Xanana Gusmão promete continuar protesto contra ação de tribunal timorense

por Lusa

O antigo Presidente timorense Xanana Gusmão disse hoje que vai continuar o protesto para evitar o despejo de sete famílias, em Díli, criticando o que considerou ser "falta de humanismo e de consciência social" dos tribunais.

"Não sou contra as leis, ou contra as decisões dos tribunais, mas sim contra esta falta de humanismo, de consciência social para com a população, pessoas idosas que moram aqui há 46 anos, que não têm dinheiro", afirmou Xanana Gusmão, em entrevista à Lusa.

"Depois de tudo o que passaram, há uma decisão do tribunal, vem a polícia e as equipas das terras e propriedades que lhes tiram as coisas de casa e as deixa na rua. E dizem-lhe: `pronto, vão embora`. Mas vamos embora para onde, se não temos para onde ir? E eles não lhes dão alternativa", afirmou o líder do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), maior partido da oposição.

Xanana Gusmão falava à Lusa em frente à casa de uma das famílias, que recebeu ordem de despejo na segunda-feira, e onde se encontrava, pelo segundo dia consecutivo, para evitar a expulsão das famílias da zona.

Não é a primeira vez que, a pedido da população, Xanana Gusmão surge, em diferentes pontos do país, para tentar travar o que considera serem injustiças, consolidando a perceção, entre os timorenses, de que podem recorrer ao líder histórico do país em situações dramáticas.

Na segunda-feira, quando chegou ao local, já equipas das terras e propriedades, apoiados por agentes da polícia, tinham retirado para a rua, os parcos pertences das famílias

Prometeu ficar ali até a situação estar resolvida e disse à comunidade que podia voltar a meter as coisas em casa.

Sentado numa cadeira de plástico à frente da porta de entrada, e rodeado pela população da pequena comunidade, Becuse Kraik, na zona de Becora, em Díli, o líder timorense lembrou outros exemplos do que entende por "falta de humanismo" do setor judicial timorense.

"O Estado de Timor-Leste nasceu por causa do sofrimento desta gente, desta população. Sofreram aqui durante a invasão indonésia. Há uma senhora aqui que foi violada várias vezes. Histórias terríveis. Não pode continuar a sofrer mais, ainda hoje", explicou.

"Se um dia vieram aqui e disserem: `têm ali uma casa, vão morar ali`, tudo bem. Mas chegar aqui com a força da lei, porque a polícia também veio - e a lei não quer dizer justiça -, expulsar assim as pessoas sem solução, então é outra coisa, outro problema", vincou.

Xanana Gusmão contou as histórias das famílias, um dos vários exemplos de confusão e caos que subsistem no complexo palco das terras e das propriedades do país, com processos a avolumarem-se nos tribunais e atrasos na certificação de títulos.

Neste caso, disse, o dono da terra, decidiu, há mais de 40 anos, permitir às famílias que ali se instalassem.

"É uma comunidade, pessoas que sofreram muito durante a luta, são velhotes hoje. Entretanto o dono, o senhor Vicente Vidigal morreu. Depois morreu a mulher e os filhos. Agora, de repente, aparece uma pessoa, que nem é da descendência sanguínea e diz que é herdeiro", explicou.

"E vai ao tribunal para correr com as pessoas daqui, como aliás tem acontecido noutros locais de Díli. Sete famílias que ficam com as coisas na rua. O tal senhor queria pagar dois mil dólares [1.800 euros] a cada família. Queria a conciliação, pagar às famílias", disse.

Chamou os maridos e tentou convencê-los a aceitar a compensação, mas "os maridos chegaram a casa e as mulheres disseram que não, que dois mil não dá para fazer nada" e, por isso, "ninguém recebeu esse dinheiro" sequer.

O líder da oposição deu mais exemplos, incluindo uma senhora, também idosa, expulsa da pequena casa que construiu, há décadas, num terreno cedido por um vizinho, num bairro próximo.

"Agora, um vizinho, fez uma casa ao lado e de repente aparece como herdeiro do terreno onde a velhota está. Meteu o caso no tribunal e também expulsaram a senhora. Também fui lá. Ainda bem que um senhor ao lado deu um pedaço para a senhora montar uma tenda. Mas não pode viver assim, certo?", contou.

Como outro exemplo da "falta de humanismo nas decisões dos tribunais", lembrou uma visita que fez, no passado, à prisão de Gleno, a sul de Díli, onde encontrou várias senhoras a quem perguntou porque estavam presas.

"Elas disseram que tinham matado os maridos. Mas depois contaram que os mataram porque sofriam violência e abusos dos homens todos os dias. Informaram a polícia e o chefe de suco que lhes disseram: `só quando acontecer algum crime`. Mas violar, espancar e abusar não é um crime?", perguntou.

"Por isso disseram que já não aguentavam mais e os tinham matado. Perguntei quantos anos de pena. Disseram 16, 18 ou 15 anos. A contar e a chorar, porque tinham os filhos fora da prisão e não sabiam o que lhes ia acontecer", referiu.

Xanana Gusmão disse que, no passado, quando era ainda primeiro-ministro, tentou sensibilizar agentes da justiça para a questão humanista na aplicação das leis, dando como exemplo um programa que tinha visto na RTP sobre a história de uma mulher que matou um homem no tribunal.

"Depois percebeu-se que ela tinha sido violada por ele, que ele tinha violado muitas outras mulheres. O caso gerou uma onda de solidariedade que acabou por levar o tribunal a absolver a mulher", disse.

"Contei esta história, a tentar explicar a questão de atenuantes e de outros aspetos da justiça. Os procuradores disseram: nós cumprimos a lei, se diz 20 anos, então se calhar tiramos um ou dois e baixamos para 18", relatou.

O líder histórico timorense sublinhou ter tentado apelar para o sentimento humanista, para que fossem percebidas as circunstâncias, para se perceber porque é que aquelas mulheres mataram: "e eles não consideraram absolutamente nada isto. É só lei. Lei é lei".

Daí que em situações como esta, e perante o "grande problema de que o Estado está cada vez mais distante da população", acaba sempre por defender as famílias.

"Este é o facto real e o problema que faz doer. E porque me faz doer, eu coloco-me ao lado do povo, porque esta gente é que sofre. Sofreram aqui e continuam a sofrer, com péssimas condições", frisou.

 

Tópicos
PUB