Qual a figura que mais impactou o mundo este ano? Parece-me pertinente identificar uma tipo, mais que um indivíduo – o líder populista nacionalista. Ou seja, alguém cujo estilo de liderança passa por usar sistematicamente uma retórica de oposição à elite tradicional alegadamente na defesa dos interesses do verdadeiro povo, da nação humilhada.
É evidente que estamos a falar em primeiro lugar do primeiro ano do novo Presidente dos EUA, Donald Trump. E sobretudo do facto de que Trump não só foi eleito como um populista mas tem procurado governar dessa forma. Ao contrário do que muitos previam não moderou a sua postura. Continua a tentar governar via twitter, sem mediações institucionais, atacando juízes, senadores e até ministros do seus próprio governo. Continua a apostar numa retórica de ele contra as elites, os estrangeiros, os emigrantes, a quem culpa do que corre mal.
Sobretudo trata-se de sublinhar que não é só Trump. O mais notável neste ano de 2017 é que todos os líderes de todas as principais potências mundiais se enquadram nesse modelo de liderança populista nacionalista. Estamos a falar de Trump, mas também de Xi Jinping na China, de Narendra Modi na Índia, e de Vladimir Putin na Rússia. Todos eles, apesar de importantes diferenças entre os países que governam, desde logo de regime, parecem determinados a exercer um estilo de liderança mais populista e nacionalista do que os seus antecessores. Procuram moldar as instituições que encontraram às suas conveniências. Justificam a concentração de poder na sua pessoa como a melhor forma de combater os inimigos internos e externos dos verdadeiros chineses, indianos, russos ou norte-americanos.
Não ignora que Xi foi apontado como uma espécie de alternativa a Trump com a sua defesa da globalização em Davos. Mas parece-me errado esquecer a sua forte dimensão nacionalista, ou o facto de que a China está longe ser uma economia aberta ao investimento e ao comércio estrangeiro. No fundo, tal como Trump todos estes líderes estão interessados no mercado e nas relações económicas com o exterior, desde que isso fortaleça o seu poder e seja no interesse do respetivo Estado.
Talvez a imagem de marca mais forte deste tipo de liderança seja o usa da retórica do combate à corrupção para consolidar o poder. Foi assim inicialmente com Putin. E ele tem sido seguido pelos demais, desde as purgas de Xi até à campanha de Modi forçando a saída de circulação de notas de elevado valor, até ao slogan “drain the swamp” de Trump. O exemplo mais recente desta técnica populista é a campanha anticorrupção do novo príncipe herdeiro da Arábia Saudita contra os seus rivais.
O que importa tudo isto? Este parece-nos ser o tipo de líder que mais poderá abalar a ordem global vigente, sendo a sua emergência ela própria sinal de que esta está a enfrentar uma crise séria. Historicamente também sabemos que este tipo de liderança é propensa a envolver-se em conflitos interno e externos. Se alguma coisa parece previsível relativamente a Trump e às suas relações com as instituições nacionais e internacionais é, precisamente, a sua imprevisibilidade.
Acontecimento do ano: Queda do "dito" Estado Islâmico
A queda em 2017 de todas as principais povoações que o autoproclamado Estado Islâmico tinha conseguido controlar no Iraque, na Síria e, mesmo na Líbia, é um marco importante. A proclamação pelo grupo terrorista Daesh da restauração do Califado, em Mossul, a segunda cidade do Iraque, em 2014, foi o mais ambicioso culminar da violenta vaga de jihadismo takfiri cujas origens remontam à Al-Qaeda e à guerra santa contra os soviéticos no Afeganistão com apoio do Ocidente e de vários países islâmicos na década de 1980.
O colapso deste dito Califado, o fracasso da ambição de construir um império islamista radical como base permanente de uma campanha de terrorismo global, era algo previsível. Raramente foi possível a um grupo armado transformar-se num Estado revolucionário de sucesso. O Daesh pela sua violenta interpretação do Islão sunita, pela eliminação de qualquer oposição ou diversidade, colocou contra si desde o início todos os grupos minoritárias que abundam no Médio Oriente, desde os curdos até xiitas e cristão. Foram estes a primeira barreira ao avanço do Daesh, sobretudo quando passaram a contar com apoio do Ocidente e de outros aliados externos. O Daesh foi também alienando pelo seu extremismo violento mais e mais sunitas. Mais ao proclamar-se como o único e verdadeiro Estado Islâmico colocou contra si todos os Estados da região, cuja legitimidade se punha, assim, abertamente em questão.
Seria preciso o total colapso do sistema de Estados do Médio Oriente para o Daesh poder triunfar, ora só os elos mais fracos em parte partiram. E seria preciso que isso fosse permitido pelas principais potências com interesses na região. Ora nem os EUA, nem a Rússia ou a China, que enfrentam igualmente terroristas jihadistas, o poderiam permitir.
Porém, o simples facto deste dito Califado radical ter conseguido controlar durante algum tempo vastas zonas do Médio Oriente – o Daesh chegou a governar um território do tamanho da Grã-Bretanha e uma população semelhante à de Portugal – é bem revelador da grave crise dos Estados pós-coloniais do Levante, uma região de importância geopolítica central.
A queda do Daesh é uma boa notícia. Nada de bom poderia vir para os locais ou para a segurança do resto do Mundo de um movimento tão extremista e violenta se afirmar no coração do Médio Oriente como líder de uma vaga terrorista transnacional.
Infelizmente o fim do autoproclamado Califado coloca tantas questões quantas aquelas que resolve. Ele não significa que o Daesh tenha necessariamente desaparecido nas suas duas outras dimensões – de grupo terrorista e de muito eficaz rede de propaganda violenta transnacional. Mesmo que isso aconteça, os veteranos sobreviventes do Daesh de retorno aos países de origem ou em fuga para outros Estados fragilizados podem transfigurar-se e reaparecer como uma forte ameaça violenta com o mesmo nome ou outro. Essa recomposição já sucedeu com outros grupos jihadistas no passado recente.
No Médio Oriente o desaparecimento desta ameaça comum a todos os estados da região pode acentuar ainda mais os conflitos entre eles, em particular entre o Irão xiita e a Arábia Saudita sunita que têm estado cada vez mais abertamente envolvidos numa disputa pela hegemonia regional. No meio disto pouco resta dos anseios e esperanças das populações locais que afloraram na chamada Primavera Árabe de 2011.