais que Moscovo recusou renovar, argumentando que não servia os seus interesses.
Ceder território, nunca
A aparente intransigência ucraniana baseia-se no sofrimento de um povo que foi atacado e bombardeado sem qualquer respeito pela sua soberania, defendeu o Presidente.
"A guerra é em concreto na Ucrânia, as vítimas são concretamente os ucranianos. Não são os brasileiros, ou outros europeus, nem americanos. São concretamente dezenas de milhares de pessoas, centenas de milhares, que morreram ou ficaram feridas, são as nossas casas que foram atacadas ou bombardeadas, não as casas do Brasil ou de outros países", afirmou Zelensky.
Volodymyr Zelensky diz-se aberto a propostas, desde que estas não pressuponham a cedência de território, nem sequer da Península da Crimeia, anexada pela Federação Russa em 2014 após um referendo não reconhecido pela comunidade internacional.
"Se essas propostas se baseiam de alguma forma em cedência de alguma parte do nosso território, então isso não é coerente, primeiro com os nossos pensamentos, e, em segundo, certamente não é compatível com a nossa integridade territorial e soberania", disse o líder ucraniano. "As pessoas devem respeitar os territórios dos estados independentes".
A importância de Portugal
Esse foi um dos elogios que mereceu Marcelo Rebelo de Sousa, na sua visita à Ucrânia, na semana passada, onde celebrou o Dia da Independência do país, em Kiev, ao lado de Zelensky.
O Presidente português denotou "respeito pela Ucrânia", afirmou Zelensky sobre a tentativa de Marcelo em falar na língua ucraniana. Marcelo Rebelo de Sousa, acrescentou, é "uma pessoa com muito carisma", que sente a voz do seu povo e também do povo ucraniano.
Para Zelensky, os dois líderes estão "em uníssono, tal como dizem os músicos" e desta forma conseguirão tudo.Portugal, sublinhou, "é muito importante para a Ucrânia" e poderá ser "ponta de lança" dos interesses ucranianos em África e na América Latina.
Zelensky garantiu ainda que irá visitar Portugal, "obrigatoriamente".
A longa entrevista foi concedida no Palácio Presidencial em Kiev, sob fortes medidas de segurança. Zelensky falou ainda abertamente de questões como a corrupção no país, a polémica das eleições, a morte de Prigozhin e o que ela revela sobre a Rússia, assim como a necessidade de armamento e o avanço militar no terreno ocupado pelos russos.
Veja aqui a entrevista completa ao Presidente da Ucrânia
Zelensky agradece ajuda, mas precisa de 160 caças
Zelensky afirmou que a Ucrânia necessita de mais uma centena de caças além dos "50 ou 60" já prometidos e os quais devem estar operacionais no início de 2024.
"Hoje temos o acordo relativamente à futura entrega de 50, 60 caças (F-16). Porque digo isso? Porque nos momentos diferentes, teremos uma quantidade diferente de caças", afirmou o Presidente ucraniano à RTP.
"Na totalidade precisamos de cerca de 160 caças, para ter uma força aérea poderosa que não dê a possibilidade à Rússia de dominar o espaço" aéreo, acrescentou, lamentando ainda que esta ajuda tenha chegado "mais tarde do que eu queria" e que o domínio russo dos céus seja "absoluto".
Os caças deverão estar operacionais nos céus ucranianos "no principio do próximo ano", antecipou Zelensky, reconhecendo que a questão é complexa, por exigir formação não só de pilotos mas igualmente de engenheiros e muita manutenção especailizada.
Para o presidente da Ucrânia, os caças são necessários para defesa e para a proteção de civis e não para a contraofensiva.
"Estamos a combater com a Rússia, estamos a combater pela nossa terra ucraniana, contra a política invasora da Federação Russa. Precisamos de caças meramente para nos defender. Defender a nossa terra, o nosso mar, o nosso céu", garantiu.
Outra utilidade premente para os F-16 é assegurar que "a Rússia ilegalmente não reine no Mar Negro e não reine a agressão da Rússia através do bloqueio dos nossos corredores de cereais no Mar Negro e no Mar de Azov", afirmou Zelensky.
Motivação na Ucrânia "não esmoreceu"
O presidente garantiu ainda que o avanço ucraniano na frente da guerra prossegue, mesmo "aos poucos", e que a moral das tropas de Kiev se mantém elevada.
Uma das funções da presidência, tal com a entende Zelensky, é manter em alta a moral ucraniana, sobretudo dos soldados que combatem na linha da frente. Muitas famílias foram destroçadas no último ano e meio de guerra, reconheceu. E por isso mostrou-se grato também aos que lutam sem esmorecer.
"A morte de uma pessoa próxima desmotiva. E estou grato aos soldados por isso não ter acontecido. A motivação das forças ucranianas é maior do que a das forças russas. Isso é importante", referiu, dizendo que a motivação ucraniana existe "desde o início" e que "ainda não esmoreceu".
A garantia de apoio na retaguarda é aqui crucial. "Quero chamar a atenção para os veículos médicos blindados para recolher os feridos do campo de batalha. Eles contam que cada um vai para a batalha e mesmo se algo acontecer – que Deus não permita – existirá o veículo específico para o recolher" lembrou, enquanto lamentava ter "falta destes veículos". "Essas coisas desmotivam, é verdade", reconheceu.
Zelensky tem visitado diversas vezes a linha da frente, sobretudo desde o início da última ofensiva para expulsar as tropas russas entrincheiradas. O avanço tem sido difícil mas constante, garante. "Somos nós que estamos a avançar, aos poucos, mas a avançar. Porque estamos na nossa terra. E isso é a motivação maior, temos só a nossa família para trás", afirmou.
Pelo contrário, os russos mobilizados "não sabem por que razão combatem na Ucrânia" e estão desmotivados. Combatem "por medo de não avançar" e do que lhes sucederá se desertarem da frente de combate, interpretou Zelensky.
"É a sobrevivência que os motiva", explicou, lembrando que "muitos militares especializados da Federação Russa e do grupo Wagner foram eliminados pelas nossas forças armadas, estamos a falar do poder do exército russo".
"Não temos direito a ter corrupção"
Já sobre a corrrupção no país, incluindo nas forças armadas ucranianas, Volodymyr Zelensky sublinha a necessidade de a equiparar em termos legislativos, a uma traição à pátria, considerando que "em tempo de guerra" a questão dos riscos de corrupção "tem de ser tratada de forma muito mais séria" doque durante a paz.
O Presidente reconheceu que as pessoas estão "sob muita pressão" devido ao conflito mas considerou que, por isso mesmo "não podemos arriscar quaisquer momentos, por mais insignificantes, de corrupção".
"As pessoas estão com dificuldades, a defender as suas casas, os seus filhos, partilham as suas reformas e salários com os militares e não com os filhos", referiu.
Se, "no respeito da lei", a corrupção não for travada, isso representa um risco de desmotivação das pessoas, "da sua fé na vitória, na Ucrânia", ameaça a própria "unidade" do país, afirmou Zelensky.
Para o Presidente da Ucrânia, a justificação de que a corrupção existe em todo o lado, não colhe. "Nós não temos o direito a ter corrupção a qualquer nível" defendeu, para justificar a sua proposta legislativa, apesar de considerar que o problema não está demasiado disseminado.
"O problema global é quando justificamos isso", "não reconhecemos que existe" e "não o combatemos", considerou.
"Não tenho medo de nada"
Zelensky afirmou também não ter medo de eleições, referindo "respeitar muito o povo".
"O povo sabe que não vim da política para política", afirmou, ciente de que goza de "muito apoio". "Não tenho medo de nada", garantiu, dizendo-se ainda pronto para enfrentar quem queira alterar a legislação para permitir a realização do escrutiínio em tempos de guerra.
"Não deixo simplesmente que o país seja destruído e o povo posto em causa", afirmou, defendendo quatro exigências para a realização do escrutínio.
A primeira, referiu, é que as eleições se deverão realizar "em todo o território ucraniano", incluindo os militares que atualmente combatem na linha da frente.
Depois, "precisamos de observadores internacionais porque quero que tudo seja feito legalmente", explicou. "As eleições devem ser democráticas, transparentes", tal como "sucedeu quando eu fui eleito Presidente".
Zelensky disse querer em terceiro lugar envolver a diáspora ucraniana, sobretudo aquela que procurou refúgio da guerra em terras estrangeiras, e em quarto garantir a segurança da votação sem ameaças de eventuais bombardeamentos russos.
O financiamento de um ato eleitoral é outra questão premente, já que Zelensky não irá desviar para eleições um cêntimo do orçamento atualmente alocado ao armamento e às forças armadas.
"Penso que a democracia do mundo nos apoiará", afirmou, deixando implícito que irá ser candidato se as eleições se realizarem em 2024 como prevê o calendário eleitoral. "Nâo abandono o meu país", afiançou.
Putin "não é assim tão forte" e "não tem palavra"
Zelensky comentou ainda a morte do líder do grupo mercenário russo Wagner, Yevgueny Prigozhin, na véspera das celebrações do Dia da Independência da Ucrânia.
Não mostrou dúvidas de que foi o Presidente russo, Vladimir Putin, quem mandou eliminar Prigozhin, considerando esse facto uma prova de fraqueza do senhor do Kremlin.
"Uma pessoa forte não elimina os concorrentes desta forma" afirmou, para justificar que a morte de Prigozhin, que, em junho passado, chegou a mandar avançar as Wagner sobre Moscovo, provou que "Putin não é assim tão forte" apesar de líder de "um estado autocrático". "Ele é um terrorista", afiançou.
Também o rápido avanço das tropas Wagner em território russo, na invasão de junho, apontou para o fraco controlo territorial por parte do Kremlin, considerou Zelensky.
Em terceiro, ficou demonstrado que "Putin não respeita a sua palavra" dada em negociações. Zelensky crê que "o mundo civilizado" terá agora "percebido" isso mesmo. "Nós testemunhamos isso anteriormente, agora todo o mundo viu", afirmou.
"Todos os acordos com Prigozhin", os "públicos", "foram eliminados, bem como a pessoa com quem foram negociados" com a morte do líder do Wagner, argumentou. "Não existe a pessoa, não existem os acordos". Putin "ou desmente a sua palavra ou faz o que fez com Prigozhin", rematou.
"Tudo depende da boa vontade"
Sobre a adesão à NATO, Zelensky disse que dependerá de quando e de como acabar a guerra, mas afirmou-se confiante de que o seu país se tornará membro da Aliança Atlântica.
Já quanto à União Europeia, o Presidente ucraniano crê que "existem todas as possibilidades de encetar um diálogo já este ano" e encetar o processo em 2024.
"Tudo depende da boa vontade e da vontade política dos parceiros europeus e da nossa vontade e das nossas possibilidades", reconheceu.
Volodymyr Zelensky sabe que é um alvo a abater mas ignora a quantas tentativas de assassínio terá sobrevivido nos últimos ano e meio. "A guerra ainda não acabou", sorriu.